O presente artigo focará na análise documental do acervo de Maria Lacerda de Moura, um nome de destaque na trajetória militante por igualdade de gêneros no Brasil, no intuito de discutir sua importante presença no feminismo brasileiro e como a sua luta influenciou nas conquistas adquiridas pelo movimento.

O trabalho apresenta uma discussão teórica relacionando os conceitos dearquivo e Memória afim de entender a relação entre os documentos arquivísticos e o processo de construção de memória social sobre o movimento feminista brasileiro, tendo como objeto de análise o acervo documental de Maria Lacerda de Moura. O arquivo adquire um lugar de destaque na medida em que entendemos que os registros arquivísticos são ferramentas fundamentais nas disputas pela memória, configurando-se no processo segundo o qual a memória se torna um valor, uma forma de poder.[1]

O sentido de prova e de verdade segundo o qual o acervo arquivístico é investido lhe confere uma singularidade, é nessa chave que analisamos a memória do movimento feminista a partir da documentação de uma das suas expoentes, Maria Lacerda de Moura. Por meio de uma metodologia exploratória apresentaremos aspectos relevantes da sua trajetória histórica assim como uma análise da documentação que conseguimos recuperar, desta forma podemos propor uma importante discussão acerca da influencia de Maria Lacerda de Moura nas bandeiras e reinvindicações do movimento feminista brasileiro, e como essas demandas pautaram de forma mais geral os aspectos centrais do movimento.

A importância do arquivo como um “lugar de memória”[2] ou ainda enquanto um objeto de disputa pela memória precisa ser abordado enquanto um instrumento estratégico na construção da identidade do movimento feminista. Nesse sentido o arquivo é uma ferramenta estratégica do processo de memória e esquecimento que permeia os movimentos sociais. Cumpre um papel importantíssimo a partir do momento em que se configura em um instrumento para o acesso a informação. Porém, de acordo com Lissovsky[3] é necessário analisar os acervos arquivísticos como um conjunto anacrônico, ou seja, o autor defende que são vestígios intencionais que carregam uma série de antecipações (não existe intencionalidade desprovida de antecipações) que se combinam de forma instável, são formados pordiversas dimensões que juntas lhes dão vários sentidos. No entanto terá um único sentido dado de acordo com o olhar particular dos pesquisadores e usuários.

 

As anarcofeministase a (in) visibilidade de suas ações no cenário brasileiro

 

Antes de iniciarmos a análise documental do acervo de Maria Lacerda de Moura, precisamos compreender o tempo-espaço que a militante estava inserida, a fim de entender a importância do movimento anárquico e da própria anarcofeminista.

O movimento político anárquico de indícios de surgimento ainda na Grécia Antiga, Renascença e Revolução francesa (COSTA, 1985; WOODOCK, 2002), só recebeu essa nomenclatura, com exposição de definição e pensamentos ocorrem em 1840 com Pierre Josesh Proudhor com a obra O que é propriedade?. Malatesta afirma que anarquia é o “estado de um povo de surge sem autonomia constituída, sem governo” (NETTLAU, 2008). Ou seja, é uma ideologia política que luta pela construção de uma sociedade livre de estado, instituições, autoridades (incluindo as religiosas) e com a expropriação de bens capitalistas.

O movimento anárquico chegou ao Brasil em meados da segunda metade do século XIX por meio dos imigrantes europeus que difundiram os seus ideiais anarquistas (MENDES, 2018) passando assim a exercerem uma influência expressiva nos movimentos operários principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, no biênio 1917-1918 (destacando-se greve de 1917) acarretando a eclosão de momentos conflitantes entre as organizações sindicais e os donos de fábricas.

