As recentes eleições europeias tornaram real uma miragem que fabricamos coletivamente há anos: a construção fragmentada de uma nova forma de fascismo paradoxalmente democrático. Isto cumpre as previsões lúcidas de Pierre Paolo Pasolini quando falou da “extrema-direita real” como uma nova forma de fascismo capaz de se materializar socialmente para além das idealizações de uma ideologia do passado. A verdadeira extrema-direita (e um conjunto de grupos de interesses semelhantes em todo o espectro de partidos) não só entrou no Parlamento Europeu, como se tornou o árbitro do debate entre todas as outras formações políticas. Através de uma aritmética rigorosa do voto, o nacionalismo tecnopatriarcal e racista conseguiu fazer da sua linguagem de ódio a gramática comum do Parlamento Europeu, um novo Necro-Esperanto.

Assistimos perplexos ao processo através do qual a democracia representativa absorve e desativa as diferentes subculturas da oposição e as transforma numa cultura de poder e identidade. É possível pensar como participante na construção de uma sociedade de partidos iguais como o Vox, Rassemblement National ou a Liga que promovem a construção de um muro nas fronteiras da Europa, o confinamento ou deportação de todos os migrantes, a ilegalização do casamento homossexual, a criminalização do aborto, a legalização da caça e a liberalização das licenças de construção e poluição sem restrições ecológicas? Sentar um dos seus representantes num parlamento democrático é como querer jogar às cartas com um envenenador que borrifará o baralho com moléculas de cianeto e depois abrirá um jogo “igual” com os seus concidadãos. Como se isto não bastasse, os modelos formais e as lógicas aritméticas com que a democracia representativa funciona permitem uma recomposição aberrante dos governos: alianças dos partidos de extrema-direita neo-nacionalistas e socialistas ou do centro neoliberal, mas também acordos entre partidos antagónicos (mesmo quando a extrema-direita não está presente) cujo único objetivo é manter o poder.

Mas o problema do fascismo democrático não são os partidos da extrema direita, mas um sistema patriarcal colonial antropocêntrico representativo, segundo o qual o consenso social é obtido através de um pacto de livre comunicação entre indivíduos humanos iguais – definido antecipadamente em termos de cidadania burguesa, neuro-dominante, heteropatriarcal e branca. A forma de governo que o modelo representativo e as políticas partidárias geram trai o ideal democrático da realização de uma sociedade de iguais. A suposta democracia em que vivemos inscreveu o princípio da dominação nos seus próprios modos de deliberação e nas suas formas de organização. Aquilo a que chamamos participação livre (mas escassa) (uma vez de quatro em quatro anos!) não é senão a ritualização de diferentes formas de submissão: administrativa, laboral, racial, econômica, sexual, digital, legal, psiquiátrica… A questão permanece somatopolítica: qual é o órgão que é considerado digno de voto? E onde está o órgão político (não representativo e portanto não soberano) depois ou durante o ato de representação?

Em 1992, a drag queen Joan Jett Blakk, uma personagem de ficção política criada pelo activista e artista Terence Smith, concorreu nas eleições americanas para o Partido Queer Nation com o slogan “Lick Bush” e pediu aos seus apoiantes que não votassem nela ou em qualquer outro candidato. Depois de conhecidos os resultados das eleições que deram a vitória a Cliton, a adversária “democrática” de Bush, Joan Jett Blakk declarou-se vencedora uma vez que, segundo o seu argumento convincente, tinha sido aclamada por 84.747.163 abstenções, em comparação com os 44.908.806 votos que Bill Cliton tinha obtido e os 39.104.550 votos recolhidos por Bush.

Se acrescentarmos aos “eleitores abstencionistas” os pontos cegos do sistema, obteremos o mapa da verdadeira democracia a que Joan Jett Blakk apela. Não votam nem os encarcerados, nem os animais humanos com menos de 18 anos, nem os considerados doentes mentais, nem os imigrantes, nem os refugiados em “trânsito”. Os primatas não humanos não votam. As pessoas trans cujos nomes não correspondem ao que têm nos seus passaportes – se tiverem um passaporte – não votam. Os animais não humanos – domésticos, industriais e selvagens – não votam. Os sem-teto não votam, nem todos aqueles corpos que não têm endereço postal. Tampouco votam as mãos indocumentadas que masturbam os pênis dos que votam. Os corais também não votam. Os corpos em coma à espera de uma decisão do tribunal para serem desligados não votam. Não votam os deprimidos, nem as mulheres que cuidam dos filhos das famílias que votam. A selva não vota, nem a água – que por certo não conhece fronteiras nacionais ou parlamentos, nem qualquer outra identidade que provém da aliança de átomos de oxigénio e hidrogênio.

O povo do populismo não tem corpo. Os templos da democracia representativa estão vazios, e é por isso que estão a ser preenchidos com fascismo. Vamos destruir as convenções antidemocráticas da democracia antes que destruam o corpo vivo da Terra. Demos corpo à democracia para a salvar do seu formalismo representativo. Não vamos pedir o direito de voto. Peçamos o direito ao corpo. E vamos construir uma democracia somatopolítica direta.

 

Paul B. Preciado

 

Texto originalmente publicado aqui. Traduzido por Bruna Rangel.

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