Judith Butler é uma proeminente teórica de gênero e teve um papel fundamental na delineação do feminismo moderno. Ela escreveu extensivamente sobre gênero, e seu conceito de performance de gênero é um tema central tanto no feminismo moderno quanto na teoria de gênero. Os ensaios e livros de Butler incluem “Performative acts and gender constitution [Atos performativos e consituição de gênero]” (1888), “Gender trouble: feminism and the subversion of identity [Problema de gênero: feminismo e a subversão da identidade]” (1990), “Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex’ [Corpos que importam: sobre os limites discursivos de ‘sexo’]” (1993) e “Undergoing gender [Submissão ao gênero]” (2004).

Entretanto, o conceito de performance de gênero tem sido usado e – alguns afirmariam – abusado para apoiar um número de posições que interpretam de forma errônea o trabalho de Butler. Eu, portanto, queria perguntar a Butler o que ela realmente pensa sobre gênero e a experiência trans. Ao longo desse caminho, Butler aborda especificamente as TERFs e o trabalho de Sheila Jeffreys e de Janice Raymond.

Cristan Williams: Você falou sobre a intervenção cirúrgica pela qual muitas pessoas trans passam como uma “transformação muito corajosa”. Pode falar sobre isso?

Judith Butler: É sempre corajoso quando você  insiste em se submeter a transformações que sente serem necessárias e certas, ainda quando há tantos obstáculos para se fazer isso, incluindo pessoas e instituições que procuram patologizar ou criminalizar atos tão importantes de auto-definição. Sei que para alguns parece menos corajoso do que meramente necessário, mas todos temos que defender essas necessidades que permitem que nós vivamos e respiremos do jeito que parece certo para nós. A intervenção cirúrgica pode ser precisamente aquilo de que uma pessoa trans precisa – e também não é sempre aquilo de que uma pessoa trans precisa. De um jeito ou de outro, as pessoas deveriam ser livres para determinar o curso de sua vida quando se trata de gênero.

CW: Acho que é seguro dizer que muitos teóricos de gênero são controversos de um jeito ou de outro. Alguns agruparam seu trabalho com o de teóricas de gênero como Sheila Jeffreys, que escreveu:

[A cirurgia transsexual] pode ser comparada à psiquiatria política na União Soviética. Eu sugiro que a transsexualidade seria vista melhor sob essa luz, como um abuso diretamente político e médico dos direitos humanos. A mutilação de corpos saudáveis e a sujeitação de tais corpos a tratamentos contínuos perigosos que representam ameaças à vida viola o direito dessas pessoas de viver com dignidade no corpo no qual nasceram, a que Janice Raymond se refere como seus corpos “nativos”. Isso representa um ataque ao corpo para retificar uma condição política, a insatisfação com o “gênero” em uma sociedade de supremacia masculina baseada em noções falsas e politicamente construídas de diferença de gênero… A literatura recente sobre transsexualidade na comunidade lésbica atrai conexões com as práticas de sadomasoquismo.

Você pode falar das formas em que as visões de vocês podem se diferenciar?

JB:  Eu nunca concordei com Sheila Jefreys ou Janice Raymond, e por muitos anos tenho estado do lado imediatamente contrário dos debates feministas. Ela se coloca em na posição de julgar e oferece um tipo de policiamento feminista das vidas e escolhas trans. Eu me oponho a esse tipo de normativismo, que me parece aspirar a um tipo de tirania feminista.

Se ela faz uso da construção social como teoria na qual basear sua visão, interpreta muito mal seus termos. Em sua visão, uma pessoa trans é “construída” por um discurso médico e portanto é vítima de tal construção social. Mas a ideia de construção social não reconhece que todos nós, como corpos, estamos na posição ativa de descobrir como viver de acordo ou contrários às construções – ou normas – que ajudam a nos formar. Formamos a nós mesmos dentro de vocábulos que não escolhemos e, às vezes, temos que rejeitá-los ou desenvolver ativamente novos vocábulos. Por exemplo, o desígnio de gênero é uma “construção” e ainda assim muitas pessoas não-binárias e trans se recusam em parte ou completamente a viver esse desígnio. Essa recusa abre o caminho para formas mais radicais de auto-determinação, que acontecem em solidariedade com outros que estão passando por um esforço similar.

Um problema dessa visão da construção social é que sugere que o que as pessoas trans sentem sobre o que seu gênero é e o que deveria ser é em si mesmo uma “construção” e, portanto, não é real. E então a polícia feminista vem expor a construção e disputar a percepção que uma pessoa trans tem da realidade que vive. Eu me oponho totalmente a esse uso da construção social e o considero um uso falso, enganador e opressivo da teoria.