E em meio à classe operárias, destaca-se a significativa presençafeminina, pois considerando que “dos 10.204 operários recenseados, em 23 das fábricas, 2.648 são do sexo masculino e 6.801 do feminino”, segundo o Boletim do Departamento estadual do trabalho, 1912, São Paulo (ALVIM, 1983). Além da luta contra as extensas jornadas de trabalho e locais insalubres, as mulheres ainda tinham que lidar com aausência de contratos de trabalho, violações sexuais, salários inferiores e desemprego (MENDES, 2018), o que fez com que elas buscassem por uma emancipação feminina que incluísseeducação, libertação sexual, o término das relações hierárquicas considerando o sexo e o fim do padrão burguês de feminilidade(RAGO, 1994), e em decorrência de tais reivindicações surgiram núcleos femininos, como por exemplo: Centro Feminino de Jovens Idealista (1920).

Apesar de o anarquismo lutar contra a divisão de classes e a opressão de uns sobre os outros, as questões a respeito da emancipação e igualdade feminina eram deixadas à parte, sem ganhar destaque nas pautas de discussões. Ainda que o movimento fosse contundente em suas críticas as instituições sociais, como a Igreja e a família, e apesar dos ataques ao casamento monogâmico indissolúvel, às desigualdades sexuais e à educação coercitiva para as crianças; na prática, a situação das mulheres continuava muito desigual em relação à dos homens e poucas melhoras haviam sido realizadas.

Um exemplo, é que durante a pesquisa exploratória ao analisar as pautas do Congresso Operário Brasileiro – COB realizados respectivamente nos anos de 1906, 1913 e 1920, constatou-se que não foram abordados problemas exclusivamente femininos.

A medida que verticalizou-se a pesquisa sobre as anarco-feministas,  nomenclatura criada durante a década de 1980, quando ocorre um significativo crescimento nas pesquisas sobre os movimentos feministas (LEITE, 1997), utilizado para referir-se as mulheres do movimento anarquista, observou-se que as ações dessas mulheres libertárias excederam aos limites fábricas (BENJAMIN, 1994) e ampliaram-se aos comícios, teatros operários, redações de jornais, salas de alfabetizações e estudos. E dedicaram afinco a criar escolas, organizar cursos e palestras, promover atividades culturais, publicações de periódicos, entre outras atividades.

Os anarquistas defendiam que apenas por meio da educação seria possível uma transformação social, construindo uma nova sociedade socialista libertária. Para as mulheres era a oportunidade de emancipação feminina e uma sociedade igualitária.

Um exemplo são as Escolas Modernas, um movimento pedagógico, inspirado na filosofia anarquista de ensino do pedagogo por Francisco Ferrer y Guardia[4](RODRIGUES, 1992) com o objetivo de aplicar um ensino racionalista, distante do Estado, sem ideias religiosos, privilegiando os estudos científicos e articulando aspectos culturais e literários.    Instaladas em bairros operários e próximas as fábricas, com aulas no turno da manhã e noite para ambos os sexos, que se mantinham por meio de arrecadações em festas e campanhas de jornais operários, as manutenções eram feitas pelos próprios trabalhadores e contavam com ajudas mensais. Os anarquistas construíram locais voltadas à educação como bibliotecas, ateneus, centros de cultura e escolas onde desenvolviam projetos educativos, tanto para adultos quanto para crianças.

Em consonância a afirmação de Perrot (1998) que mesmo excluídas das palavras públicas, as mulheres incluíram-se pela escrita, por meio de correspondências, literatura ou imprensa. Anarquistas defendiam por meio de jornais libertárioso ensino racionalista e a emancipação feminina tais como:A Terra Livre, A plebe, O nosso jornal. Nomes como Angelina Soares, Teresa Maria Carini, Elvira Boni, Matilda Magrassi, Carolina Boni, Isabel Cerruti (Isa Ruti) são alguns que assinam as publicações e que também são encontrados em referências bibliográficas, porém, pouco sabe-se de algumas dessas mulheres, de outras nada além dos nomes.

Como muitas mulheres do movimento eram operárias com pouca ou nenhuma educação formal, presumiu-se que transmitiam suas vivências, ações e impressões por meio de relatos orais[5]. O que foi confirmado durante a pesquisa exploratória, uma vez que localizamos os nomes dessas mulheres no Arquivo Público de São Paulo – no fundo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS-SP – Fichas, com registros criminais já que foram alvos de vigilâncias do órgão já extinto. E também na Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital, onde conseguimos resgatar alguns desses periódicos.

