As transformações nas comunidades sempre ocorreram. Percebe-se, por exemplo, a construção da família, de acordo com Engels em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que em um primeiro momento estava centrada na mulher e no direito materno transformou-se em uma sociedade patriarcal centrada no homem.

Seguindo este exemplo, podemos perceber que a mudança de foco trouxe também outras transformações, como a construção do conceito de propriedade privada – com o direito de herança e a monogamia – e por fim a concepção de Estado. E com tais transformações as características da sociedade também se modificaram, uma vez que passaram de nômades para sedentários e focaram em agricultura e eventualmente em produção de seus próprios artefatos.

Heráclito de Éfeso, filosofo da antiguidade, observa a movimentação das coisas ao seu redor e, assim, acreditava que as coisas estavam em constante mudança e nada tem um maior poder de se transformar do que as pessoas e a comunidade em que vivem.

Caminhando vários anos e chegando à Revolução Francesa, percebe-se que existe outra mudança do status quo que a precedeu, isto é, há a transformação da racionalidade junto com a construção de um Estado moderno baseado em códigos positivados e questões econômicas, as quais diferenciavam da Idade Média.

Para chegar neste ponto, porém, foi necessário que uma grande movimentação da classe baixa e da classe burguesa, que estava em ascensão, as quais se juntaram contra o inimigo comum que eram as classes economicamente mais altas: nobreza e igreja. Essas, tinham domínio econômico, político e de direito, desamparando aqueles que estavam na miséria.

Dentro da Revolução Francesa houve a participação da mulher, um marco do movimento feminista, sendo, desse modo, de extrema importância na luta contra os nobres absolutista e participando ativamente da tomada da Bastilha em 1789. Assim, o movimento feminino se juntou aos homens para conquistar um objetivo comum, o fim do reinado absolutista, com o intuito de assegurar o espaço público e a igualdade entre os gêneros após a retirada do governo monárquico. Entretanto, a legislação criada nessa época não despunha de igualdade pela entre os gêneros.

Assim, a questão de direitos das mulheres não apresentou uma mudança efetiva, e sua participação na Revolução Francesa auxiliou os burgueses e os homens, mas não concretizou suas demandas legislativas. Por esse motivo, não eram vistas legalmente como iguais dentro da nova sociedade racional e moderna que estava se formando.

Em 1804, tem-se a constituição de um outro conjunto de regras, o Código Civil de Napoleão, o qual tinha o objetivo de estabelecer uma coleção de normas positivadas para todas as questões afim de solucionar os problemas da sociedade sem a necessidade de ser modificado. Antes da Revolução Francesa, os monarcas utilizavam da falta de leis positivadas para exercerem seus poderes sem limites. Portanto, com o intuito de limitar o governo absolutista, concebeu-se uma legislação escrita.

Quando Napoleão concebeu um Código Civil escrito, o primeiro do tipo na França e influência para todos os outros, este estava acessível a população francesa, fazendo com que as leis vigorassem mais facilmente. Era uma mistura de ideias liberais e tradicionais. Investigando a configuração do Código Civil percebe-se que o homem está um patamar acima das mulheres, demonstrando o caráter patriarcal de uma legislação que nasceu em um período de mudança de racionalidade. Entretanto, não trouxe modificações necessárias para incluir a mulher no lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Passando a análise para o âmbito nacional, especificamente centrando-se no contexto do Código Civil de 1916, que se passa no governo de Venceslau Brás, o qual teve inúmeros problemas econômicos por causa da Primeira Guerra Mundial, com a grande dívida dos bancos estrangeiros e as importações caíram drasticamente. Entretanto, com a diminuição da importação, houve um surto industrial, gerado pela necessidade dos brasileiros de produzir o que necessitavam, auxiliando a economia. Quando a Europa voltou a se estabelecer no mercado no final da guerra, em 1920, a indústria brasileira se restringiu ao mercado interno.

A elaboração de um Código Civil brasileiro era o ideal a ser alcançado desde o Império. Até a criação do Código Civil de 1916, o Brasil tinha em vigor as leis de Portugal, restringindo o sistema das Ordenações Filipinas. E mesmo após a independência do país, em 1822, tais normas continuaram vigorando. A mudança da construção da sociedade deixou várias normas ineficazes e, com isso, foi necessário que se concebesse outra norma infraconstitucional para regular a sociedade.

Analisando, assim, o Código Civil de 1916, percebe-se que este apresenta uma mulher dependente do homem para que seus atos fossem concretizados. Existia uma necessidade da aprovação do homem da casa para todos os atos de caráter econômicos que a mulher tomasse, ficando submetida as decisões do homem da família por ser considerada incapaz pelo Código Civil de 1916.

