Os frequentes ataques aos direitos das mulheres evidenciam um estado de constante contestação, sobretudo por parte de segmentos mais conservadores, acerca da função que elas desempenham na sociedade. No mundo do trabalho o cenário não é diferente. A divisão sexual do trabalho é concebida como uma das principais desigualdades de gênero relacionadas com políticas e instituições estatais (PARADIS, 2019). Compreendida como a “divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599), a divisão sexual do trabalho tem como principal característica a atribuição dos homens à esfera produtiva; enquanto as mulheres são designadas à esfera reprodutiva. Esta divisão também estipula que os homens desempenhem atividades que recebem maior valoração social (HIRATA; KERGOAT, 2007). Assim, em uma sociedade organizada pela divisão sexual do trabalho, os homens são mais valorizados, compreendendo-se que a sua atuação é mais importante para o desenvolvimento socioeconômico de todos(as). Para as mulheres, por sua vez, a divisão sexual do trabalho foi responsável por naturalizar como sendo de responsabilidade delas o trabalho doméstico e as atividades de cuidado, quais, em uma relação de oposição, são compreendidas como de menor valor social. Isso, segundo Clarisse Paradis (2019), as tornou invisíveis e desvalorizadas perante alguns setores da sociedade.

Dados recentes evidenciam as desigualdades no mundo do trabalho no Brasil. Segundo os dados do módulo Rendimentos de Todas as Fontes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os homens tiveram rendimento médio mensal 28,7% maior do que as mulheres em 2019 (IBGE, 2020a). Eles receberam R$2.555, enquanto elas ganharam, em média e contanto todos os rendimentos de seus trabalhos, R$1.985 (IBGE, 2020a). Os rendimentos dos homens em 2019 foram, inclusive, superiores à média nacional, qual ficou em R$2.308 (IBGE, 2020a).

Compreendendo que as desigualdades convergem com os diferentes eixos de opressão, analisando os dados da PNAD 2020 segundo cor/raça, observamos que as desigualdades se agravam. Pessoas brancas tiveram rendimentos superiores (R$2.999,00) em relação as pessoas que se declaravam pardas (R$1.719) ou pretas (R$1.673) no ano de 2019 (IBGE, 2020a). Correlacionando os eixos citados, mulheres pretas ou pardas foram as mais afetadas pelas desigualdades de sexo e/ou gênero e raça/etnia quanto à formação de seus rendimentos.

O trabalho doméstico e de cuidado são avaliados pelo IBGE na categoria de Outras Formas de Trabalho. Os dados referentes ao ano de 2019 mostram que 146,7 milhões de pessoas, correspondente a 85,7% da população brasileira, realizaram atividades domésticas, sendo maior a participação das mulheres (92,1%) em comparação a dos homens (78,6%) (IBGE, 2020b). A maior diferença entre as taxas foi verificada na região Nordeste, sendo 90,2% de participação delas no trabalho doméstico contra 69,2% deles (IBGE, 2020b). Já a região Sul apresentou a maior taxa de participação dos homens dos afazeres domésticos (84%); contudo, mesmo assim, o percentual de mulheres que realizaram esse tipo de trabalho foi superior (93,6%) (IBGE, 2020b).

A mesma pesquisa mostra que 54,1 milhões de pessoas (31,6% da população) realizaram trabalhos de cuidado em 2019, os quais envolvem o cuidado de crianças, idosos, pessoas enfermas e/ou com deficiência. O percentual de mulheres foi de 36,8% contra 25%9 de homens (IBGE, 2020b). Analisando pela idade, a realização do trabalho de cuidado é maior entre 25 e 49 anos (43,4%), pois está relacionada com a presença de filhos(as) (IBGE, 2020b). Os dados mostram que as mulheres ainda são as principais responsáveis por essa atividade (49,3%), comparadas aos homens (36,9%) (IBGE, 2020b). Em relação a raça/etnia, a pesquisa informa que o trabalho de cuidado foi realizado por 39,6% das mulheres negras no Brasil em 2019, 39,3% de mulheres pardas e por 33,5% de mulheres brancas (IBGE, 2020b). Essas informações evidenciam as desigualdades de sexo, geração e raça/etnia no Brasil relacionadas à divisão sexual do trabalho.

Se o cenário já se mostrava problemático, a pandemia da Covid-19 promoveu mudanças que agravaram as desigualdades provocadas pela divisão sexual do trabalho no Brasil.