Dentre as engajadas os nomes que mais se destacou foi o de Maria Lacerda de Moura, professora, escritora anarco-feminista, organizadora da biblioteca social “A Inovadora”. Também defendia a luta pela igualdade feminina e uma concepção de educação diferente da oficial da época.

Lacerda ia além, almejava criar um curso de “História das mulheres” e fundar universidades com ensino racionalista como podemos observar nesta carta[6] de Maria a Bertha Lutz:

Apesar de todas as horríveis dificuldades, a fundação de uma escola superior ou melhor uma Universidade com ensino racionalista scientifico para desenvolvimento das faculdades de raciocimio e julgamento, espírito critico de mulheres já instruídas. (Carta de 21//10/1920, Fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, Arquivo Nacional).

Mesmo sendo o nome mais propagado entre as anarcofeministas, pesquisadores acreditam que Maria Lacerda de Moura não tem o reconhecimento­ merecido, vejamos:

Se no Brasil, que teve uma ativista como Maria Lacerda de Moura, a divulgação e o estudo do feminismo anarquista demorou a ser realizado, nos EUA ele goza de ampla repercussão, e Emma Goldman, reputa como a maior radical feminista que passou pelo país. (COELHO, 2007 p.13)

Sua biógrafa, a historiadora e professora Mirian Lifchitz Moreira Leite, autora do livro Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura (1985), relata a sua dificuldade em localizar documentação sobre a anarquista:

Na ocasião em que escrevi a tese de doutorado Caminhos de Maria Lacerda d Moura (Contribuição para o estudo do feminismo no Brasil), tive muita dificuldade para encontrar documentação. (LEITE, 1997, p.238)

E continua:

De 1983 para cá, a situação mudou. Os Estudos sobre a Mulher, de que ela foi pioneira não reconhecida, tiveram um razoável desenvolvimento, em diversos deles as ideias e os livros de Maria Lacerda foram repassados com atenção ou com notas bibliográficas. […] Apesar disso, em 1987, o centenário de seu nascimento passou em surdina. (LEITE, 1997, p.238-239)

As falas supracitadas e o resultado da pesquisa empírica, que visou buscar documentos produzidos ou recebidos por Maria Lacerda de Moura, de certa forma, não nos surpreenderam. Já era esperando encontrar uma ínfima documentação da mesma. Uma vez que tal realidade e que não é exclusiva brasileira, tende a privilegiar os homens tornando as mulheres “sombras” da história. Bem como afirma Schmitt que os registros foram “sistematicamente abafados pelos detentores do poder” (1990, p.284).       Por aqui, estudiosas, também já haviam percebido a mesma coisa, como na analise a seguir:

No Brasil, […], a história da mulher em qualquer ramo de atividade aparece sempre trucada faltam testemunhos, as referencias ao trabalho são sempre indiretas e, além de alguns relatos de viajantes, religiosos e raríssimo historiados nada resta a não ser a certeza que sempre será uma história incompleta. (ALVIM, 1983, p. 63)

Ainda sobre a temática Dias afirma que a “memória social da vida das mulheres vai se perdendo mais por esquecimento ideológico do que por uma real inexistência de documentos” (1984, p. 7). Sendo assim, a autora sugere que entre essas fontes “ralas e fragmentadas” é preciso reunir o máximo de dados possíveis e montar uma espécie de quebra cabeça e “interpretar o implícito”.

Neste sentido, se faz necessário, realizar uma pesquisa biográfica para compreender melhor quem foi Maria Lacerda de Moura, sua atuação e quais as relações que manteve ao longo de sua luta ideológica.

 

Mas quem foi Maria Lacerda de Moura?

 

Imagem 1 – Foto de Maria Lacerda de Moura
Fonte: Fundo – Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (Arquivo Nacional)

Nascida em Manhuaçu (Minas Gerais) em 16 de maio de 1887, desde muito cedo participou de campanhas relacionadas a questões sociais. Após formar-se professora pela Escola Normal Municipal de Barbacena (para quem doou no ano de 1931, setenta livros do seu acervo pessoal), passou a alfabetizar e se dedicar a luta de reformas educacionais.

