Sabe-se que as mulheres ficaram, por muito tempo, excluídas de diversos espaços e não foi diferente com relação ao campo literário. Às mulheres, apenas ficou reservado o papel de personagens. Ainda assim, frequentemente, apenas o papel secundário na literatura canônica, essencialmente masculina que sempre apresentou imagens de mulheres estereotipadas, para quem o modelo patriarcal, marcado pela submissão, obediência e silenciamento femininos consistiam na única possibilidade. É o que vemos em Carolina, por exemplo, protagonista de A moreninha, escrito em 1884 por Joaquim Manuel de Macedo, marcada pela sua beleza, delicadeza e fragilidade, para quem o casamento era o único destino almejado.

Quando havia alguma personagem que fugia desses padrões, o tom moralista entrava em cena. É o caso de Lucíola (1862) de José de Alencar, a prostituta que larga a profissão pelo amor de Paulo, mas o único destino possível para tamanha subversão social é a morte. E, ainda, Capitu, de Dom Casmurro (1899), que embora saibamos que Machado de Assis quis deixar a dúvida instaurada para leitor, ainda temos apenas a narração de um homem ciumento e possessivo. Se só Bentinhos forem autorizados a contar sua histórias, nunca saberemos a versão das Capitus.

Daí a importância da chamada Crítica Literária Feminista, consolidada a partir de 1970 com a publicação da tese de doutorado de Kate Millet intitulada Sexual Politcs, que se encarregou de dar visibilidade à escrita de mulheres e denunciar e desestabilizar a ideologia reducionista a que estavam marcadas as personagens femininas no cânone. Para isso, foi feito um resgate histórico de nomes nunca listados em livros didáticos e nunca indicados para vestibulares e concursos.

Elódia Xavier, em 1998, no artigo “Narrativa de autoria feminina brasileira: as marcas da trajetória” elenca algumas fases da literatura produzida por mulheres no Brasil, com base no estudo de Elaine Showalter (1985). Segundo a pesquisadora, são três fases:

Feminina:

Trata-se dos primórdios das mulheres nas letras no país, cujo marco se dá com a publicação de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis em 1859, considerado o primeiro livro escrito por uma mulher no Brasil. Saltam aos olhos o fato de isso ter acontecido somente no século XIX. Importante mencionar que ela precisou publicar sob o pseudônimo ‘uma maranhense’.

Outras autoras dessa fase que merecem ser lembradas e lidas: Júlia Lopes de Almeida, Carolina Nabuco, Gillka Machado, entre outras.

Todas possuem em comum o fato de que ainda são livros marcados por estereótipos da época, da mulher ainda presa ao modelo patriarcal, mas que já marcam pequenas mudanças ao evidenciar protagonistas mulheres.

Feminista: 

É somente na segunda metade do século XX, coincidindo com os avanços do movimento feminista no Brasil, que uma nova fase surge com a publicação de Perto do Coração Selvagem (1944), de Clarice Lispector. Ao lado de Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft entre outras, todas elas são conhecidas por repensar a condição da mulher na sociedade. Frequentemente são narradoras, donas de casa, que passam por um momento de reflexão e questionam seus papéis na sociedade e no casamento.

Não que fosse necessário que elas se dissessem feministas, como de fato a maioria não se dizia, mas dá para se fazer uma leitura pelo viés da crítica feminista e perceber nessa época grandes alterações nas representações de mulheres quando estas têm a chance antes negada de contar as suas histórias. Há notadamente um tom de angústia nas protagonistas presas às amarras sociais.

Da Mulher:

Após a fase de intensas e necessárias problematizações, a partir de 1990 tem-se a última fase em que se percebe que tais questionamentos não são mais necessários e vemos a construção de novas identidades para as mulheres, móveis e plurais, já libertas do peso da tradição.

Com isso, vemos que a produção escrita por mulheres teve e tem o papel, ainda que inconsciente, de desestabilizar a tradicional representação da mulher na literatura canônica que em nada condizia com a grande diversidade de identidades femininas que povoam a realidade extraliterária da mulher contemporânea.

Algumas autoras contemporâneas que merecem nossa atenção: Ana Paula Maia, Patrícia Mello, Nilza Rezende, Conceição Evaristo, Jarid Arraes, Stella Florence, Leticia Wierzchowski, Tatiana Salem Levy, Carola Saavedra, Carol Bensimon, Aline Bei entre tantas outras…

Mas… Por que ainda é importante dar visibilidade às mulheres na literatura?

Já na chamada contemporaneidade, a pesquisadora da UNB Regina Dalcastagnè fez uma pesquisa intitulada personagens do romance brasileiro contemporâneo. Em seu grupo de pesquisa, leram todos os romances, ou seja, os livros narrativos e ficcionais, publicados entre 1990 – 2004 por três das editoras mais prestigiadas do país: Record, Rocco e a cia das letras. Chegou-se a um total de 258 livros novos. São 165 autores no total, dos quais 120 homens (73%). Quanto às personagens que figuram s representações desses corpus, chegou-se a um total de 1245 personagens essenciais para a literatura- 71% são homens. Isso nos mostra a importância de algo muito falado hoje em dia: a representatividade. Essa pesquisa nos mostra que a literatura tem um papel muito definido: os personagens são, em sua maioria, homens, brancos, heterossexuais, de classe média, com curso superior…

Ou seja, ainda que o painel já tenha se alterado e as mulheres conquistaram diversos direitos, elas ainda são em menos número nas editoras mais consagradas do Brasil.

Devido à uma inquietação quanto aos resultados dessa pesquisa, Lúcia Osana Zolin resolveu propor outra, na Universidade Estadual de Maringá, com o objetivo de ler todos os livros escritos por mulheres, publicados nessas mesmas editoras, no período de 2002 a 2016.A pesquisa se chama “Literatura de autoria feminina brasileira contemporânea: escolhas inclusivas?”, e vem sendo realizada na Universidade Estadual de Maringá.

Ainda que em andamento, alguns dados obtidos já importam ser mencionados. Quando isolados os escritos de mulheres, portanto, temos uma presença predominante de mulheres (aproximadamente 60%), sobretudo na posição de narradoras (aproximadamente 70%).

Esses dados se opõem aos da pesquisa de Dalcastagnè em que a maioria dos autores são homens, o que permite concluir que a representações se alteram sim quando mudam os sujeitos que falam.

Hoje, pode parecer, portanto, estranho quando se quer enfatizar uma literatura que é produzida por mulheres e falar em literatura feminina. Mas com isso não queremos adjetivar a literatura, como se houvesse algumas características específicas quando a mulher escreve que difere dos escritos por homens, mas sim que é importante dar voz e visibilidade às mulheres.

Referências

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Editora Horizonte, 2012.

XAVIER, Elódia. Narrativa de autoria feminina brasileira: as marcas da trajetória. Rev. Leitura, Rio de Janeiro: 1998. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/6825/5409. Acesso em 03 ago. 2020

Gabriela Fonseca Tofanelo. Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. É mestra e doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá, com ênfase em literatura brasileira de autoria feminina. Atua como pesquisadora no projeto de pesquisa “Literatura brasileira de autoria feminina contemporânea: escolhas inclusivas?”. É professora de literatura nos ensinos fundamental e médio da rede privada de ensino.