O filme 365 Dias é um drama erótico que estreou na Netflix. Um fracasso de crítica, como a que comenta “um filme pornô é mais honesto que este lixo”, no site Rotten Tomatoes onde o filme exibe a incrível marca de 0% de aprovação dos críticos. Ainda assim, foi um sucesso de visualizações, constando no ranking de filmes mais vistos da Netflix em vários países. E a explicação para isso é bem óbvia: sexo vende.

365 Dias é um filme de soft porn. Daquele pornô mais antigo, época em que as pessoas ainda alugavam os filmes e eles ainda tinham história, início meio e fim (e um monte de sexo no meio, é claro). De fato, ninguém via filme pornô pela história, ela só estava ali para ligar as cenas de sexo. E é exatamente isso que é 365 dias.

Portanto, é inútil analisar o filme como filme. Isso quer dizer, falar de desenvolvimento da história, roteiro, arco de personagens, nada disso faz sentido. É um filme péssimo em todos os aspectos, mas algumas coisas são relevantes de serem mencionadas. E, para tanto, é necessário contexto. Portanto, existem alguns spoilers pela frente.

O filme começa com um homem em uma desconfortável negociação de trabalho escravo sexual no rooftop de um grande casarão na região da Sicília. Sim! É isso mesmo. Ao fundo, o seu filho, o jovem garanhão Massimo, observa com binóculos a praia em volta da residência e, nela, uma mulher linda. A vista é interrompida pelo pai, que abandona a negociação aos cuidados de um funcionário para falar com o filho. Do nada, o pai é baleado. Porquê? Como? Ninguém sabe. A bala trespassa o pai e atinge Massimo! Oh, não! A única imagem que Massimo viu antes de quase morrer foi da bela mulher que ele observou na praia. O pai, no entanto, não sobreviveu e deixa Massimo como herdeiro da fortuna familiar e a função de chefe da máfia. O agora mafioso passa os próximos anos tentando encontrar a mulher da praia, até que isso ocorre.

O nome dela é Laura, uma empresária do setor hoteleiro. Apesar do sucesso na carreira, ela vive um relacionamento infeliz. O namorado fica no computador e a ignora, aparece de regata e bermuda na sua festa social de aniversário e faz o passeio turístico que combinaram de realizar juntos, sozinho. É um sujeito tosco e um completo panaca, que existe somente para formar o contraste com o bonito e rico homem que chegará na sua vida em breve. Mas que príncipe encantado será esse?

Um belo dia Laura é drogada e sequestrada. Ela acorda em uma cama de um quarto luxuoso. Trancada. Ela se desespera e esperneia? Não, ela aguarda sentada. Em determinado momento, ela escuta a porta sendo destrancada, abre e sai correndo pela casa. Percorre os cômodos grandiosos, e se depara na sala com um homem.

Ela estranha, pergunta o que está fazendo ali. Massimo explica toda a situação, que o pai morreu, que ele a viu antes de quase morrer, que ele estava a procurando esse tempo todo. Ele comunica, enfim, que ela ficaria ali por 365 dias, tempo em que ele teria para fazê-la se apaixonar por ele. Ao final de um ano, portanto, eles poderiam ficar juntos ou ela estaria livre.

E foi esse o plot que foi apresentado em uma reunião com executivos da Netflix, que resolveram ao final: APROVADO!

E é uma história que nós já vimos antes.

Eu sei que a comparação mais óbvia e que todos estão pensando é com o filme 50 Tons de Cinza, que é problemático por si só. Mas confesso que eu, pessoalmente, acho que esse filme é uma reinvenção ruim e pornô de A Bela e a Fera. Pensa só comigo.

Bela é feita prisioneira em um grande castelo e a Fera, um príncipe rico, precisa que Bela se apaixone por ele (neste caso, para quebrar o feitiço colocado por uma bruxa). Bela vai aos poucos percebendo que sua prisão é um mundo incrível (tem até uma biblioteca enorme!), e que a Fera é, na verdade, um sujeito amável mas só um pouco grosso. A Fera só precisa de uma ajuda para se tornar melhor, como Massimo que em determinada cena diz “quero que você me ensine a ser delicado”. Bela é salva pela Fera de uma manada de lobos e, assim, percebe que ele realmente a protege, assim como Laura que é salva de um afogamento em uma cena risível mas que a partir daí se entrega ao Massimo.

A história da Bela e a Fera é um antigo conto de fadas francês que era, na época, basicamente propaganda para romantizar o casamento arranjado. E é uma história que foi contada e recontada várias vezes, de diversas formas, como na animação da Disney de 1991 e no recente live-action de 2017. Então, não é que um dia mulheres acordaram achando um máximo uma história como 365 Dias. Essa é uma história que já está encrustada na nossa imaginação. O que 365 Dias faz é tornar tudo muito mais escancarado, certamente, porque não é todo dia que vemos uma película no qual uma mulher dopada e sequestrada e isso é vendido como romance.

Por outro lado, também não é surpresa que apele ao público, seguindo o grande sucesso de 50 Tons de Cinza. Como dito anteriormente, sexo vende. Mas também não é qualquer sexo, existe toda uma fantasia embutida na história que é bastante latente. Veja bem, o público que fez 50 Tons o hit que foi é composto por mulheres casadas com uma conta pendurada na geladeira, se arrumando para o trabalho enquanto limpam a sujeira deixada pelo filho mais novo no banheiro e percebem que o marido nem mesmo consegue mijar sem sujar toda a tampa do vaso sanitário. O verdadeiro fetiche de 50 Tons e a versão fanfiqueira de 365 Dias não é só que tem cena de sexo, a verdadeira fantasia é de sair dessa vida monótona, não ter mais preocupações financeiras e ainda por cima ter um homem gato que realmente te coma bem. E tá errado?

O problema não é exatamente o fetiche, nem o cara gostoso, nem mesmo ele ser dominador. O problema é que esses filmes apresentam esse fetiche em um contexto grosseiro de abuso. Tudo bem, vamos fazer um filme soft porn com um cara gostoso, rico e cenas de sexo calientes. Mas precisa construir isso em cima de uma história onde a mulher é dopada e raptada? Amarrada em uma poltrona de avião? Empurrada e levada a todo canto contra sua vontade?

Essas histórias vão na contramão da tentativa incessante que nós, feministas, temos de falar sobre relacionamento abusivos e tratá-los como tal. Existem comportamentos que são inaceitáveis, ainda que se confundam – e que o abusador o justifique – como carinho e cuidado. Essa linha de separação do que é “cuidado” e o que é abuso é muitas vezes invisível para mulheres que estão em relacionamentos abusivos. E muito disso se dá pelo fato de que comportamentos abusivos são normalizados, como, por exemplo, o ciúme excessivo que é visto como “amar demais”, ser violento é visto como “se importar demais”. Toda a construção social do que é normal em um relacionamento perpassa diversos âmbitos da cultura, inclusive a produção de filmes. E se vemos que aquilo é normal, que aquilo é amor, quando acontece com a gente nós pensamos exatamente isso, não que é uma situação abusiva.

E é essa separação, do que é abuso e o que não é, importa porque é a partir daí que mulheres são conscientizadas a identificarem as situações abusivas que as permeia. Então, fica aí o aviso para que esses filmes sejam vistos a partir de uma perspectiva crítica.

E Netflix, na próxima dá só para fazer um filme para mulherada dar uma siriricada sem culpa?

 

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