As novas tecnologias de comunicação possibilitaram que os modos de organização de inúmeros movimentos sociais fossem redimensionados, renovados e tornados mais acessíveis. A popularização das redes sociais permitiu ao feminismo, por exemplo, produzir novas construções de seus discursos, novas linguagens e concepções. Hoje, utilizamos essas tecnologias, como a internet, não só para problematizar e colocar em pauta as questões sobre o “ser mulher”, como também para nos organizarmos politicamente, através de textos, blogs e vídeos, assim como em forma de arte.

Muitas de nós falamos do ciberfeminismo como um fenômeno recente. Porém, por incrível que pareça, o que acreditamos ser um movimento que ascendeu com o advento das redes sociais vem sido discutido desde os anos 80, e o que vemos hoje é uma nova prática dele. Segundo Marina Gazire Lemos em sua tese de mestrado em Comunicação Semiótica, Ciberfeminismo: Novos discursos do feminino em redes eletrônicas (2009), o ciberfeminismo se originou em diversas redes eletrônicas antes mesmo do conhecido World Wide Web (WWW), como por exemplo, as BBS e Intranets universitárias da Austrália e Alemanha.

Podemos afirmar que a responsável pela origem do termo “ciberfeminismo” foi o artigo da bióloga, filósofa e escritora Donna Haraway, Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX, publicado originalmente na Socialist Review, em 1985. É nele que Haraway descreve a crise identitária dos movimentos sociais, principalmente a do movimento feminista, e a influências das novas tecnologias nesse movimento. Suas conceitos são fundamentais para o entendimento da teoria ciberfeminista, e oferecem um grande espectro de análise das relações entre feminismo e novas tecnologias.

Segundo a autora, “Este ensaio é um esforço para construir um mito político, pleno de ironia, que seja fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo”. Através dele, Haraway faz uma crítica ao marxismo, ao feminismo radical e a outros movimentos sociais que, de acordo com ela, não foram suficientes e fracassaram em operar com categorias como classe, raça e gênero. Sua crítica ao movimento feminista diz respeito ao modo que ele tratava a categoria “mulher” de forma naturalizada. Para Haraway, seria necessário romper com essa noção do ser mulher, entendendo a identidade como coalizão política baseada na afinidade e não em uma identificação concebida como “natural”. A bióloga enxerga no ciborgue um modelo para essa nova política de identificação. O que ela entende pelo termo nada mais é do que a fusão de animal e máquina, somos nós e nossa relação com nossos aparelhos eletrônicos e digitais.

As preocupações feministas estão dentro da tecnologia, não são um simples verniz retórico. Estamos falando de coabitação: entre diferentes ciências e diferentes formas de cultura, entre organismos e máquinas. Penso que as questões que realmente importam (quem vive, quem morre e a que preço) – essas questões políticas – estão corporificadas na tecnocultura. Elas não podem ser resolvidas de nenhuma outra maneira. (HARAWAY Apud KUNZRU, 2009)

Figura 1: Retrato de Donna Haraway. Biologa, filósifa e escritora feminista, Haraway é professora de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Seus trabalhos influenciaram os chamados Estudos Culturais e Estudos de Mulheres. 

Haraway era contra o discurso de naturalização do “ser mulher” na medida que, por muitas gerações, foi dito às mulheres que elas são “naturalmente” fracas, submissas, excessivamente emocionais e incapazes de serem racionais. Que faziam parte de “sua natureza” serem mães em vez de executivas, que elas preferiam as tarefas do lar a estudar Física. E, se todas essas coisas são naturais, significa que não podem ser mudadas. Esse seria o fim da história, e não faria sentido nenhum engajamento. Mas sabemos que não há nada de natural nisso.  Essa natureza feminina nada mais é do que fruto de uma construção social patriarcal, e é a partir daí que entendemos a necessidade do feminismo para desconstruir esses discursos naturalizantes, mas também os biologizantes.