Ainda adolescente começou escrever para jornais e aos trinta e um anos publicou seu primeiro livro Em torno da educação. Casou-se com Carlos Ferreira de Moura no ano de 1905, com quem se manteve casada até 1925.

Ampliando seus contato para Belo Horizonte, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, aos trinta e quatro anos mudou-se para São Paulo. Já associada a luta anarquista e feminista, funda com Bertha Lutz a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (precursora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino[7]), entretanto, em 1922 rompe com a organização por questões ideológicas pois, acreditava que o voto era uma parcela limitada das necessidades femininas.

Em 1923 lança a revista mensal Renascença e entre os anos de 1928 a 1937 mora na comunidade anarquista de Gararema (São Paulo) com o seu segundo companheiro André Neblind, onde Maria se dedicava às aulas de história e poema. Contribuindo com publicações para o periódico O Combate (SP) e realizando conferências no Uruguai e Argentina, a anarcofeminista estreitou relações com personalidades como Luis Carlos Preste e Anna de Castro Osório[8].

No ano de 1938, após a deportação de André, passou a residir para o Rio de Janeiro e trabalhar na Rádio Mayrink Veiga divulgando seu trabalho como astróloga e lendo horóscopo. Maria Lacerda de Moura adotou dois filhos ao longo de sua vida. Jair de Moura (um sobrinho) e Carminha de Moura (órfã carente), entretanto o ingresso de Jair na Ação Integralista Brasileira (AIB), causou-lhe um grande desgosto, demonstrando publicamente com uma carta aberta ao periódico A Lanterna (SP). Maria Lacerda morreu em 20/03/1945, sendo enterrada sob a sepultura 16.167 do Cemitério São João Batista (Rio de Janeiro).

 

Documentação Maria Lacerda de Moura: uma busca pouco frutífera

 

Nesta parte da pesquisa, apresentamos o mapeamento da documentação produzidas, recebidas ou referentes ao nosso objeto de pesquisa. E como a feminista morou e atuou principalmente nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, buscou-se documentos por meio de instrumentos de pesquisas disponíveis nas páginas eletrônicas das instituições. E alinhado a isto, pesquisou-se em referências bibliográficas e artigos científicos sobre a temática. Chegando assim a alguns arquivos, bibliotecas e centro de documentação.

Por meio da biografia, procuramos em instituições que detinham arquivos sobre organizações em que Maria Lacerda participo, como por exemplo a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, um dos fundos arquivísticos do Arquivo Nacional – NA, que esta entre um dos mais pesquisados segundo informações do próprio órgão. Onde obtivemos sucesso, encontrando cartas, recortes de jornais e uma fotografia. Encontramos também no AN, no fundo Fábio Luz, cartas que Maria enviou ao amigo anarquista Fábio Lopes dos Santos Luz em manifestação de solidariedade enquanto o mesmo esteve preso. Procuramos, porém sem sucesso, no fundo Rádio Mayrink Veiga.

Partimos então para arquivos de titulares engajados no movimento anarquista, chegando ao Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade de Campinas (UNICAMP), que possui periódicos e cartazes da autoria da militante. E em seu acervo bibliográfico, há as duas principais obras da escritora, ambos os exemplares são do ano de 1932.

Como militante anarquista, e tendo sido presa em alguns momentos de sua vida, conferimos em arquivos da polícia política atuante na época. E encontramos no Arquivo Público Mineiro, no fundo Polícia Política, registros criminais pelo crime “comunismo”.

Em janeiro de 2004, a professora Mirian Moreira doou ao Centro de Documentação e Memória – CEDEM da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, o total de onze caixas arquivo com a documentação levantada durante a pesquisa acadêmica relacionado a produção da tese e também que resultou na biografia de Lacerda de Moura.

Como Maria manteve uma amizade com Ana de Castro Osório, identificou-se na Biblioteca Nacional de Portugal, cartas enviadas por Maria a feminista lusitana. Vejamos de forma sistematizada a documentação localizada:

 

Tabela 1 – Os acervos identificados de/sobre Maria Lacerda de Moura.