A divisão sexual do trabalho: conceitos e problematizações

 

A divisão sexual do trabalho não é um tema recente dentre os interesses de pesquisadores(as). Segundo Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007), muitos trabalhos trataram do assunto em diversos países. Contudo, por meio do impulso do movimento feminista francês, no início dos anos de 1970, estudos determinaram as bases teóricas do conceito da divisão sexual do trabalho, abordado primeiramente por estudiosos(as) da Etnologia e, posteriormente, da Sociologia e da História (HIRATA; KERGOAT, 2007).

Abordando o trabalho desempenhado gratuitamente pelas mulheres e realizado não para elas, mas para outros, o movimento das mulheres apontou a qualidade opressora dessa ação, qual era justificada pela “[…] natureza, do amor e do dever materno” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 597). O trabalho doméstico não remunerado é entendido como “[…] aquele trabalho feito gratuitamente e considerado por muitos uma forma das mulheres expressarem amor aos filhos e aos companheiros, uma maneira de exprimir o amor que elas sentem por seus familiares” (HIRATA, 2010, p. 47). Flávia Biroli (2016) explica que o trabalho que as mulheres executam gratuitamente, como a criação dos(as) filhos(as), as tarefas domésticas e o cuidado de parentes, libera os homens para que possam exercer o trabalho remunerado. Assim, “são elas apenas que fornecem esse tipo de trabalho gratuitamente, e sua gratuidade se define numa relação, o casamento” (BIROLI, 2016, p. 726, grifos da autora). Nota-se que são evocadas justificativas centradas em sentimentalismo e no que as mulheres devem fazer em prol da instituição do casamento. Destaca-se que tamanha dedicação não é cobrada do homem, sujeito também envolvido nessa relação.

Ilustração de uma mulher lavando roupa. Escrito amor é trabalho não remunerado.

Crédito: Mariana Leal

 

O trabalho doméstico e de cuidado envolve atividades repetitivas, como lavar, passar, cozinhar, limpar etc., as quais não possuem relação direta com um ser humano; e tarefas que estão diretamente relacionadas a pessoas, como crianças, idosos e o marido (HIRATA, 2010). As feministas apontavam a invisibilidade dessas atividades, indicando a necessidade de reconhecer as atribuições domésticas e de cuidado como um trabalho e rever a responsabilização dada às mulheres. Nessa chave de pensamento, surgiram análises centradas na abordagem do trabalho doméstico como uma atividade de trabalho, tal qual o trabalho profissional, considerando, assim, a esfera doméstica e a esfera profissional e delimitando o pensamento acerca de uma divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007).

Considerando a esfera doméstica e a esfera profissional, a divisão sexual do trabalho foi tratada inicialmente como a articulação das duas esferas; o que, todavia, se mostrou insuficiente, sendo necessário conceituar a relação social entre homens e mulheres (HIRATA; KERGOAT, 2007). Entende-se que as condições de vida de homens e mulheres não são determinadas pela biologia, mas são construídas socialmente. Dessa forma, são compreendidos como “[…] dois grupos sociais envolvidos numa relação social específica: as relações sociais de sexo” (KERGOAT, 2009, p. 67). Com base nesse entendimento, mudanças foram provocadas, como a contestação da noção de família, passando a ser considerada também como o local de exercício de um trabalho; e a esfera do trabalho assalariado, qual era pensado somente em termos do trabalho produtivo e centrado no homem branco e qualificado (HIRATA; KERGOAT, 2007).

Pensando na definição do conceito, uma concordância comum é a de que a divisão sexual do trabalho se refere a distinção de atividades e um fator prioritário para as relações sociais entre os sexos e caracterizada pela denominação dos homens na esfera produtiva e das mulheres na esfera reprodutiva (HIRATA; KERGOAT, 2007). Contudo, Hirata e Kergoat (2007) vão além do plano conceitual e distinguem os princípios da divisão sexual do trabalho e suas modalidades:

Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599).

 Assim, é realizada uma diferenciação entre os trabalhos realizados por homens e por mulheres, concebendo, com base em argumentos naturalistas, que certo sexo seria mais apto para determinada atividade. Além disso, estipula-se valorações sociais distintas, sendo, nesse pensamento, o trabalho executado pelo homem o de maior valor social. Observa-se que a divisão sexual do trabalho promove dois resultados: o reforço da concepção da mulher como principal responsável pelo trabalho doméstico e de cuidado e a desvalorização dessa atividade em uma escala de oposição ao trabalho atribuído aos homens.

