Hoje é o dia que o comércio, a TV, as propagandas, a internet e tantas, tantas outras plataformas te levam a pensar em relacionamentos. Mas também não é um típico dia dos namorados – data em que muitas pessoas já se veem envolvidas em ansiedades. Doze de junho de dois mil e vinte e um, o dia de celebrar um comprometimento duradouro entre pessoas, se mistura às emoções de um ano marcado por estresse, incertezas e ausências. Há mais de um ano passamos a ver com maior frequência laços rompidos contra a vontade dos envolvidos. A nossa rotina foi alterada e  os nossos mecanismos de suporte tornaram-se mais inacessíveis com os distanciamentos sociais. É um momento particularmente difícil para viver um processo de luto, seja devido à COVID ou não. E é importante lembrar que para cada um a experiência de lidar com perdas será  única. Assim, essa coluna gostaria de oferecer um espaço para aqueles que perderam seus parceiros durante esse ano de pandemia.

A psicanalista Mariana Hampshire nos conta como a pandemia impossibilitou muitos dos ritos que o ser humano desenvolveu ao longo dos anos para lidar com a dor e  auxiliar na despedida. Por um tempo, não houve mais encontros religiosos ou velórios. Fomos impedidos até mesmo de encontrar amigos para nos dar colo ou viajar na busca de nos refazer. Pessoas que perderam seus grandes amores tiveram que encontrar novos processos de luto. A palavra, escrita ou em diálogos, parece ser, então, nesse cenário, a forma simbólica possível para lidar com a falta. No começo, é normal a pessoa ficar mais reclusa, mais calada, mas ao longo dos desdobramentos do luto, a palavra pode passar a ser uma via de encontro, de acolhimento, de direcionar e processar as emoções.

“Para a psicanálise o encontro amoroso é um encontro de sujeitos desejantes”, escreve a psicanalista Joyce de Paula e Silva. “Quando nos deparamos nesses tempos de pandemia com tantas perdas de amores, entende-se que estamos em luto, ou seja, o recolhimento para si dos investimentos feitos no amado para que o trabalho de elaboração dessas perdas possa acontecer.” Ela nos lembra que o luto é um processo individual, e, por isso, as pessoas não devem comparar a sua forma de lidar com perdas com as das demais, já que é um tempo de elaboração  “lógico e não cronológico”. De acordo com Joyce, o que pode ajudar a suportar a sensação de vazio, é o redirecionamento do desejo para outros objetos de investimento como os  laços sociais. “Mas estamos recolhidos em nossas casas e limitados em nossos laços. Como fazer para suportar esses tempos sombrios? Como fazer para suportar as perdas amorosas? É necessário que nos reinventemos para criarmos novas possibilidades de investimentos nesse contexto tão árido. O que nos resta é criar!”

Cedo, portanto, o texto daqui em diante para a escritora e produtora de conteúdo Morgana Leandro, que divide conosco seus sentimentos, elaborações, suas palavras quanto ao seu próprio processo.

 

“É o primeiro dia doze de junho que eu passo sem você.

 

E acho que poderia terminar o texto nessa sentença, ela é objetiva, descritiva e direta o suficiente. Não costumam dizer que “para bom entendedor, meia palavra basta”? Aqui temos ¼ de texto. Assim não preciso pensar nas outras coisas que perdi fora uma data comemorativa, não preciso pensar nos sequenciais Dias dos Namorados em que vou ter que olhar para essa sentença: a sua, a nossa.

 

Meu namorado foi uma das milhões/milhares de pessoas que não sobreviveram a 2020. Em um ano de pandemia, descobrimos um câncer hepático no fígado. Três palavras, uma sentença. Foram cinco dias ansiosos no hospital; foram três dias de correria e transfusão de sangue; foi um dia de tranquilidade em que segurei sua mão e ouvi suas piadas ruins por uma última vez. No dia em que comemoramos nosso primeiro beijo, dia 17 de Outubro, ele desapareceu.

 

Um aquariano típico. A pessoa que queria adotar todos os cãezinhos e gatinhos de rua nas festas, que tinha um fraco imenso para Catuaba, que dizia que me amava como se fosse a verdade mais absoluta da face do Universo. Ele era o garoto do TI, jogava LOL, era fissurado por Marvel, tinha um coração tão altruísta que doía e mais fardos do que alguém  tão jovem poderia suportar. E ele só tinha 21 anos.

 

O nome dele era Diego. Mas, para mim, era mô, mozi, cão, Di, mozinho, amor. Amor, amor, amor… Eu sinto falta de ouvir a mim mesma te chamando de Amor. Eu sinto falta de ouvir sua voz murmurando de volta. Sinto falta de quando seu nome não evocava um misto de sentimentos trôpegos e sufocantes, quando era só parte de você. Como eu era.

 

É meu primeiro dia doze sem ele, depois de quase sete anos de relacionamento. Eu gostaria que essa não fosse a sentença-síntese desse texto, gostaria de poder escrever sobre a “luz no fim do túnel”, sobre ver o “lado positivo das coisas” e que “está tudo bem”. Não está. São tantas mortes, tantas ausências… E, no meio delas, um menino de 21 anos que eu amei como se fosse a alma mais velha do mundo.

 

Não é sobre pensar positivo. Não existe justiça nisso, nem aproveitamento. A nossa história foi violada, foi comprimida e se perdeu por aí. Os cachorrinhos que ele adotaria estão sem lar, a faculdade de Sistemas de Informação ficou sem completude e eu também fiquei aqui, em suspenso. É terrível, mas também é verdade que a nossa sentença teve amor. A minha angústia é do tamanho do meu amor. E se eu às vezes sinto que ela é tão insuportavelmente grande, eu me aquieto e escrevo algumas palavras para ele em blocos de notas digitais ou pedaços de papel.

 

Minha angústia, meu amor e a minha arte são inesgotáveis… e todos eles pertencem a você. Quantas Morganas ficaram sem Diegos no ano de 2020? Quantos Diegos não ficaram sem suas histórias?

 

Escrever me ajuda a sangrar, a chorar, a transbordar o amor que ficou em suspenso com ele. Se eu pudesse aconselhar alguma alma que ficou pela metade neste dia doze de junho, diria isso: agarre-se à sua arte como se fosse salvar a sua vida. Ela vai. Tudo o que escapa de nós tem a potência de nos segurar ─ nossa paixão, nossa dor, nosso luto e nossas sentenças.

 

A arte não traz os mortos de volta, mas ela vive num lugar perto deles. No sonho, no impossível, no furacão, no alto do céu estrelado, na curva de um sorriso que antecede a gargalhada, no choro que faz um ovo endurecido na nossa garganta e impede o ar de passar. A pulsão de vida e o amor pelos nossos falecidos nos permitem jorrar todas essas coisas. Eu desejo isso a vocês.

 

E foi o que desejei a Diego, também. “

 

– Morgana, Leandro.

 

Para quem precisar, nosso site publicou duas matérias que lista atendimentos psicológicos  gratuitos ou a preços acessíveis no Rio de Janeiro e em São Paulo. Afinal, diálogos são formas de encontro –  com outro e consigo. Cuide-se, sempre e muito.

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