A ciência aponta que é na velhice a etapa de vida que o ser humano fica mais susceptível às perdas evolutivas, nos domínios biológicos, psicológicos e sociais, decorrentes de sua história individual e coletiva. Segundo Beauvoir (1970), a velhice enquanto destino biológico de perdas é inquestionável; já como destino psicossocial, trata-se de uma realidade socialmente construída.

O envelhecimento acelerado da população brasileira, mesmo com a pandemia e os índices assustadores de óbitos, principalmente da população em idade avançada, não atenuará esse processo, segundo as projeções demográficas. São mais de 30 milhões de pessoas acima dos 60 anos, e a tendência é que esse número dobre nas próximas décadas segundo o IBGE.

Santos, Lopes e Neri (2007, citado por Silva et al, 2012) apontam em pesquisa ancorada em amostra com 2.136 idosos provenientes de diferentes partes do Brasil que escolaridade, raça, renda e etnia, quando combinadas ao longo da vida, são variáveis marcantes na definição de exclusão social na velhice, “impedindo a clara compreensão dos direitos fundamentais a serem reivindicados pelos excluídos”. Outro dado relevante é em relação à expectativa de vida, em que se verifica o fenômeno da feminização da velhice, principalmente da mais avançada. Segundo Camarano (2003), há predominância da população feminina entre os idosos, o que significa existir um forte componente de gênero na velhice. As mulheres idosas experimentam uma maior probabilidade de ficarem viúvas e em situação socioeconômica desvantajosa. São incipientes ainda estudos sobre mulheres idosas, mas entre os já existentes mostram algumas desvantagens da situação dessa população: a baixa renda, a viuvez e as incapacidades físicas.

Dessa forma, a mulher idosa brasileira é atravessada pelas questões de desigualdade de gênero acumuladas ao longo da vida, pelo racismo estrutural, desigualdade socioeconômica e etarismo, que ainda incidem sobre outras interseccionalidades. Os movimentos feministas, ao longo das últimas décadas, não têm considerado relevante a discussão sobre as pessoas idosas, nem das relações entre as idades. O foco de seus estudos tem sido mulheres adultas jovens e de meia idade (Calasanti et al, 2006). Na sua maioria, o feminismo tem tratado a velhice como uma construção social, e abordam, usualmente, esse tema como um sinal de desigualdade das mulheres em relação aos homens, pois são vistas como velhas antes deles, e a questão estética como o âmago da questão. No entanto, pouco se pensou, ou construiu, em relação ao estigma colocado na velhice. A própria linguagem denuncia a degradação do termo. Aldous Huxley (1954) disse:

 “Cada indivíduo é a um só tempo beneficiário e vítima da tradição linguística na qual nasceu – beneficiário, na medida em que a língua lhe dá acesso ao registro acumulado da experiência das outras pessoas, e vítima, na medida em que a língua confirma a crença de que a consciência reduzida é a única consciência, confundindo o sentido de realidade”.

O próprio termo terceira idade exclui a ideia das diversas velhices que coexistem. Como se todas as velhices coubessem nessa nomenclatura. O termo pretende, na verdade, invisibilizar os corpos velhos e suas experiências.  Para Calasanti, Slevin e King (2006), a necessidade de negar a velhice, ao reforçar que é uma construção social, apesar da infância, idade adulta, adolescência, não estrarem nessa discussão, recai no coração do etarismo. Negamos que estamos envelhecendo, fazemos escolhas ao longo da vida, muitas vezes, sem considerar a decadência de nossos corpos. E quando, de forma inevitável,  confrontamos esse processo, tratamos como feio e trágico.

Há nojo em relação aos corpos velhos. E se pensarmos na invizibilização desses corpos, em vez de objetificações? O alto índice de viuvez das mulheres idosas tem como pano de fundo a negação da sexualidade dessas mulheres, que recusam engajar-se em novos relacionamentos, embora muitas delas idosas sejam idosas saudáveis com a libido preservada. Corpos velhos não transam, menos ainda quando não é para satisfazer o marido idoso, mas sim elas mesmas.

A sexualidade é um dos pilares do envelhecimento ativo, processo de envelhecimento preconizado pela Organização Mundial da Saúde. Além de argumentarem sobre a possibilidade de se praticar sexo até o fim da vida, gerontólogos e sexólogos descrevem-no como uma atividade benéfica para o envelhecimento bem-sucedido (Debert & Brigeiro, 2012).

As categorias das idades possuem consequências, são materiais reais de interpretação social (Laz, 2003). Pessoas idosas não são como pessoas de meia idade. Elas são diferentes. Assim como outros tipos de opressão, devemos conhecer e aceitar essas diferenças, e vê-las como valiosas. Twigg (2004) defende que devemos distinguir entre resistência etária e negação etária. Para isso devemos teorizar a respeito das relações etárias que envolvem a desvalorização das pessoas idosas, em diferentes contextos como trabalho, participação social, família, etc.

Outra reflexão relevante é em relação às pessoas idosas terem o direito de mostrar seus corpos flácidos, de ser contemplativa ou sexual, produtiva ou não. As teorias e os estudos devem levar em consideração a importância da liberdade em escolher o estilo de vida e suas maneiras de ser velho que servem a cada pessoa idosa.

Por fim, deixo aqui uma provocação de Calasanti, Slevin e King (2006):

“O lugar de privilégio é comumente não percebido, assim muitas pesquisadoras sobre o feminismo têm ignorado as relações etárias. Teremos que ficar idosos para levar a sério essas implicações? Assim como outros sistemas de opressão, pessoas tendem não dar importância ou levar em conta as relações etárias quando são privilegiadas pela juventude. Ao contrário de outras hierarquias, em que o privilegiado raramente vira o oprimido, todos enfrentaremos a velhice se vivermos tempo o bastante”.

 

Sâmia Campelo Gabriel Miranda. Psicóloga, gerontóloga e feminista

 

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Referências Bibliográficas:

Beauvoir, S. (1970). “A Velhice”. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Camarano, A.A. (2003). Mulher idosa: suporte familiar ou agente de mudança? Estudos Avançados, 17 (49), 35-63.

Calasanti, T., Slevin K. F.  & King N. Ageism and Feminism: From “Et Cetera” to Center. NWSA Journal Vol. 18, No. 1 (Spring, 2006), pp. 13-30.

Debert, G. & Brigeiro, M. (2012). Fronteiras de gênero e a sexualidade na velhice REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – VOL. 27 N° 80, 37-54.  https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v27n80/v27n80a03.pdf

Huxley, A. (1954). As Portas da Percepção e Céu e Inferno. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.

Silva, N.P., Cachioni, M. & Lopes, A. (2012, dezembro). Velhice, Imagem e Aparência: a experiência de idosos da UnATI- EACH-USP Revista Temática Kairós Gerontologia,15(7), 235-257. Online ISSN 2176-901X. Print ISSN 1516-2567. São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP.

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