Ilustração: Raquel Thomé 

“The village where men are banned”, por Julie Bindel.

Jane diz que foi estuprada por três homens vestindo uniformes Gurkha. Ela estava reunindo o rebanho de bodes e ovelhas de seu marido e carregando lenha quando foi atacada. “Eu me sentia tão envergonhada e não podia falar sobre o que aconteceu com outras pessoas. Eles fizeram coisas horríveis comigo”, diz Jane, seus olhos vibrando de dor.

Ela tem 38 anos mas parece consideravelmente mais velha. Me mostra uma cicatriz profunda em sua perna onde foi cortada por pedras quando foi empurrada para o chão. Em uma voz quieta e hesitante, continua sua história. “Eventualmente contei para a mãe de meu marido que eu estava doente, porque precisava explicar as feridas e minha depressão. Me deram os medicamentos tradicionais, mas não me ajudou. Quando ela contou para meu marido [sobre o estupro], ele me bateu com um cano. Então eu desapareci e vim para cá com minhas crianças”.

 

Na companhia de mulheres: Judia, 19, veio para a vila de Umoja há seis anos, fugindo de casa para escapar de ser vendida em um casamento forçado. Umoja foi fundada em 1990 por quinze mulheres que foram estupradas por soldados britânicos.

 

Jane é uma residente de Umoja, a vila na pradaria de Samburu, no região norte do Quênia, protegida por uma cerca de espinhos. Eu cheguei à vila na hora mais quente do dia, quando as crianças estão dormindo. Bodes e galinhas vagam pelo lugar evitando os tapetes de bambu em que as mulheres sentadas fazem jóias para vender aos turistas, seus dedos trabalhando rapidamente enquanto falam e riem umas com as outras. Roupas secam no sol de meio dia em cima de barracas feitas de estrume de vaca, bambu e varas. O silêncio é quebrado pela canção de um pássaro, estridente, repentino e glorioso. É uma típica vila de Samburu, exceto por uma coisa: homens não vivem aqui.

Minha chegada é recebida por canto e dança pelas mulheres. Elas vestem um traje tradicional de Samburu de saias estampadas, blusas de cores brilhantes e uma kanga (um agasalho colorido) presa em seus ombros. Colares feitos de correntes de miçangas vividamente coloridas formam um impressionante desenho circular em volta de seus pescoços. As roupas coloridas contrastam com o ar seco e terroso, e o sol árduo expõe a poeira que pontilha o ar.

 

“Eu ouvi de uma comunidade de mulheres em uma fofoca na minha antiga vila”: Seita Lengima, 68.

 

A vila foi fundada em 1990 por um grupo de quinze mulheres que sobreviveram a um estupro coletivo de soldados britânicos locais. Agora a população de Umoja se expandiu para incluir qualquer mulher que escapa de casamento infantil, mutilação genital, violência doméstica e estupro – sendo que todos esses casos são normas culturais em Samburu.

Rebecca Lolosoli é a fundadora de Umoja e a matriarca da vila. Ela estava em um hospital se recuperando de um espancamento por um grupo de homens quando teve a ideia de uma comunidade feita exclusivamente por mulheres. O espancamento foi uma tentativa de ensiná-la uma lição por ter ousado falar com as mulheres de sua vila sobre seus direitos. Samburu é estreitamente próximo da tribo Maasai, falando uma língua similar. Eles normalmente vivem em grupos de cinco a dez famílias e são semi nômades pastorais. Sua cultura é profundamente patriarcal. Nos encontros da vila, os homens se sentam em um círculo fechado para discutir os importantes problemas da comunidade, enquanto as mulheres se sentam do lado de fora e apenas ocasionalmente são autorizadas a expressarem uma opinião. Os primeiros membros de Umoja vieram todos das vilas isoladas de Samburu espalhadas pelo Vale do Rift. Desde então, mulheres e garotas que escutam sobre o refúgio vão até ele e aprendem como ter um ofício, cuidar das crianças e viver sem o medo da violência masculina e dos preconceitos sexistas.

No momento vivem 47 mulheres e 200 crianças em Umoja. Apesar das habitantes viverem de um modo extremamente humilde, essas mulheres e garotas empreendedoras ganham uma renda regular que fornece comida, roupas e proteção para todas. As líderes da vila comandam um acampamento, um quilometro distante do rio, em que grupos de turistas safaris se hospedam. Muitos desses turistas e outros passantes de uma vizinhança com reservas naturais também visitam Umoja. As mulheres cobram uma modesta entrada e esperam que, uma vez na vila, os visitantes comprem as jóias feitas pelas mulheres da área artesanal.

Lolosoli é alta e de porte poderoso, sua cabeça raspadas adornada com o tradicional ornamento feito de miçangas. Um grupo de mulheres de Umoja me diz que Lolosi enfrentou repetidas ameaças e ataques dos homens locais desde que formou a vila, mas ela não se intimida. Eu falei com Lolosoli antes de viajar até Umoja – ela estava visitando sua filha na Alemanha durante minha visita – e ela parecia orgulhosa do que ela e as outras mulheres conquistaram nos 25 anos desde que a vila foi fundada. Uma das características únicas da comunidade de Umoja é que algumas das residentes mais experientes treinam e educam mulheres e garotas que vivem ao redor das vilas de Samburu sobre assuntos como casamento precoce e mutilações genitais.