INSTITUIÇÃO FUNDO DOCUMENTOS DATA-LIMITE
ARQUIVO NACIONAL Acervos Privados – Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – 01 fotografia

– 07 cartas enviadas e recebidas

1920 – 1922
ARQUIVO NACIONAL Acervos Privados – Fábio Luz – 15 cartas 1920-1923
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Edgard Leuenroth – Folheto Clero e estado (gênero textual) 1931
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Edgard Leuenroth – Periódico Renascença (gênero textual) 1923
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Edgard Leuenroth – Periódico A mulher e a maçonaria (gênero textual) 1922
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Biblioteca Edgard Leuenroth Amai e…não vos multipliqueis. Edição 1932
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Biblioteca Edgard Leuenroth A mulher e uma degenerada. Edição 1932
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH Biblioteca Edgard Leuenroth A mulher e uma degenerada. Edição 2018
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO Policia Política -Prontuários criminais (Pasta 1.294, o nome de Maria Lacerda é citado nos documentos de números 31, 33 e 40).
ARQUIVO PÚBLICO

MINEIRO

Secretaria do Interior – 01 requerimento (enviados);

– 05 pareceres (recebidos).

1919-1920
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL Espólio Família Castro Osório 1878- 1946
ARQUIVO DA ESCOLA NORMAL MUNICIPAL DE BARBACENA -02 registros de diplomas;

-01 ata de admissão na escola

-03 atas de exames;

– 01 registro de visitas de fiscalização.

1893-1921
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA – (UNESP) Coleção Miriam Moreira Leite – 20 Fotografias (ampliações);

– 12 periódicos;

– 16 livros

– 11 caixas arquivos com documentos textuais.

1915 – ?

Fonte: As autoras (2019).

 

 

Acreditamos ser importante pontuar que no decorrer da pesquisa empírica localizou-se mais de mil itens documentais da escritora feminista em uma loja virtual de leilões. Na página da Harpya – Colecionáveis & Antiguidades há a informação de que houve no ano de 2014 no bairro de Vila Isabel (RJ) com lance inicial de vinte mil reais o leilão da documentação pessoal de Maria Lacerda, composto de centenas de manuscritos e documentos de sua vida “pessoal, docente, política e ideológica, no feminismo, na anarquia e na esquerda”, além de “cartazes, revistas, livros autografados pela própria e fotografias”.  Segundo o site havia no arquivo cartas de Olavo Bilac, Érico Veríssimo e Humberto de Campos. No site também encontramos acervos de outros escritores com correspondências enviadas por de Lacerda de Moura ainda disponíveis para lances.

Um ponto que consideramos ser destaque é que juridicamente no Brasil não é ilegal vender documentos pessoais, entretanto, o fato de um colecionador (a) particular ter em sua posse um acervo tão rico e não disponibilizá-lo é uma perda para a pesquisa científica brasileira que já é carente de fontes documentais de mulheres.

 


Imagem 2 – Documentação leiloada de Maria Lacerda de Moura.
Fonte: www.harpyaleiloes.com.br. Acesso em 02 set. 2019

 

Entramos em contato com a Harpya buscando informações sobre o doador e o comprador, mas por questões de privacidade não obtivemos sucesso. Então perguntas ficam em nossas mentes sem respostas, como por exemplo: Quem doou essa documentação? Quem poderia ter comprado um acervo tão extenso? Será que existem mais documentos dela “perdidos”?

Maria foi uma mulher letrada e que muito produziu, ao contrário de muitas anarquistas feministas que eram trabalhadoras de baixa renda, com pouco ou nulo acesso a educação básica e sem privilégios sociais. Logo, acredita-se que ela produziu muito mais do que há disponível hoje.

 

Arquivos Feministas – Considerações finais

           

O documento é poder, controla e ordena garantindo um poder simbólico representativo do documento. Sua estrutura técnica, uso e acesso permitem a alguns criar e manter registros, isto fornece a ideia de sociedade privilegiada versus sociedade marginalizada.

