Recentemente a notícia de uma decisão da Justiça Federal causou grande comoção popular. Contrariando a regulação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a decisão autoriza, em caráter limitar, o tratamento de gays, lésbicas e bissexuais com terapias de “reversão sexual”. Porém, como amplamente apontado nas críticas à esta decisão, homossexualidade e lesbianidade não são doenças. Nem a bissexualidade, apesar de esquecerem de mencionar.

No entanto, existem doenças – essas, sim, efetivamente doenças – que afetam duramente a população LGBT, tais como a depressão e diversos transtornos mentais, em virtude da discriminação que sofrem. Apesar desse tema afligir toda população LGBT, neste dia da visibilidade bissexual, e levando também em consideração a perspectiva de gênero que sempre norteia nossas publicações, vamos nos ater a discutir as particularidades dos transtornos psiquiátricos em mulheres bissexuais.

Vale ressaltar: nosso objetivo não é desmerecer as diversas formas de discriminação que gays e, principalmente, lésbicas e transexuais sofrem em nossa sociedade, muito menos fazer uma hierarquia de opressão dentre LGBTs. Apenas buscamos destacar alguns pontos relativos à saúde mental da população bissexual, com base em pesquisas sobre o tema.

 

Bissexualidade e saúde mental

 

Segundo um estudo publicado em 2015 na revista científica “Journal of Public Health”, as mulheres bissexuais têm 64% mais chance de enfrentar distúrbio alimentar, probabilidade 37% maior de sofrer com automutilação e estão 26% mais propensas a sofrer com quadros de depressão, quando comparadas às mulheres lésbicas.

A investigação científica foi realizada pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, a partir de entrevistas com 5.706 mulheres com idade superior a 14 anos e que moravam no Reino Unido. “Bissexuais têm um risco maior de serem marginalizadas nas comunidades gays, assim como no resto da sociedade”, afirmou Ford Hickson, principal autor do artigo científico, referindo-se a uma dupla discriminação que mulheres bissexuais sofrem.

Essa pesquisa foi amplamente divulgada nos últimos anos pela comunidade bissexual por apresentar dados comparativos entre mulheres bissexuais e mulheres lésbicas, ao invés de apenas fazer um comparativo à mulheres heterossexuais. Esse é um fator importante, pois permite verificar as particularidades enfrentadas pelas pessoas bissexuais, lésbicas e gays separadamente.

A pesquisa foi também muito veiculada por confrontar a ideia de que mulheres bissexuais apenas sofrem em virtude de sua orientação sexual quando estão em relacionamentos com mulheres. Essa ideia parte do pressuposto de que quando mulheres bissexuais estão em um relacionamento com um homem, a sociedade vê aquele casal como hétero. E, caso esteja em um relacionamento com uma mulher, a sociedade vê aquele casal como um “casal lésbico”.

Além do óbvio apagamento da identidade bissexual contido nessa perspectiva, ela considera que a discriminação ocorre apenas por parte de pessoas desconhecidas, que não teriam como saber que uma ou as duas mulheres, por exemplo, que estão andando na rua de mãos dadas, são bissexuais, e, assim, são confundidas como um sendo lésbicas.

É um conceito bem limitado de discriminação pois ignora toda uma gama de interações sociais igualmente relevantes em se tratando de verificar a discriminação sofrida por um grupo, como entre amigos, família e trabalho, por exemplo.

O estudo, no entanto, intitulado “Poorer mental health in UK bisexual women than lesbians: evidence from the UK 2007 Stonewall Women’s Health Survey”, aponta que os piores índices relacionados à saúde mental de mulheres bissexuais está intimamente ligado à bifobia (sim, utilizando exatamente este termo), uma vez que estão mais propensas a sofrer discriminação por parte de conhecidos, possivelmente reduzindo suas redes pessoais de apoio. A “dupla discriminação” enfrentada pelas bissexuais, como mencionada pelo pesquisador anteriormente, aliada à falta de apoio pessoal e social, podem ser os motivos dos baixos índices relativos à saúde mental de bissexuais quando comparados às lésbicas, de acordo com as conclusões desta pesquisa.

Há outros estudos que sustentam esses dados.