 

China Laprodati com seu bebê vendendo bijueterias.

 

Ornar colares feitos de miçangas é recorrente na cultura de Samburu. As garotas ganham seus primeiros colares de seus pais em uma cerimônia chamada de “beading”. O pai escolhe um “guerreiro” mais velho com o qual a filha começa um casamento temporário. Gravidez é proibida, mas métodos contraceptivos são indisponíveis. Se a criança engravida, ela é forçada a abortar, conduzida por outras mulheres da vila.

“Se uma garota se casa em uma idade jovem, ela não é competente para ser uma mãe. No parto, elas enfrentam muitos desafios: elas sangram e se machucam, porque são jovens”, diz Milka, chefe da escola acadêmica construída na terra das mulheres de Umoja que é aberta para crianças de outras vilas. “Até mesmo executar suas obrigações e tarefas é difícil para elas. Elas são largadas para cuidar dos animais”.

Debaixo da “árvore do discurso”, em que as mulheres se reúnem para tomar decisões, eu falo com várias residentes entusiasmadas para contar suas histórias.  “Eu aprendi coisas aqui as quais mulheres são proibidas de saber”, diz Nagusi, um mulher de meia idade com cinco filhos.

“Eu posso ganhar meu próprio dinheiro e, quando um turista compra algum dos meus colares, me sinto tão orgulhosa”.  Memusi é a anfitriã oficial. Ela anda até mim, as miçangas adornando sua cabeça e pescoço fazem um som delicado na brisa gentil. Ela fugiu de seu marido depois de um único dia de casamento, em 1998. “Meu pai me trocou por vacas quando eu tinha 11 anos de idade”, ela me diz com a ajuda de uma intérprete. “Meu marido tinha 57 anos”.

Judia, uma mulher confiante e extrovertida de 19 anos de idade, veio para Umboja quando tinha 13, fugindo de casa para evitar ser vendida em casamento. “Todos os dias eu acordo e sorrio para mim mesma porque estou cercada de ajuda e apoio”, diz Judia, suas longas tranças presas em um colorido caminho de miçangas.

“Do lado de fora, mulheres são governadas por homens para que elas não possam conquistar mudança alguma”, diz Seita Lengima, uma mulher mais velha que conheci na sombreada área comunal da vila. “As mulheres de Umoja são livres”.

Curiosamente, para uma vila composta apenas de mulheres, há, aparentemente, muitas crianças ao redor. Como isso acontece? “Ah”, ri uma jovem mulher, “nós ainda gostamos de homens. Eles não são permitidos aqui, mas nós queremos bebês e mulheres precisam ter filhos, ainda que você não se case”.

Lotukoi é o único homem que conheço em Umoja. Ele chega à vila todos os dias, antes do sol nascer, para reunir os rebanhos. “Crianças, lenha e cozinha são trabalhos das mulheres e os homens cuidam dos animais”, ele me diz quando pergunto o porquê das mulheres precisarem de sua ajuda. “É engraçado porque você não vê os homens por perto aqui, mas você vê crianças pequenas, o que quer dizer que as mulheres vão encontrar homens do lado de fora”, ele diz.

Ainda há suspeitas sobre a vila na vizinhança. Na vila próxima, Samuel, o ancião da vila, me diz que “a maioria dos homens tem três ou quatro esposas em sua vila”. Ele está conversando com um pequeno grupo de homens segurando lanças de madeira e vestidos em coloridas vestes shukka. Eles parecem felizes em falar sobre Umoja e se animam quando pergunto como as mulheres conseguem resistir em um sociedade tão dominada por homens. “Essa é uma vila de mulheres que vivem sozinhas, que não são casadas – algumas são vítimas de estupro, outras de casos de casamento infantil. Elas pensam que estão vivendo sem os homens, mas isso não é possível”.

“Muitas delas acabam com bebês”, continua Samuel, fincando sua lança para enfatizar seu ponto, “porque elas encontram homens nas cidades e são seduzidas por eles, e homens vem até aqui de noite e entram em suas cabanas, ninguém os avista”. Todos os homens riem.

Uma jovem mulher em Umoja me diz que tem cinco crianças, todas com pais diferentes. “Não é bom não ser casada e ter filhos em nossa cultura”, ela me diz, enquanto limpa roupas de bebês em um balde de plástico azul, usando um pouco da preciosa água que coletou cedo naquela manhã próximo ao rio. “Mas é pior não ter nenhuma. Sem crianças nós somos nada”.

 

Brincadeiras infantis: crianças em idade pré-escolar. Cerca de 200 crianças vivem na vila.