CW: Recentemente, Gloria Steinem escreveu:

Então, agora eu quero ser completamente inequívoca em minhas palavras: eu acredito que as pessoas trans, incluindo aquelas que se transicionaram, estão vivendo vidas reais e autênticas. Essas vidas devem ser celebradas, não questionadas. As decisões relativas à sua saúde cabem somente a essas pessoas. E o que escrevi há décadas não reflete o que nós sabemos hoje, conforme nos afastamos das caixinhas binárias de “masculino” ou “feminino” e começamos a viver o contínuo humano total de identidade e expressão.

Você pode comentar a declaração de Steinem?

JB: Eu concordo completamente que nada é mais importante para as pessoas trans do que ter acesso a uma excelente assistência médica em ambientes trans-afirmativos, ter a liberdade legal e institucional de levar sua vida como desejam e ter sua liberdade e seu desejo afirmado pelo resto do mundo. Isso só vai acontecer quando a transfobia for superada no nível das atitudes e dos preconceitos pessoais e das grandes instituições da educação, do direito, da saúde e da família.

CW: O que você acha que as pessoas mais distorcem nas suas teorias e por quê?

JB:  Eu não leio muito desses escritos, então não posso dizer. Eu sei que algumas pessoas acreditam que eu vejo o gênero como uma “escolha” em vez de como uma noção de si essencial e firmemente fixada. Minha visão na verdade não é essa. Independentemente de uma pessoa sentir sua realidade de gênero e sua sexualidade mais ou menos fixada, todos deveriam ter o direito de determinar os termos legais e linguísticos de sua vida corporal. Então o fato de alguém querer ser livre para viver uma noção de sexo mais “naturalmente pré-determinada” ou uma noção mais fluida de gênero é menos importante do que o direito de ser livre para viver qualquer uma dessas coisas, sem discriminação, assédio, prejuízo, patologização ou criminalização – e com total apoio das instituições e das comunidades. Isso é o mais importante na minha visão.

CW: Você acha que os humanos têm uma experiência inata e subjetiva de ter um corpo? Se sim, parte dessa experiência também incluiria ter um corpo com características sexuais primárias?

JB: A maior parte do que se diz sobre esses temas é bem especulativo. Eu sei que algumas experiências subjetivas de sexo são muito firmes e fundamentais, talvez até indisputáveis. Elas podem ser tão firmes e imutáveis que a chamamos de “inatas”. Mas, pensando que nós relatamos essas noções de si dentro um mundo social, um em que estamos tentando usar a linguagem para expressar o que sentimos, não é claro o que a linguagem faz de forma mais efetiva. Eu entendo que “inato” é uma palavra que expressa uma noção de algo naturalmente pré-determinado e constitutivo. Suponho que eu estaria inclinada a me perguntar se outros vocábulos desempenhariam essa função igualmente bem. Eu nunca gostei da afirmação da inferioridade “inata” das mulheres ou dos negros e entendo que quando as pessoas tentavam falar dessa forma, estavam tentando transformar uma realidade social em uma necessidade natural. Ainda assim, às vezes nós precisamos mesmo de uma linguagem que se refira à dimensão básica, fundamental, duradoura e necessária de quem somos, e a noção de incorporação sexuada pode ser precisamente isso.

CW: Algumas pessoas (como Milton Diamond) afirmam que parece haver uma questão genética que pode levar à transsexualidade. O que você pensa sobre tais afirmações?

JB: Nas obras de Milton Diamond que li, tive que questionar o jeito como ele entende genética e causalidade. Ainda que uma estrutura genética pudesse ser encontrada, só demonstraria um desenvolvimento possível, mas de forma alguma determinaria esse desenvolvimento de forma causal. A genética pode ser ainda outra forma de chegar a essa noção de ser “naturalmente pré-determinado” a um sexo ou gênero. Minha percepção é a de que não precisamos da linguagem do que é inato ou da genética para entender que somos todos eticamente comprometidos a reconhecer a noção declarada ou decretada que alguém tem de sexo e/ou gênero. Não temos que concordar nas “origens” dessa noção de si para concordar que é eticamente obrigatório apoiar e reconhecer modos de ser sexuados e de gênero que são cruciais ao bem-estar de uma pessoa.

CW: Se “gênero” inclui o jeito como nós experimentamos, contextualizamos e comunicamos subjetivamente nossa biologia, você pensa que viver em um mundo sem “gênero” é possível?

JB: Às vezes há formas de minimizar a importância do gênero na vida, ou de confundir categorias de gênero para que elas não mais tenham poder descritivo. Mas outras vezes o gênero pode ser muito importante para nós, e algumas pessoas realmente amam o gênero que reivindicaram para si mesmas. Se o gênero for erradicado, será um importante domínio de prazer para muitas pessoas. Já outras têm uma noção forte de si amarrada aos seus gêneros, então acabar com o gênero seria destruidor para sua noção de si. Acho que temos que aceitar uma larga variedade de posições sobre o gênero. Alguns querem ser livres de gênero, mas outros querem ser livres para viver um gênero que é crucial para quem eles são.