É importante salientar também que a naturalização da responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico e de cuidado afeta a vida delas, pois, como afirma Paradis (2019), promove a inserção precarizada das mulheres no mercado de trabalho, o que, consequentemente, compromete a renda delas; gera e/ou agrava problemas de saúde pelos esforços físicos e mentais despendidos e reduz o tempo livre; dificulta o acesso a uma educação continuada etc. Como se nota, afeta a vida das mulheres como um todo, pois elas dedicam muito mais tempo às atividades domésticas e de cuidado e ainda acumulam consequências dessa divisão sexual do trabalho, dentre essas, além de não ter o trabalho dentro de casa valorizado, recebem rendimentos médios menores do que os homens pelo trabalho que desempenham fora de casa  (BIROLI, 2016).

 

 

Segundo Hirata e Kergoat (2007), apesar dos princípios de separação e hierarquia serem legitimados pela ideologia naturalista e estarem presentes em todas as sociedades, isso não significa que a divisão sexual do trabalho é imutável. As autoras explicam que a divisão sexual do trabalho possui grande plasticidade, o que modifica as suas modalidades concretas no tempo e no espaço (HIRATA; KERGOAT, 2007). Entende-se que as situações ocorridas pela divisão sexual do trabalho não são estáveis, mas o que possui solidez é a distância entre os sexos. Assim, a análise do assunto deve considerar essa distância e as condições, pois não se nega que a condição das mulheres na sociedade melhorou, inclusive no caso brasileiro, mas a distância entre os sexos continua sendo grande (HIRATA; KERGOAT, 2007). Para Ana Elizabeth Santos Alves (2013), a ampliação feita por Hirata e Kergoat evidencia a distinção das atividades e aquelas que executam atividades que eram consideradas invisíveis em termos de trabalho, ressaltando, portanto, a dimensão sexuada da prática.

Segundo Alves (2013), a definição do espaço de atuação atribuídos para os sexos está relacionada às diferentes formações sociais. No capitalismo, concebido como um sistema patriarcal de exploração do trabalho das mulheres pelos homens, atribui-se uma responsabilização desigual entre os sexos com base nos termos de produtivo e não remunerado (BIROLI, 2016). As atividades desempenhadas pelos homens são classificadas como produtivas, por considerar que possuem certo valor social e, por causa disso, devem ser remuneradas; por outro lado, as atividades atribuídas às mulheres no ambiente doméstico são concebidas como de reprodução e não são remuneradas (ALVES, 2013). Para Biroli (2016), a distinção entre o trabalho remunerado e não remunerado é uma das formas de exploração praticadas pelo patriarcalismo no sistema capitalista.

 

ao fundo uma frábrica no qual sai uma fila com diversos trabalhadores que deitam em uma esteira e são cuidados por mulheres que os ajudam a deitar, passam sua roupa, os alimenta e depois os homens saem da esteira e voltam para a fábrica

Escrito: o capitalismo também depende do trabalho doméstico

 

Assim, se mostra necessária a proposta de uma análise da divisão sexual do trabalho em termos das relações sociais de sexo (HIRATA; KERGOAT, 2007; KERGOAT, 2009). Compreende-se, portanto, como ressalta Kergoat (2009), que problematizar questões pela noção da divisão sexual do trabalho não significa a adoção de uma noção determinista; mas retoma os fenômenos da reprodução social, implicando o estudo de mudanças, rupturas e do surgimento de novas configurações dessa divisão.

Como discutido, a abordagem da divisão sexual do trabalho se faz necessária em toda sociedade. Em contextos de crise, as organizações sociais são abaladas, evidenciando discussões que precisam ser retomadas. Esse é o caso do trabalho desempenhado pelas mulheres no Brasil no contexto da Covid-19.

 

O trabalho desempenhado pelas mulheres no Brasil e o contexto da Covid-19

 

O ano de 2020 será marcado por uma grave crise sanitária e humanitária global provocada pela Covid-19, a doença causada pelo coronavírus (SARS-COV-2) que provoca infecções respiratórias. O primeiro caso foi registrado em dezembro de 2019 em Wuhan, na China. No Brasil, o registro do primeiro caso ocorreu em 26 de fevereiro de 2020, em São Paulo (BRASIL, 2020). Até a data de escrita desse trabalho, segundo dados colhidos pelo consórcio de veículos de imprensa a partir de informações das secretarias estaduais de saúde, foram registrados no Brasil 9.060.786 casos confirmados e o total de 221.676 óbitos desde o começo da pandemia (MORTES…, 2020). Esses números aumentam a cada dia, demonstrando o grave cenário provocado pela doença no país.