Uma pesquisa publicada na British Journal of Psychiatry, em 2002, também revelou que as pessoas bissexuais possuem pior saúde mental quando comparada a gays e lésbicas. Os resultados apontam maiores índices de ansiedade e depressão em bissexuais, demonstrando também que estas pessoas possuem menos apoio familiar, enfrentam mais adversidades entre amigos, além de demais questões que afetam diretamente a saúde mental de um indivíduo. Neste mesmo sentido, uma pesquisa canadense revelou que mulheres bissexuais têm 5.9 mais chances de reportarem tendências suicidas do que pessoas heterossexuais, uma taxa mais alta também quando comparada a gays e lésbicas. Outra pesquisa, desta vez da Austrália, também aponta maiores problemas de saúde mental entre bissexuais quando comparados a estes mesmos grupos.

Todas essas pesquisas são referenciadas no relatório elaborado em 2012 pela biUK, uma organização formada por acadêmicos e pesquisadores do Reino Unido, intitulado “The Bissexual Report: bisexual inclusion in LGBT equality and diversity”. Segundo o documento, além das questões mencionadas anteriormente, pesquisas também indicam experiências negativas de bissexuais com profissionais de saúde. Alguns profissionais, por exemplo, se apresentaram como abertamente desconfortáveis com a bissexualidade ou a viam como uma doença. Esses fatores limitam o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde, o que, obviamente, tem consequências negativas à saúde da população bissexual.

 

As causas

 

A bissexualidade tem sido invisibilizada em diversos outros meios: nas áreas de psicologia e psiquiatria, em políticas públicas e legislações, na mídia mainstream e, infelizmente, no próprio meio LGT. Essa marginalização impede que as questões e especificidades da população bissexual sejam entendidas e enfrentadas, consequentemente dando espaço para proliferação da bifobia.

Bifobia é o nome que se dá a formas de violência, preconceito e discriminação direcionadas à pessoas bissexuais. Se manifesta de diversas formas, como, por exemplo:

  • pela negação da bissexualidade como uma orientação sexual genuína (e não fruto de uma “confusão”, “fase” ou “indecisão” em ser lésbica ou hétero);
  • pela invisibilização, ao assumir que as pessoas mulheres são lésbicas ou heterossexuais, esquecendo que a bissexualidade existe;
  • pela exclusão de pessoas bissexuais de espaços, negligenciando suas demandas ou creditando que elas estão necessariamente inseridas dentro das questões relativas das lésbicas ou gays;
  • pela falta de políticas públicas, por exemplo, de saúde, com foco em pessoas bissexuais;
  • por estereótipos que não são inerentes à bissexualidade, como afirmação de que estas pessoas são promíscuas, espalham doenças, são incapazes de serem fiéis em relacionamentos monogâmicos, que estão sempre sexualmente disponíveis, entre outros, o que na verdade nada tem a ver com orientações sexuais, mas sim com comportamento de qualquer ser humano que exerce as particularidades de sua vida sexual e afetiva.

Bissexuais se sentem constantemente deslocados da sociedade. Por um lado, são rigidamente ensinados que a heterossexualidade é o único caminho aceitável de manifestarmos nossos sentimentos. Portanto, ao divergirem da heteronormatividade, bissexuais sofrem discriminação. Por outro lado, bissexuais também não se sentem à vontade também em ambientes que se apresentam como não-heteronormativos.

Em ambos, bissexuais frequentemente são vistos como “meio gays” ou “meio lésbicas”, como numa espécie de incompletude. Alguns dizem que bissexuais apenas são “gays enrustidos” ou lésbicas que sentem vergonha de se assumirem lésbicas. Algumas vezes são consideradas mulheres hétero que apenas querem “se divertir” com lésbicas, outras vezes maldosamente são acusadas de ludibriar mulheres lésbicas para, depois, assumirem relacionamento com homens. Enfim, muitas suposições são feitas em relação à bissexualidade sem que mulheres bissexuais sejam parte ativa dessa narrativa. É possível notar a constante conotação moral nessa lógica, além do julgamento de caráter apenas com base na orientação sexual de uma pessoa, o que é grave, uma vez que evitar este tipo de pensamento é uma das principais questões da luta do meio LGBT.

De modo geral, as pesquisas apresentadas revelam a falta de compressão que as mulheres bissexuais vivem tanto em grupos héteros, quanto LGBT, e as consequências são efeitos nefastos. Fica o desejo de que, nesse dia da visibilidade bissexual, busquemos a cura para todas as formas de discriminação e que a informação seja a dose que faltava para amenizar o problema.

Bissexualidade não é doença, mas bifobia adoece mulheres.

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