Diferentemente da identidade “mulher” de algumas correntes do movimento das mulheres brancas estadunidenses, não existe, aqui, qualquer naturalização de uma suposta matriz identitária: essa identidade é o produto do poder da consciência de oposição.(HARAWAY, 2009, p.49)

Quando Donna Haraway se entende como ciborgue, ela não está afirmando ser diferente ou especial. Para ela, as realidades da vida moderna implicam uma relação tão íntima entre as pessoas e a tecnologia que não é mais possível dizer onde nós acabamos e onde as máquinas começam. Ela é famosa pela sua afirmação “prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa”, que desafiava a tradicional concepção feminista de que a ciência e a tecnologia são pragas patriarcais a assolar a superfície da natureza. Como uma ciborgue, Haraway é um produto da ciência e da tecnologia; ela não vê muito sentido no assim chamado “feminismo da deusa”, que prega que as mulheres poderão encontrar a liberdade apenas na medida que se desprenderem do mundo moderno e descobrirem sua suposta conexão espiritual com a Mãe Terra. (KUNZRU, 2009)

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de “experiência das mulheres”. Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também de experiência vivida – uma experiência que muda aquilo que conta como experiência feminina no final do século XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica. (HARAWAY, 2009, p.36)

Algumas definições de ciberfeminismo também foram oferecidas principalmente nos anos 90, em escritos e manifestações artísticas por pessoas como Sadie Plant, o grupo autraliano VNS Matrix, Linda Dement, Rosi Braidotti, Alluquere Rosanne Stone, entre outras. O ciberfeminismo, segundo Plant, escritora e filósofa inglesa, é “uma aliança entre as mulheres, a maquinaria e as novas tecnologias. Existe uma velha relação entre a tecnologia da informação e a libertação das mulheres”.

 Figuras 2 e 3: All New Gen – VNS MATRIX (1993): as ativistas pioneiras do Ciberfeminismo, o coletivo australiano VeNuS Matrix (1991-1997). O VNS Matrix era composto por Josephine Starrs, Julianne Pierce, Francesca da Rimini e Virginia Barratt. Perpetuou uma série de intervenções ciberfeministas voltadas para garotas. Fonte: http://vnsmatrix.net/  

Segundo Lemos (2009), a criatividade artística é um elemento importante do ciberfeminismo e sua característica mais intrínseca: “(…) o feminismo e a arte feminista, insistiram na importância do gênero como uma ordem absolutamente social e como uma política de dominação em todas as camadas da sociedade, camadas públicas ou pessoais” (LEMOS, 2009, p.22). Isto é, a arte se tornaria uma das primeiras formas de comunicação desse movimento e muito significante para assimilarmos a crítica às estruturas de opressão de gênero. Podemos perceber isso ainda hoje, quando muitas mulheres artistas usam de sua arte para fazer diversas críticas ao mundo machista, e notamos uma fácil assimilação e engajamento nessa forma de comunicação – e o meio cibernético foi e é essencial para trocarmos e disseminarmos essas críticas.

Muitos artistas estão contribuindo para uma explosão da arte corporal na rede, mas a maior parte é uma simples transposição do que já existe em outros meios. “O Ciberfeminismo centrado na arte corporal está começando a ganhar vida na rede. Como era de se esperar, a vagina e o clitóris têm um site em honra em muitos dos trabalhos ciberfeministas, como o do VNS Matrix. “Cunt art” foi um violento, feliz e libertário símbolo da união de artistas e ativistas feministas na década de 70.” (WILDING, 1997)

Figura 4: Cartaz para a Marcha das Vadias do RJ, produzido em 2014, por Bárbara Gondar, criadora do zine feminista e página do Facebook “Xereka”. Fonte: https://www.facebook.com/xerecaxereca  

Mesmo com seus problemas teóricos, o ciberfeminismo, por se apropriar das tecnologias de comunicação para seu ativismo, ganhou diferentes matizes e adaptações em diferentes partes do mundo. No contexto brasileiro e no restante da América Latina, ele é bastante recente. O CEMINA, por exemplo, focou sua atuação nas diferentes realidades sociais de acesso à tecnologia das mulheres brasileiras, fazendo jus a um dos principais preceitos propostos por Donna Haraway, que é o de “utilizar as tecnologias de rede para a modificação da realidade político-social das mulheres” (HARAWAY, 1985, p. 47)

