Esses dias estava lembrando em uma conversa com uma amiga como era difícil ser adolescente no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Os padrões de beleza eram absurdos. As modelos, atrizes e personalidades famosas que estampavam as capas das revistas teen que corríamos para comprar nas bancas eram todas absurdamente magras, os cabelos eram absurdamente lisos, as peles eram absurdamente brancas. Eu todos os dias alisava o cabelo para ir para escola até que os fios estivessem estirados sem qualquer ondulação. Quase não havia meninas de cabelo cacheado. E olha que eu sou branca, esse padrão definitivamente afetou de forma muito mais profunda meninas negras e com cabelo crespo.

Talvez o símbolo mais emblemático dessa época tenha sido o “heroin chic”, que mostra o quão bizarro e problemático pode ir o mundo da moda na hora de ditar padrões de beleza. É hora de resgatá-lo para quem não viveu aquela época e também para a gente refletir sobre os padrões de hoje.

 

Da esquerda para a direita, coleção da Prada de 1997 e a terceira Jill Stuart 1998.

 

De Gia a Kate Moss

 

Gia Carangi é conhecida como a provavelmente a primeira “supermodelo” . A sua  carreira começou quando era muito nova (ela tinha 17 anos) e quase por acaso. Ela trabalhava no pequeno restaurante do pai e tinha a vida normal de qualquer adolescente da época. Quando um fotógrafo de sua cidade, na Philadelphia nos Estados Unidos, a fotografou em uma pista de dança, a foto chegou a um fotógrafo conhecido da loja de departamento Bloomingdale’s. Foi o início da sua trajetória ascendente de sucesso.

O que chamava atenção em Gia era sua melancolia aliado aos traços italianos, que contrastavam com a beleza jovialmente feliz do loira-dos-olhos-azuis das modelos da época. Além disso, ela era conhecida também por sua personalidade selvagem, que lhe rendeu trabalhos pelas marcas Versace e Dior. Ela fazia fotos nua, sem maquiagem, tinha atitude, não deixava que ninguém a rebaixasse. Usava roupas masculinas e foi uma das primeiras modelos abertamente lésbica.

foto de gia garangi, modelo branca sem maquiagem

Gia Garangi

Ela alcançou o topo do sucesso muito rapidamente e sua imagem pública, em meio ao glamour e festas, contrastavam com sua vida particular de solidão. As drogas se tornaram companhia constante, mas em princípio os grandes editores de moda não ligavam para isso. Durante uma sessão de fotos em uma revista famosa, o próprio editor a presenteou com drogas. Mas com o tempo o vício em heroína acabou afetando negativamente sua carreira, na medida em que as marcas da injeção da droga estavam aparecendo nas fotos, ela perdia compromissos, simplesmente interrompia as sessões e ia embora e seu temperamento ficou mal visto. Sua carreira afundou.

Falida, ela largou a carreira de modelo, trabalhou em shopping e como garçonete. Morreu em 1985 diagnosticada com Aids com apenas 26 anos, já totalmente desconhecida. Em 1998, sua vida é relembrada no filme “Gia”, protagonizado pela Angelina Jolie.

 

Cena do filme “Gia” (1998), com Angelina Jolie.

 

Da ascendência de sua carreira no início dos anos 80 até sua morte, em 1985, se passou muito pouco tempo. Sua história trágica se torna mais chocante quando esse passa a ser o estilo glamourizado anos depois com o “heroin chic”.

Essa nova tendência dos anos 90 foi estrelada pela Kate Moss, mas também contou com modelos como Jodie Kidd e Jamie King. Mas Kate Moss era Kate Moss.

Kate caiu nas graças do mundo da moda após ser fotografada para a revista The Face pela fotógrafa Corinne Day, uma das precursoras do heroin chic na fotografia. Na capa, Moss ela aparece sorrindo com um cocar de penas na cabeça, mas a elevação da modelo a ícone fashion começa a se formar com a campanha de Moss para a Calvin Klein usando jeans e… bem, era apenas jeans mesmo.

 

Duas fotos de Kate Moss lado a lado. Na primeira, Kate está na capa da revista The Face, sorri e usa cocar. Na segunda, Kate está sentada apoiada em um muro, de moletom preto e segurando um cigarro.

Kate Moss em fotografia de Corinne Day.

 

duas fotos de kate moss em campanha para a calvin klein. na primeira, kate está no colo de um modelo forte, ambos usam apenas jeans. na segunda, kate está de costas olhando para trás, também nua, em primeiro plano escrito "obsession",

Kate Moss, fotografa por Mark Wahlberg para campanha da Calvin Klein.

 

Sua imagem pública ia além das capas de revistas de moda e ela ocupava também as capas dos tabloides e revistas de fofoca. Imagens suas abusando de álcool e drogas eram amplamente divulgadas. Apesar de ter um efeito negativo na sua imagem, essa sua vida de festa e droga também ajudava a montar a persona “modelo-anti-modelo” que tanto chamou atenção com Gia.