CW: Eu já vi como – especialmente online – pessoas que se identificam como “feministas críticas de gênero” (TERFs) afirmam que as mulheres trans são meramente homens mutilados. O que você acha de usar o “feminismo crítico de gênero” para fazer afirmações desse tipo?

JB: Eu não conheço esse termo, mas rejeito totalmente a caracterização de uma mulher trans como um homem mutilado. Primeiramente, essa formalução presume que homens nascidos nesse desígnio de sexo não são mutilados. Em segundo lugar, mais uma vez coloca as feministas como promotoras de justiça contrárias às pessoas trans. Se há alguma mutilação ocorrendo nesse cenário, está sendo feita pela polícia feminista que rejeita a incorporação vivida por mulheres trans. Essa própria acusação é uma forma de “mutilação”, como são todos os discursos transfóbicos como esse. Há uma diferença ética enorme entre eleger cirurgias e ser defrontado com condenações e diagnósticos transfóbicos. Eu diria que o maior risco de mutilação que as pessoas trans correm vem diretamente da transfobia.

CW: Muitas pessoas afirmam que mulheres/fêmeas podem ter um pênis e que homens/machos podem ter uma vagina. O que pensa sobre isso?

JB: Eu não vejo problema algum em mulheres terem um pênis e homens terem uma vagina. As pessoas podem ter quaisquer características primárias que tenham (sejam elas dadas ou adquiridas) e isso não necessariamente insinua a qual gênero pertencem ou querem pertencer. Para outras, as características sexuais primárias significam o gênero de forma mais direta.

CW: A interseccionalidade pode parecer uma queixa intestinal que resulta no uso abundante de uma bolsa de colostomia, e de fato contém uma quantidade grande de excremento. A Wikipedia a descreve como “o estudo das interseções entre diferentes grupos carentes de direitos ou grupos de minorias; especificamente, o estudo das interações entre os múltiplos sistemas de opressão ou discriminação”, o que parece maduro e digno. Na realidade, parece fazer um manifesto retirado das partes mais repugnantes de “Meninas Malvadas”, em quem feministas não-brancas são especialmente encorajadas a desviar da tarefa óbvia de atacar o poder do patriarcado em favor de reclamar dos privilégios que percebem nas mulheres brancas em termos de textura de cabelo e forma física. – Julie Burchil.

Você tem uma opinião sobre a “interseccionalidade”?

JB: Se você está se referindo à importante contribuição da teoria feminista negra, tenho muitas opiniões. Ela fez uma contribuição importante à análise política e social, pedindo que todos nós  pensemos sobre que suposições de raça e classe fazemos quando falamos sobre “mulheres” ou que suposições de gênero e raça fazemos quando falamos de “classe”. Ela permite que nós desembalemos essas categorias e vejamos os diversos tipos de formações sociais e relações de poder que constituem essas categorias.

CW: Já se afirmou que ninguém controla o modo como alguém se identifica e comporta, que ninguém pode mudar a maneira como uma pessoa experimenta seu corpo. Por exemplo:

Ele podia ver que eu estava submetida a essa coisa, que somente agora eu percebo que era demoníaca. Eu ajoelhei no chão do escritório, em lágrimas, eu estava sufocando, forças estavam me dizendo para não fazê-lo, para abandonar isso; a liberdade como mulher me esperava, afinal de contas, eu tinha feito tanto progresso. Eu revidei, eu chorei em voz alta, eu me arrependi, eu repreendi o que tinha passado em minha vida… Tudo isso aconteceu há 18 meses… Eu lhes entreguei minha mala de vestidos, roupas, maquiagens etc. Me fez sentir mal e foi uma coisa importante para mim. Eu tinha que me livrar de tudo que havia me segurado antes. Eles se livraram das coisas. Eu parei de ir à manicure e cortei minhas unhas bem curtas, eu deixei crescer uma pequena barba. Eu joguei fora todas as pílulas [hormonais] e virei as costas para tudo que tinha a ver com meus desejos. Eu pedi a meu Pastor um versículo que pudesse olhar todos os dias para aproveitar minha nova liberdade como homem, pai e marido. Eu coloquei um pedaço de papel ao lado da minha cama, com versículos encorajadores que lia todas as manhãs ao sair da cama. Eu sabia que a mulher dentro de mim estava morta. O poder de Cristo a havia destruído, junto com tudo em que ela acreditava. 18 meses depois, o demônio ainda tenta me persuadir, mas ele sabe que não vou entrar nesse caminho, já que as consequências para minha família seriam imensas. Eu sou responsável por várias pessoas e estou aproveitando minha vivência de homem. – A história de Sam

