No Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, existe uma depreciação e uma resistência descomunal em torno da palavra “feminismo”. Se evocarmos todas as conquistas do movimento feminista para todas as camadas sociais, transformando as relações entre homens e mulheres, torna-se inexplicável o porquê de sua desconsideração pelos formadores de opinião pública por aqui. Infelizmente, por não ter conseguido se impor como motivo de orgulho para a maioria das mulheres, a reação desencadeada pelo antifeminismo foi avassaladora, pois não só promoveu um desgaste semântico da palavra, como transformou a figura da feminista numa mulher mal amada, “machona”, “feia” e um ser oposto a imagem de “feminina”.

Provavelmente, por receio de serem rejeitadas ou de ficarem “mal vistas”, muitas de nossas escritoras, intelectuais, e a brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar tal título. Também é uma derrota do feminismo permitir que as novas gerações desconheçam a história das conquistas femininas, os nomes das pioneiras, a luta das mulheres de antigamente que, de peito aberto, denunciaram a discriminação, por acreditarem que, apesar de tudo, era possível um relacionamento justo entre os sexos.

Soma-se a isso o desconhecimento acerca da história do feminismo. A bibliografia, além de limitada, costuma abordar fragmentariamente os anos de 1930 e a luta pelo voto, ou os anos de 1970 e as conquistas mais recentes. Na maior parte das vezes, entende-se como feminismo apenas o movimento articulado de mulheres em torno de determinadas bandeiras; e tudo o mais fica relegado a notas de rodapé.

 

Problemas

 

A literatura, assim como a arte em geral, foi, por muito tempo, realizada pelos homens, geralmente brancos, da classe média e heterossexuais, o que sempre excluiu expressões artísticas feitas por negros, mulheres e outras minorias marginalizadas por uma sociedade baseada no elitismo, no branquismo e no gênero masculino. Isso levou, historicamente falando, à formação de um modelo literário excludente, estabelecido de acordo com determinada sociedade e sua cultura.

É isso que explica a escassez, por séculos, de obras de escritores vindos das ditas minorias como negros, mulheres e homossexuais. Para que a mulher conseguisse alguma representatividade, foi preciso que, mediante a crítica feminista, começassem os questionamentos quanto à construção social e cultural, o que a teoria da desconstrução chama de logocentrismo e falocentrismo.

 

Feminismo e literatura

 

O feminismo começou a questionar a organização sexual, social, política, econômica e cultural de um mundo profundamente hierárquico, autoritário, masculino, branco e excludente. Consequentemente, o pensamento ocidental do cânone literário, também veio a ser alvo de julgamento e análise.

Mais recentemente, feministas de outras áreas têm contestado o conceito tradicional de identidade e tentado articular formas em que as mulheres possam reconhecer suas diferenças e formar alianças através dessas diferenças. Mulheres negras, operárias, trans e lésbicas começaram a questionar uma identidade “mulher”, construída como universal, mas que efetivamente, silenciava todas aquelas que não se enquadravam no modelo. Por isso, a importância do conceito de diferença nas mais recentes articulações acerca de gênero.

Para que reais mudanças aconteçam no mundo concreto, o projeto de emancipação da mulher exige a reinterpretação da literatura, principalmente com relação aos textos escritos por homens, cuja visão em maior ou menor grau, externam mitos que não tem outro papel senão justificar a submissão feminina.

Os estudos feitos até agora sobre o assunto, mostraram que a mulher, historicamente e culturalmente, definiu-se por oposição: a mulher é o “Outro” em relação ao masculino. Na contemporaneidade, após percorrer um longo trajeto de lutas pela afirmação de sua identidade, a mulher conquistou, em certa medida, um espaço próprio na sociedade. Apesar das reações de estranhamento, ela deixou a posição de objeto para tornar-se efetivamente sujeito, subvertendo uma tradição milenar de silenciamento e reclusão nos limites da casa. Apesar de haver ainda resquícios de um pensamento opressor que teima em barrar o processo de construção indentitária da mulher, as conquistas das lutas femininas se fazem fortemente presentes na sociedade.