Era nesse limiar de glamour nas passarelas e sarjeta nos finais de noite que se situava o heroin chic. As capas de revista e estilos de vida das modelos se mesclavam para compor o editorial.

 

três imagens lado a lado. a primeira é a capa do daily mirror com manchete "cocaine kate" mostra a modelo usando cocaína. a segunda, capa do the sun, mostra kate sentada em uma cadeira, à sua frente uma mesa com carreiras de cocaína enfileiradas. a terceira, papparazzi fotografaram kate apoiada na janela.

 

“heroin chic”, moda, arte e capitalismo

 

O heroin chic foi uma estética, ambientada no Reino Unido e Estados Unidos, que tem raízes nos anos 80, popularizado nos início dos anos 90 e que entra em declínio no final desta década. Representada principalmente através de uma corrente da arte fotográfica e da moda, o look era um misto de grunge com melancolia high fashion, caracterizado por modelos extremamente magras com ossos marcados na pele, olhos profundos muitas vezes marcados com olheiras, pele pálida e cabelo embaraçado, a maquiagem era leve (como se tivesse desgastado) ou borrada. A referência à heroína – droga popularizada na época – se mostrava na magreza das modelos e no estilo pós-festa de ressaca das fotografias que estampavam as revistas de moda.

Além de Corinne Day, mencionada anteriormente, outro fotógrafo de marca essa tendência foi Davide Sorrenti. Ele fotograva com regularidade sua namorada, a modelo Jamie King, e ambos eram usuários de heroína. A foto de Sorrenti retratando Jamie em um sofá encardido para a revista Hysteric Glamour é uma das mais conhecidas imagens do “heroin chic”.

Jamie King em fotografia por Davide Sorrenti

 

Esse look acompanhou as mudanças culturais da época ao mesmo tempo que elevou a milésima potência seus problemas. A heroína era vista como uma droga de pessoas pobres, ou seja, nada chique. Após a epidemia da AIDS, a conscientização sobre o uso e compartilhamento de seringas trouxe uma mudança na comercialização da droga que passou a ter sua versão em pó mais conhecida. Isso possibilitou desassociar a droga do estigma de ser “coisa de pobre” e, assim, seu uso caiu no gosto da camada mais abastada da sociedade, possibilitando virar objeto de status social. Esse shift certamente encontra correspondência com a questão racial: a heroína passa a ser cool conforme é usada por pessoas brancas e ricas.

A heroína ganhou espaço na cultura popular em filmes, como Trainspotting e Pulp Fiction, música (Nirvana, Pearl Jam e Alice in Chains), videoclipes e, é claro, cravou seu nome nas tendências da moda mais elitizada. Tratava-se de uma antítese da moda hegemônica até então, das modelos saudáveis, loiras-de-olhos-azuis, as poses perfeitas e sorridentes. As fotografias não pareciam feitas nem mesmo profissionalmente, eram de modelos no chão, não olhavam para câmera e não pareciam posar para foto. As localizações não eram cenários exuberantes, mas hotéis baratos, banheiros, carpetes manchados de bebida e sofás velhos.

 

Chloe Sevigny para a revista The Face (1997) fotografada por Juergen Teller.

 

A estética do heroin chiq se vendia como uma ruptura com a moda até então. O mundo de fantasia e glamour era substituído por um retrato de estética documental dos bastidores da moda. Era o “mundo real”, em oposição ao mundo superficialmente criado para as capas de revista, onde a imperfeição substituía a perfeição das modelos e cenários melimetricamente adornados. Era também uma crítica ao cânone da beleza ao retratar como belo não o pomposo, mas o decadente.

 

À esquerda, Cindy Crawford, ícone da beleza na época e à direita Jamie King, símbolo do “heroin chic”

 

É uma estética que se une ao movimento grunge em torno de uma crítica a uma sociedade degastada. A perfeição no qual ninguém mais se enxergava, a crítica ao consumismo, a sensação de abandono, a melancolia. O grunge fazia parte de uma contra-cultura, que de certa forma impulsiona o “heroin chiq” mas não pode ser confundido com ele. O que quero destacar é que o “heroin chic” bebe dessa fonte.

No entanto, era ela mesma uma estética falsa. Apesar de ter como referência a estética documental, não é documental, é também uma estética melimetricamente pensada e construída. Nem mesmo como crítica ao cânone anterior vai muito além, ao substituir modelos brancas magras por modelos brancas mais magras ainda e, assim, não havia subversão na ideia de beleza retratada. Ao invés de romper com a fantasia do mundo da moda, a substituía por outra: um mundo de drogadição glamourizada.