Observando o papel da mulher na sociedade de 1916, esta é vista como legalmente incapaz, moralmente fraca e inocente, facilmente equivocada, e por esses motivos deve ser cuidada de todas as formas possíveis. Ela não tem capacidade para construir sua vida econômica sem a presença do marido, sendo assim necessário que o casamento ocorra ou que esteja sempre sob a tutela masculina.

Em meio a ditadura militar de 1964, a qual torturou, sumiu e matou varias pessoas que questionavam e se opunham aos atos de violência, repressão e tortura; o movimento feminista se fortaleceu com movimentos de massa, os quais reivindicavam questões de sexualidade, democracia, paz, formação profissional e mercado de trabalho.

Alguns movimentos essenciais ocorreram a partir da ditadura militar, como em 1972, quando realizou-se o primeiro Conselho Nacional da Mulher liderado pela Advogada Romy Medeiros, um espaço privado que abordava questões muitas vezes vistas como tabus. O Ano Internacional da Mulher – em 1975 – decretado pela Organização das Nações Unidas posicionou a mulher na esfera pública; tem-se no mesmo ano a organização do Movimento Feminino pela Anistia – instituído por Terezinha Zerbini – com o objetivo de oferecer anistia as mulheres exiladas. Um ano depois, criou-se o ‘SOS mulher’. E em 1977 a CPI investigou a situação da mulher dentro mercado de trabalho, mostrando sua situação de inferioridade.

No início da redemocratização do país, na década de 80, o feminismo focou-se em duas questões: unidade do movimento e relação do movimento com governos democráticos. Criou-se a ‘Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher’, com a missão de retirar todas as limitações dadas as mulheres. Assim, tiraram-se do Código Penal a expressão mulher honesta, por exemplo. A partir de 1985 tem-se delegacias especializadas e, em 1990, a implantação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher – que discutia sobre planejamento familiar, sexualidade e aborto.

Assim sendo, as lutas feministas cresceram muito e conquistaram direitos durante os anos e na Constituição de 1988 a igualdade de gênero virou norma. A mulher agora não é mãe da família e dona de casa, ela passa a ter o direito de trabalhar, de ganhar salário, de escolher o parceiro, de ter a casa própria, de pertencer a vida pública, enfim, passou a ter os mesmo direitos que os homens.

A Constituição de 1988 demonstra que não deve haver nenhuma desigualdade entre homens e mulheres, e assim sendo o Código Civil de 1916, sendo norma infraconstitucional, deve ser interpretado à luz da Constituição e para isso inúmeras regras caíram em desuso e outras tiveram que ser transformadas.

Com a promulgação do Código Civil de 2002, a autonomia e independência dessas personagens fo,ram conquistadas após varias transformações da sociedade e, com o auxílio da Constituição de 1988 o país teve, ao menos no âmbito teórico, a igualdade entre homens e mulheres para todos os atos da vida civil.

Algumas mudanças apreciadas no Código Civil seriam: mulher não é mais elencada como incapaz, só por razão do gênero; a expressão “poder paterno” foi excluída e inserindo o poder familiar; homem e mulher tem, agora, os mesmos direitos e deveres dentro da família, e também da sociedade; questão da virgindade da mulher não sendo mais discutida. Conclui-se que o novo Código extingue a submissão da mulher, sendo, então, um Código mais justo e igualitário.

Contempla-se que a mulher passou por várias lutas para conquistar uma legislação que fizesse dela uma pessoa completa, e não mais dependente do homem. Legislativamente, as mulheres estão em pé de igualdade com os homens, tendo direitos trabalhistas, sociais, econômicos e políticos, entretanto, nem todas as leis têm eficácia dentro de uma sociedade patriarcal.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de mulheres no mercado de trabalho continua menor em todos os grupamentos de atividade econômica, salvo empregadas domesticas – o que visa entender que a sociedade ainda vê a mulher como dona de casa. Outros estudos mostram que as mulheres continuam ganhando menos do que os homens para praticar os mesmos serviços. E, há ainda os casos de discriminação no trabalho e violência doméstica, fatos que deveriam estar extintos desde a Constituição de 1988, pelo menos.

A construção do papel da mulher na esfera pública se modificou de forma extensa desde as analises de Engels, entretanto, ainda tem-se muito a lutar para que haja verdadeira igualdade entre os gêneros, uma vez que o patriarcado continua sendo a norma e as mulheres permanecem em espaços diferentes dos homens.

Simone de Beauvoir percebe “(…) que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilantes durante toda a sua vida”, e assim, uma vez que tais direitos não são permanentes não se pode falar de igualdade e há a necessidade de prosseguir as reivindicações feministas.

 

Débora Costa Mestre em Constitucionalismo e Democracia na Faculdade de Direito do Sul de Minas, membro do Grupo de Pesquisa Razão Critica e Justiça Penal e graduada na Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduanda em Letras português/inglês pelo Centro Universitário do Sul de Minas

 

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