Nesse sentido, os acervos feministas, assim como a trajetória histórica das mulheres, ainda carecem de maior disseminação e conhecimento. Ainda são poucos os acervos feministas encontrados em instituições de guarda, levando-se em consideração apenas os acervos tratados e disponibilizados para consulta.

Por isso, é importante trabalhar com duas perspectivas de análise: a falta de política memorial do movimento feminista por parte do Estado e das instituições arquivísticas, mas também a baixa produção documental das militantes, que naquele momento não tinham – e nem poderiam ter – a noção da importância que seus acervos teriam atualmente.

No caso da análise da documentação da Maria Lacerda de Moura, conforme afirmado, não esperávamos localizar uma documentação muito extensa, mesmo a militante tendo atuado ativamente por muitos anos no país.

Ainda que a própria demonstrasse ter a consciência da importância da documentação, pois tivera como anseio criar um curso “História das mulheres” e deixou antes de morrer uma carta-memória, saberia que tais artefatos poderiam ser estudos no futuro. Talvez não tenha tido tempo ou percepção em deixá-la centrada ou com um único responsável. Talvez este responsável após a sua morte não tivesse noção do valor histórico dos registros. Essas e tantas outras questões que surgiram ao longo da pesquisa e que suscitam mais investigações.

Por questões temporais não pudemos aprofundar mais as pesquisas in loco, entretanto este artigo tem por intenção continuar buscando fontes de mulheres feminista e anarquistas assim como iniciar buscas por outros nomes, que em um primeiro momento só foi localizado em periódicos e fichas criminais.  Pretendeu-se neste artigo fazer apontamentos iniciais almejando contribuir para outras pesquisas que possuem a mesma ou temáticas correlatas.

 

Bárbara Moreira Silva. Mulher, bruxa, feminista e mãe. Mestra profissional em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa. Pós-Graduada (Lato Sensu) em Políticas de Informação e Organização do Conhecimento pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E graduada em Arquivologia pela UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Todas as suas pesquisas tem como ênfase acervos arquivísticos de/sobre feministas da primeira metade do século XX.

 

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Leia também:

Política Memorial de feministas: a escassez de fontes documentais no Rio de Janeiro

 

REFERENCIAS

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ALVIM, Zuleika M. F. A participação política da mulher no inicio da industrialização em São Paulo. Revista de História, São Paulo, n. 114, p.61-84, jan/jul. 1983.

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1994

COSTA, Caio Tulio. O que é Anarquismo. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Abril Cultural, Brasiliense, 1985.

COOK, Terry, SCHWARTZ, Joan M. “Arquivos, Documentos e Poder: a construção da memória moderna”. Archives Science, v. 2, n 1-2, p 1-19

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.

GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios. COELHO, Plínio AUgusto (org. e trad).São Paulo: Hedra, 2007.

HEYMANN, Luciana Quillet. “De arquivo pessoal a patrimônio nacional: reflexões sobre a construção social do´legado´de Darcy Ribeiro”. IUPERJ: Rio de Janeiro, Tese de doutorado, 2012

HUYSSEN, Andreas. “Seduzidos pela memória”. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000

LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.

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[1]NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto história: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, v. 10, p. 07-28, dez. 1993

[2] Idem

[3] LISSOVSKY, Maurício. “O que fazem as fotografias quando não estamos olhando para elas?”. In: Dobras da memória, 2008, p. 26-36.

[4]Pensador catalão e pedagogo anarquista criador da Escola Moderna em 1901. (RODRIGUES, 1992).

[5] Para maiores informações ver o livro:Velhos militantes –depoimentos de Ângela de Castro Gomes (coord), Ed. Jorge Zahar 1988.

[6] Mantivemos a grafia original da carta na citação.

[7]Organização em prol dos direitos civis e políticos das mulheres.(LEITE, 1985).

[8]Ana de Castro Osório (1872-1935), foi uma escritora, jornalista, pedagoga, feminista e ativista republicana portuguesa. (MARQUES,1986, p. 1065)