No campo das ideias, o pensamento feminista discutiu as noções canônicas de identidade, lutou pelo poder interpretativo, desconstruiu noções centrais do pensamento hegemônico e defendeu, com firmeza, o direito de falar e representar-se nos mais diversos domínios políticos e intelectuais. A partir da década de 1970, acelerou-se uma “marcha” que fez aflorar vontades e desejos acumulados no imaginário feminino. Assim, o século XX se despediu com muitas mudanças de comportamento de gênero, através das transformações decorrentes da trajetória da mulher. Tais transformações também atingiram os homens, os quais procuraram ajustamento na nova paisagem social redesenhada pela mão feminina. As transformações alteraram o modelo em vigor e reclamou uma acomodação no olhar masculino que se quer menos egocêntrico e menos autorreferente. Neste contexto, a desconstrução dos paradigmas universais das mulheres vem acontecendo em favor de uma imagem que garanta o surgimento de um sujeito histórico consciente de deveres e direitos.

 

Personagens femininas

 

Analisar a produção literária da atualidade é, sem dúvidas, fazer uma leitura atenta da vida que acontece fora dos livros. Por muito tempo, a compreensão do texto literário permaneceu atada a posicionamentos fechados. No livro Literatura e Sociedade, de Antonio Candido, vemos que o autor discute sobre o melhor vínculo entre a obra e o ambiente.

Inicialmente, buscava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra estavam relacionados à condição de mimese, ou seja, de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois a crítica literária seguiu o caminho oposto procurando mostrar que as circunstâncias de uma obra seria um elemento secundário, e a importância dela derivaria dos aspectos formais com que foi forjada e não de condicionamentos sociais. E hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas. Acredita-se que com o novo panorama social, a totalidade da obra só pode ser compreendida pela união de texto e contexto, onde forma e conteúdo são necessários no processo interpretativo. Nesse sentido, um texto literário não é melhor porque reflete bem a sociedade, mas porque utiliza os espaços vagos para enriquecimento das possibilidades do leitor, levando em consideração que o sentido não está no texto, mas a partir dele. Ou seja, por ser uma construção simbólica, uma obra literária pode veicular preconceitos e estabelecer discriminação ou ser um elemento de emancipação. Seguindo o pressuposto de que os seres humanos se constituem na linguagem, considera-se que a mesma pode ser também um elemento de afirmação da validade da experiência do feminino, na medida em que propõe uma (re)avaliação do discurso por meio de estratégias que possibilitem tanto a desconstrução do preconceito quanto a construção do sujeito.

Nas obras atuais, as personagens femininas são postas em um claro contexto de transgressão com a tradição, libertando-as de qualquer agenciamento. Há uma ruptura dos padrões conservadores impostos pela autoridade patriarcal procurando desencadear num abalo nas relações de poder. Percebe-se, através das narrativas escritas hoje (por autores e autoras), que a libertação da mulher envolveu um percurso longo e difícil, pois foi necessário desconstruir os conceitos tradicionais, redesenhar os papéis de homens e mulheres e prepará-los para assumir as novas tarefas com igualdade e respeito. A transformação do homem – leitor e autor –  também foi uma tarefa difícil, pois ele precisou superar princípios ancestrais que pertenciam ao inconsciente coletivo. Isto provocou um abalo nas estruturas que até então eram consideradas como sólidas.

 

A importância de se ler e estudar mulheres

 

A literatura de autoria feminina, publicada à medida que o feminismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge com a missão de trazer outros olhares, posicionados a partir de outras perspectivas.

De acordo com a ensaísta, escritora, editora, crítica literária e pesquisadora brasileira, Heloísa Buarque de Hollanda, no ensaio Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil: Uma primeira abordagem, foi a partir do final da década de 70, que vários estudos começaram a identificar uma “insistente presença da voz feminista” como um dos traços mais salientes da cultura pós-moderna. O próprio Lyotard, um dos mais contraditórios estudiosos do pós-moderno, apesar de irônico, não deixa de reconhecer que “as mulheres estão descobrindo uma coisa que pode causar uma incrível revolução no ocidente, alguma coisa que a dominação (masculina) nunca quis revelar: que a classe que se estabelece sobre todas as classes é apenas uma entre muitas”.