 

Enquanto a comunidade de Umoja tem crescido, as memórias de um dos principais motivos para sua existência – o estupro a qual elas foram forçadas pelos soldados britânicos e gurkhas – não é esquecido. “Uma vez que uma mulher foi etuprada, ela nunca mais é limpa na cultura Islã e Qur’an. Não é justo, porque acontece acidentalmente. O marido poderia a levar para um teste de HIV para que eles continuassem suas vidas, cuidassem das crianças e as alimentasse”, diz Sammy Kania, 33 anos.

De volta à Umoja, sou convidada por Seita para conhecer sua cabana, com forte odor de fumo. É vazia por dentro exceto por um tapete no qual ela dorme, sua fogueira improvisada e um saco de papel cheio de feijões pretos que ela cozinha ao meio dia para a refeição comunal quando as crianças tem um intervalo da escola.

Eu pergunto como Seika soube de Umoja. “Eu ouvi de uma comunidade de mulheres em uma fofoca na minha antiga vila”, ela me conta e diz que se sentiu feliz desde o momento em que chegou. “Me deram um bode. Me deram água. Comecei a me sentir salva e segura”. Seika cuida de sua neta, a deixa na escola todos os dias antes de ir coletar água e lenha. O resto de seu dia é dedicado a fazer jóias. Ela me diz que foi estuprada pelos soldados britânicos. “Eu vim porque fui deixada sem marido. Depois do que os britânicos fizeram comigo, eu nunca mais seria capaz de me casar”.

Pergunto a Seita qual é sua idade e ela responde que não sabe. Ao me passar sua identidade, diz que aparentemente sua data de aniversário se encontra no documento. Como muitas mulheres mais velhas de Samburu, Seita não consegue ler ou escrever. Seu aniversário no documento data de 1928.

 

“Todo dia eu acordo e sorrio pra mim mesma”: Norkorchom de Turkana.

 

 

Eu me junto a um grupo de mulheres quando elas se reúnem debaixo da sombra de um bambu que serve como um espaço comunal. Quando cheguei à vila, perguntei se alguma dessas mulheres estaria preparada para falar comigo sobre suas experiências de violência sexual pelas mãos dos militares. “Eles botaram o pau deles em você, não botaram?” brinca Memusi. As mulheres, apesar de suas experiências horríveis, são capazes de rir.

Ntipaiyo, curvada pela idade e pelo trabalho pesado, as costelas visíveis através dos tecidos coloridos, está na vila há 15 anos. “Eu vim para cá por causa de problemas com meu marido”, ela me conta. “O exército britânico me pegou quando eu estava coletando lenha. Eram três deles. Me empurraram para o chão. Desde aquele dia, tenho sempre sentido dor em meu peito toda vez que me lembro”.

Em 2003, um grupo de mulheres de Umoja se encontram com um advogado da Leigh Day, um escritório situado na Inglaterra que assegura mensalmente cirurgias em Archers Post para trabalhar nos locais em que houveram feridos pelas bombas deixadas para trás pelo exército britânico.

As mulheres, enfim, revelaram as acusações de estupro com o atraso de 30 anos. A maioria das mulheres reportaram casos de estupros coletivos provocados por soldados que atacaram mulheres quando elas estavam buscando lenha ou água potável. Martyn Day, um dos sócios da Leigh Day, foi um dos advogados abordados pelas mulheres. Day e sua equipe reuniram um grupo de documentos originais, como relatórios policiais e médicos. Existe um expressivo número de crianças birraciais, ainda que relações entre Samburu e pessoas brancas não sejam conhecidas.

Day relatou seu desfecho com a Polícia Militar Real. “Contudo [a Polícia Militar] chegou a conclusão que cada um desses casos haviam sido forjados, mesmo nos casos identificados como mais fortes” conta Day. “Eles não fizeram testes de DNA nas crianças birraciais porque a estimativa é que houve entre 65,000 a 100, 000 soldados que estiveram no Quênia durante esse período de 30 anos”.

 

Gabriella, 24, reunindo lenha.

 

Quando a polícia militar concluiu sua investigação, Day solicitou os documentos de volta, mas lhe disseram que tudo teria sido perdido. Os documentos nunca foram reencontrados.

O caso não está fechado ainda, mas, afirma Day, seria extremamente difícil relançá-lo sem a documentação. “Nós queremos lutar por indenização para as mulheres e garotas que sofreram nas mãos dos soldados. Suas vidas foram, literalmente, devastadas”.

Jane, que veio para Umoja para fugir de seu marido abusivo depois de ser estuprada pelos Gurkhas, não tem planos de se casar novamente, mas deseja ficar na vila para que possa ser amparada e seus filhos possam ir para escola. “Eu quero que meus filhos sejam livres para casar com quem eles escolherem”, ela diz.

Muitas das mulheres me dizem que elas não conseguem imaginar suas vidas com um homem novamente depois que passaram a viver em Umoja. Pelo fim da minha viagem, conheço Mary, 34, que me contou que foi vendida para um homem de 80 anos em troca de um rebanho de vacas quando tinha 16 anos. “Eu não quero nunca mais deixar o acolhimento dessa comunidade de mulheres”, ela diz.

Mary me mostra a mão cheia de feijões secos que irá cozinhar em breve para o jantar. “Nós não temos muito, mas em Umoja tenho tudo que preciso”.

 

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