No exemplo acima, o indivíduo fez um ritual diário, ainda em andamento, da prática da negação e da repressão, na crença de que isso vai mudar a forma como ele experimenta seu corpo. No que parece uma abordagem similar, Janice Raymond escreveu:
Esse ensaio argumentou que a transsexualidade é uma questão ética que tem profundas ramificações sociais e morais. A transsexualidade em si é uma questão profundamente moral em vez de uma resposta médica ou técnica. Concluindo, eu listaria algumas sugestões para fins de mudança que abordam mais os argumentos sociais e morais que tenho levantado nas páginas anteriores.

Enquanto há muitas pessoas que sentem que a moralidade deve ser incorporada na lei, acredito que a eliminação da transsexualidade não é melhor atingida por legislações que proíbam o tratamento e a cirurgia transsexual, mas sim por uma legislação que limite essas coisas e por outra que minimize o apoio dado à estereotipação dos papéis sexuais, que geraram o problema para início de conversa…

Isso levantaria questões como as seguintes: o alívio do sofrimento de gênero individual tem como preço a conformidade de papéis e a perpetuação dos estereótipos de papéis em um nível social? Ao mudar de sexo, o transsexual encoraja a sociedade sexista cuja existência continuada depende da perpetuação desses papéis e estereótipos? Essas e outras questões similares raramente são levantadas na terapia transsexual no presente.

Raymond (1980), “Techonology on the social and ethical aspects of transsexual surgery [A tecnologia nos aspectos sociais e éticos da cirurgia transsexual]”

No seu entendimento de “gênero”, você acredita que qualquer uma dessas abordagens – ambas focadas no controle do comportamento (através de Deus e da terapia religiosa ou de legislação e da terapia de estereótipos) – seria capaz de eliminar as pessoas trans?

JB: Eu acho que é da incumbência de todos nós nos livrarmos dessas abordagens – elas são dolorosas, desnecessárias e destrutivas. Raymond se coloca como juíza do que a transsexualidade é ou não é, e nós já estamos em um tipo de prisão moral quando lemos seu trabalho. O que é muito mais importante do que todas abordagens “morais” ou behavioristas são as histórias, poemas e relatos, os trabalhos políticos e teóricos que documentam o esforço para atingir a auto-determinação incorporada para indivíduos e para grupos. O que precisamos é de poemas que questionem o mundo de pronomes, abram as possibilidades da linguagem e da vida; formas políticas que apoiem e encoragem a auto-afirmação. E o que precisamos é de alternativas políticas e alegres ao discurso behaviorista, ao discurso cristão sobre o mal ou o pecado e à convergência dos dois na forma de um policiamento de gênero tão tirânico e destrutivo.

CW: Você acha que “sexo” é uma construção social?

JB: Acho que há uma variedade de formas de entender o que é uma construção social e que temos que ser pacientes com termos como esse. Temos que encontrar uma maneira de entender como uma categoria de sexo pode ser “designada” a partir de ambos que e uma outra noção de sexo pode nos levar a resistir e a a rejeitar essa designação de sexo. Como entendemos essa segunda noção de sexo? Não é a mesma que a primeira – não é uma designação que outros nos dão. Mas talvez uma designação feita por nós mesmo? Se sim, não precisamos de um mundo de outros, de práticas linguísticas, de instituições sociais e de imaginários políticos para seguir em frente e reivindicar precisamente essas categorias de que precisamos, e para rejeitar aqueles que trabalham contra nós?

CW: O que você gostaria que as pessoas trans tirassem de seu trabalho, se houver algo?

JB: “Gender trouble [Problema de gênero]” foi escrito há 24 anos e naquele período eu não pensei o suficiente sobre as questões trans. Algumas pessoas trans pensaram que ao alegar que o gênero é performativo eu estava dizendo que é tudo uma ficção e que o senso de gênero sentido por uma pessoa era portanto “irreal”. Essa nunca foi minha intenção. Eu procurava expandir nossa noção do que as realidades de gênero poderiam ser. Mas acho que precisava prestar mais atenção ao que as pessoas sentem, à forma que a experiência primária do corpo é registrada e à demanda urgente e legítima de ter esses aspectos do sexo reconhecidos e apoiados. Eu não quis argumentar que o gênero é fluido e mutável (o meu certamente não é). Eu só quis dizer que todos nós devemos ter uma liberdade maior para definir e levar nossas vidas sem patologização, alegações de irrealidade, assédio, ameaças de violência, violência e criminalização. Eu me junto ao esforço para concretizar tal mundo.

Entrevista publicada originalmente no site TheTerfs.com. Tradução por Bruna de Lara.