O “heroin chic”, ao ser colocado nas capas de revistas e campanhas publicitárias, perde qualquer tipo de ambição de contra-cultura e se torna uma hipocrisia em si mesma. Enquanto o grunge criticava o consumismo, o “heroin chic” se inspirava no grunge para vender desde jeans à alta-costura, além de vender também uma estética que fez com que uma geração de meninas se olhasse no espelho e se achasse gorda demais. A história do “heroin chic” é uma história também do funcionamento do capitalismo, que se apropria de uma estética de contra-cultura (grunge), a esvazia de conteúdo e vende sem qualquer escrúpulos uma estética de glamorização das drogas em meio ao ambiente já altamente tóxico do mundo da moda.

 

Fotos das Revistas Allure/Vogue/Allure

 

o fim do “heroin chic”

 

Davide Sorrenti

 

A tendência do heroin chic encontra seu fim em outra tragédia. Com apenas 20 anos, o fotógrafo Davide Sorrenti morre, em 1997, após complicações de saúde advindas após um overdose de heroína. A sua mãe, Francesca Sorrenti, iniciou uma campanha contra a glamorização das drogas que chamou atenção até mesmo do presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que criticou publicamente a indústria da moda na época.

Assim, temendo o impacto em suas vendas, a indústria iniciou algumas mudanças, como na contratação de modelos que parecessem mais “saudáveis”. (a carreira da Gisele Bündchen, por exemplo, passa a se destacar dentro desse cenário já seguindo essa nova tendência). Se começa também uma crítica mais contundente com relação aos padrões de beleza das passarelas, a saúde das modelos e seus envolvimentos com drogas, as preocupações com contratações de menores de idade e as influências da indústria da moda na sociedade.

Ainda assim, em 2011 a Dior lança uma campanha de batom protagonizada pela embaixatriz do heroin chic, Kate Moss, com o título “Dior Addict: be iconic” (em tradução livre: viciado em Dior: seja icônica). Em 2014, o heroin chic reaparece na moda japonesa, em uma estética contraposta à estética kawaii “fofinha” e desde então é reprisada aqui e ali em algum editorial.

 

Kate Moss em campanha para Dior.

 

Se o heroin chic não é a tendência atual, não significa que de fato a aliança da indústria da moda com padrões problemáticos teve seu fim. Nessa propaganda da Dior, por exemplo, vemos que a estética muda mas a essência se mantém e mesmo depois do fim do heroin chic surge o boom da anorexia como uma tendência, por exemplo.

Em termos de críticas aos padrões de beleza, a maior mudança que temos visto se deram a partir das críticas e práticas do feminismo negro que passa a questionar os padrões estéticos predominantemente brancos aliados a uma valorização da estética negra, tanto dos traços físicos quanto culturais. A partir daí, o movimento “body positive” também ganha força, ao se questionar a gordofobia e o movimento de pessoas com deficiência também se alia nas críticas dos padrões de beleza. É claro, nenhuma dessas críticas é recente, mas sem dúvida ganham mais notoriedade na última década, a partir dos chamados por representatividade.

Ainda assim, existe um longo caminho a percorrer. É importante olhar para trás para podermos enxergar o presente. Hoje, parece que o “heroin chic” foi um surto coletivo, mas no presente as problemáticas dos padrões de beleza são mais difíceis de enxergar porque estamos no meio deles. A necessidade do feminismo se impõe na medida em que é a partir da teoria e prática feminista que esses questionamentos são feitos. Também não por qualquer feminismo, mas por um feminismo anticapitalista.

Ao mesmo tempo que hoje se avança nas exigências de representatividade na moda, não podemos perder de vista que as mudanças que queremos não virão a partir de uma reconfiguração dessa indústria. As críticas aos padrões de beleza se aliam também a outras, como as das relações de trabalho da indústria que utiliza trabalho análogo ao escravo de mulheres do sul global e também do impacto ambiental que a indústria causa, principalmente a moda desenfreada no fast fashion.

Esses padrões precisam ser quebrados e isso significa que precisamos destruir o que está posto para construir algo novo no lugar.

 

Referências:

ESPINOSA, Elena Guillén. Heroin Chic: exposición y reinterpretación de la tendencia que marcó una década. <TFGUEX_2018_Guillen_Espinosa.pdf>

The Independent. Gia: The tragic tale of the world’s first supermodel. <https://web.archive.org/web/20080101071428/http://news.independent.co.uk/world/americas/article311535.ece>

Dazed. The story of Gia – the world’s first supermodel who died of Aids at 26. <https://www.dazeddigital.com/fashion/article/41317/1/the-story-of-gia-the-world-s-first-supermodel-who-died-of-aids-at-26>

Terra. Drogas, Nudez e magreza: veja por que o mundo ama Kate Moss. <https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/moda/drogas-nudez-e-magreza-veja-por-que-o-mundo-ama-kate-moss,75fd7542e9eea410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html>

MALINS, Peta. An Ethico-aesthetics of heroin chic: art, cliché and capitalism. In: Deleuze and the body. Ed. Edinburgh University Press.

Yves Sem Laurent. Heroin Chic: quando a estética viciada invadiu o high fashion. <https://yvessemlaurent.com/2018/04/26/heroin-chic-quando-a-estetica-viciada-invadiu-o-high-fashion/>