De fato, o Manifesto Ciborgue de Haraway se coloca como um marco para o movimento como um todo, ao afirmar que o ciborgue seria não só um modelo inevitável de resolução da vida moderna, mas também nossa antologia. Nesse contexto, o ciberfeminismo se tornou uma busca contínua pelo reconhecimento das diferenças de poder entre mulheres e homens previstas por Haraway em 1984, especificamente no discurso digital. Reconhecemos que ao longo do tempo inúmeras ações que visaram mudar essa situação, sempre questionando o status quo através de diferentes estratégias escolhidas para desafiar esse sistema, sempre variando de acordo com essas diferenças contextuais e culturais. “O ciberfeminismo é político, e não uma desculpa para a falta de ação no mundo real, e é inclusivo e respeitável em relação às muitas culturas que as mulheres habitam”. (HAWTHORNE e KLEIN, 1999:2)

Desde seu surgimento até a atualidade, o ciberfeminismo não é um movimento único, se apresentando de diversas formas e em diferentes grupos. O que pretendemos aqui é apenas um breve entendimento de como surgiu esse movimento, mas seus desdobramentos foram diversos ao redor do mundo desde então e, para descrevê-los, precisaríamos de mais do que uma tese. Mas certamente podemos identificar em seu processo algo que o diferencia de outros feminismos anteriores. Enquanto os movimentos dos anos 60 e 70 se multiplicaram pelo resultado de sucessivas cisões internas, resultando em grupos que buscavam ações identitárias afins, os grupos ciberfeministas utilizaram a internet para trocar experiências, se reunir e discutir as relações não só entre gênero e tecnologia, mas também diferentes concepções, novas e antigas do “ser mulher”, questões que vivenciamos no dia a dia, o que torna a teoria de Haraway bastante precisa na proposta de uma nova política identitária com base na afinidade. Dessa forma, mesmo com seus variados grupos identitários, o movimento buscou uma aproximação para trocas e ações de experiências de diferentes fundos culturais em conjunto.

O ciberfeminismo surgiu em uma época em que são cada vez mais plurais e diversas as narrativas, as identidades e até mesmo as próprias tecnologias. “O significado da comunicação e da informação, e consequentemente, sua globalização, criaram novos espaços de ação coletiva que são considerados na análise do objeto” (LEMOS, 2009, p.9). Ele foi de suma importância para o feminismo e possibilitou mudanças no padrão cultural da mulher de uma maneira libertadora dentro das novas tecnologias, permitindo uma troca infinita de informações. Porém, sempre devemos ter em mente que devemos tomar cuidado e fazer um uso consciente delas. Afinal, nem tudo são flores, e há a desinformação e a utilização do mesmo espaço cibernético para reprodução de opressões como a pornografia de vingança, bullying, ataques racistas e claro, o anti-feminismo, entre outros, além das equivocadas deslegitimações da internet como um possível espaço de ativismo.

Proponho aqui a reflexão de que, se ao sermos ciborgues não podemos saber onde o corpo humano acaba para que comece a máquina, creio que também não podemos mais desassociar nos dias de hoje feminismo e ciberespaço, afinal, onde termina o ativismo per se e onde começa o ativismo de internet? Creio que tenham se tornado ferramentas complementares indissociáveis, ainda que tenham seus diferentes papéis para o movimento feminista. Deixo aqui a excelente conclusão de Lemos em sua Tese:

A Internet, instrumento basal do Ciberfeminismo, é uma força poderosa para conectar e dividir, o conhecimento e as fontes. Mas também, é a tecnologia que originalmente pretendia a dominação global e militar. Há muitos benefícios, desde que tenhamos em mente o uso consciente e o conhecimento histórico de seu contexto. Crítica é a resistência à imersão total na tecnologia que resulta no destacamento do mundo ao invés do engajamento com este, e 122 também, um dos pressupostos para que o movimento feminista como um todo mantenha sua força diante das discussões sobre gênero e tecnologia. (LEMOS, 2009, p.121-122)

 

REFERÊNCIAS:

HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.;

KUNZRU, H.; TADEU, T. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 33-118

KUNZRU, Hari. Você é um ciborgue. Encontro com Donna Haraway. In: HARAWAY, D.;KUNZRU, H.; TADEU, T. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 17-32.

LEMOS, Marina. Ciberfeminismo: Novos discursos do feminino em redes eletrônicas. Tese (Mestrado em Comunicação e Semiótica). São Paulo: PUC-SP, 2009.

WILDING, Faith. NeMe: Where is Feminism in Cyberfeminism?, disponível em: www.neme.org/main/392/cyberfeminism. Acesso em 28 de julho de 2016.

 

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