Bastou uma única folha reciclada de ofício e um lápis grafite para (re)escrever em versos as memórias que me chegam. Poderia circunscrever os traços perfeitos do teu rosto. Realçar seu nariz largo. Contornar sua boca e seu sorriso feito “gato de Alice”. Desenhar os mistérios que há em seus olhos negros. Traduzir em palavras o cheiro verde que expele de ti.
Mas a métrica não está para o amor e, muito menos, para esta carta. O ritmo e a organização das sensações de um amor entre duas mulheres negras represa, no agora, um tempo-espaço não fértil para o grão amor.
A epistemologia que explica isso baseia-se na consubstancial interseccionalidade do que é ser uma mulher negra. As nossas embarcações trazem marcas de vivências e experiências que mutilaram, em nós, muitas possibilidades de acreditar e desejar o amor.
Essas cicatrizes são sentidas nos primeiros diálogos e flertes da paquera. Na medida em que uma vai identificando a dor da outra; a solidariedade mútua tem nome de dororidade. E o amor se transforma em irmandade. A intimidade não está necessariamente para os toques sensoriais de seus corpos negros. Mas sim, pelo gesto mais íntimo do revelar de suas queloides.
O peso do desamor de uma sociedade machista, racista e lesbofóbica esteriliza os primeiros sinais que o amor preto possa dar. Ergue-se uma cerca de arame farpado para impedir a transgressão dos afetos. A autosabotagem – cria da colonização – reina nesse território chamado coração. Então, eu me nego a sentir o que sinto por ti. Eu só escuto as vozes dos meus silenciamentos.
Identificar essas raízes é tão libertadora quanto o verso “ame-o e deixe-o livre para amar”, da canção do Gilberto Gil. Livre para escolher as suas lutas, as suas guerras e seus riscos.
O amor é manifesto. E continua um privilégio.