Hollanda diz, que no caso da tendência “literatura feita por mulheres” o reconhecimento institucional é, sem dúvida, um passo importante, pois até muito recentemente essa literatura não era considerada objeto legítimo de pesquisa. Nesse sentido, é interessante observar a proliferação de teses acadêmicas sobre autoras femininas e os inevitáveis questionamentos sobre a construção da historiografia literária, sobre a noção canônica de “gênero literário”, incluindo a importantíssima questão da “oralidade” na constituição da literatura, e dos paradigmas estabelecidos para o mercado de valor literário.

Para termos uma ideia da presença dos estudos sobre escritoras ou sobre o tema mulher nas teses de literatura, na década de 90, Heloísa Buarque de Hollanda trabalhou, a título de exemplo, com teses defendidas na Faculdade de Letras da UFRJ e da PUC RJ e expos no seu ensaio. Numa área bastante tradicional como a de Letras, o percentual apresentado no ensaio mostra a tendência de expansão desta linha de trabalho. Por outro lado, as perspectivas abertas pelos estudos sobre a mulher na literatura vão de encontro àquelas dos outros grupos identificados como emergentes, como os de literatura infanto-juvenil, literatura popular (oral e cordel) e literatura africana.

Não seria correto afirmar que os estudos sobre mulher na literatura, bem como os das outras áreas emergentes, já tenham constituído um corpus teórico capaz de intervir, influenciar ou mesmo se fazer presente na teoria literária strito sensu no Brasil. Entretanto, a conjuntura atual da área de letras, aponta para a identificação de um campo potencialmente receptivo do reconhecimento, a médio prazo, destes estudos como pesquisas de vanguarda na área. Por mera curiosidade, é bom salientar um dado significativo no estudo da autora: 90 % dos estudantes de letras são do sexo feminino.

 

Considerações (nunca) Finais

 

A dominação que as mulheres sempre sofreram é um dado histórico. A história e os cânones literários foram definidos quase totalmente pelo grupo dominante dos homens, brancos, europeus (colonizadores) e economicamente privilegiados; o discurso dos representantes de todos os outros segmentos da sociedade foi ignorado, ou menosprezado (e ainda hoje se depara com os estereótipos e entraves históricos para sua legitimação). Por isso, a análise do papel das mulheres (sobretudo organizadas sob as bandeiras do feminismo) sendo pioneiro na contestação dessa estrutura é essencial. O saber rompe verdades predeterminadas e institui novas práticas discursivas e interpretativas que vão originar novas práticas sociais.

Em um mundo de igualdade crescente, homens e mulheres são levados a realizar mudanças fundamentais em seus pontos de vistas e comportamento. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades; isto é condição necessária para a vida em sociedade. É preciso refletir sobre a condição feminina para acelerar o processo de autoconhecimento e autodescoberta, deixando às mulheres das décadas que ainda virão, ao menos, uma perspectiva de esperança de que é possível ser livre, ser feliz e escolher seu próprio destino.

Tati Andrade é balzaquiana, aquariana não-praticante, amante das artes, dos sons e trocadilhos. É educadora há mais de 10 anos por ser o único meio que encontrou de manter-se viva e sã quando todo o resto é absurdo
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Referências:

BRITO, Dislene Cardoso de. Transgressão e (des)ordem em Lavoura arcaica e Um copo de cólera : a construção identitária da mulher nas narrativas de Raduan Nassar / Dislene Cardoso de Brito. – 2010. 120 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2010.

SILVA, Mirian Cardoso da; COQUEIRO, Wilma dos Santos. A representação da mulher pós-moderna em contos de escritoras brasileiras contemporâneas. In: Revista Alpha, n. 16, dez. 2015.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil: umaprimeira avaliação. In: COSTA, Albertina de Oliveira,

BRUSCHINI, C. (orgs.).Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, São Paulo, FCCh, 1992.

DUARTE, Constância Lima. Feminismo e literatura no Brasil. In: Estudos avançados, São Paulo, 2003, v.17, n.49, p.151-172.

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