Desde o começo da pandemia, foram adotadas medidas visando a contenção da propagação do vírus. Dentre essas, o isolamento domiciliar de casos; incentivo à higienização das mãos; e uso de máscaras faciais. Além disso, foram adotadas medidas de distanciamento social, tais como fechamento de escolas e universidades; proibição de eventos que possam causar aglomerações; restrição no horário de funcionamento de comércios e serviços, quais foram proibidos de funcionar em determinados períodos da pandemia; e o estímulo da conscientização da população para que permaneça em casa, saindo apenas para o necessário. Nem todas as medidas foram adotadas igualmente por toda a população, inclusive nem mesmo por membros do governo brasileiro, que expressaram posicionamentos contrários aos defendidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por especialistas.

Como se nota, a pandemia do coronavírus provocou mudanças significativas nas vidas das pessoas, não sendo diferente no mundo do trabalho. Em setembro, a taxa de desemprego foi recorde, encerrando o mês com um contingente de 13,5 milhões de desempregados(as), aproximadamente 3,4 milhões a mais que o registrado em maio, representando uma alta de 33,1% no período (SILVEIRA, 2020). Estima-se que as mulheres sejam as mais afetadas pelo desemprego e o acúmulo de tarefas, isto pois, segundo a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), elas estão principalmente inseridas nos setores mais afetados pela pandemia, o de comércio, serviço e turismo (CEPAL, 2020). É o caso da entrevistada pelo portal de notícias R7, uma mulher cozinheira e estudante de gastronomia que estava prestes a ser efetivada no estágio que realizava em um supermercado; contudo, por causa da pandemia do coronavírus, as negociações foram suspensas (PEREZ, 2020).

A conciliação do trabalho remunerado com o trabalho doméstico e de cuidado é outra das dificuldades enfrentadas pelas mulheres brasileiras e afetadas pela pandemia. Exemplo disso é o caso da mulher entrevistada pela BBC News Brasil que alega ter tentado equilibrar os cuidados com o seu bebê, com a casa e o trabalho em tempo integral em home office, mas que, quando solicitou à empresa um novo arranjo e um aumento de salário para poder contratar uma pessoa para cuidar da criança, foi demitida (IDOETA, 2020). Além desse exemplo, podemos citar o caso de mulheres que conseguiram emprego na modalidade remota durante a pandemia, o que as possibilitava cuidar dos(as) filhos(as) e trabalhar, mas que se encontraram em situações difíceis devida a retomada do trabalho presencial e por não disporem de um local que acolha as crianças durante a jornada de trabalho, já que a maioria das escolas e creches ainda estão fechadas.

 

charge de uma mulher de cabelos descabelados presos, roupa sendo puxada por um filho enquanto segura o outro no colo. Ela está na frente de um computador e atrás uma mesa com mamadeiras.

– Posso te ligar de volta em cinco anos?

 

Segundo dados da PNAD do primeiro trimestre de 2020 (referente aos meses de janeiro a março), as mulheres eram a maioria entre as pessoas em idade de trabalhar em todas as regiões do Brasil (IBGE, 2020c). Comparando com as informações mais recentes, da PNAD do terceiro trimestre do mesmo ano (meses de julho a setembro de 2020), nota-se que o cenário é o mesmo, com um aumento na taxa de mulheres, de 52,6% no primeiro trimestre para 53,2% no terceiro (IBGE, 2020c, 2020d). Entretanto, verificou-se maiores percentuais de homens dentre as pessoas ocupadas (56,2% no primeiro trimestre e 57% no terceiro) em comparação com as mulheres (43,8% primeiro e 43,0% terceiro trimestres) (IBGE, 2020c, 2020d). Sobre as taxas da população desocupada, as mulheres possuíam índices superiores (53,4%) aos dos homens (46,6%) no primeiro trimestre de 2020 (IBGE, 2020c). Houve uma queda no percentual de mulheres desocupadas no terceiro trimestre (50,9%) e um aumento na taxa de homens desocupados (49,1%) (IBGE, 2020d). A incoerência entre os dados indica um cenário diferente para homens e mulheres no mundo do trabalho.

Além do desemprego, as mulheres precisaram lidar com outras consequências provocadas pela pandemia, tais como a sobrecarga do trabalho doméstico, o aumento da pobreza e precariedade laboral, a dificuldade de acesso a serviços públicos e o financiamento insuficiente de recursos para políticas de igualdade de gênero (CEPAL, 2020). Outro ponto abordado pela CEPAL é a grande presença de mulheres em trabalhos na área de saúde (72,6%), o que as expõem mais aos riscos de infecção (CEPAL, 2020).

Nesse cenário, as mulheres negras são as mais afetadas pela pandemia, pois precisam lidar com o entrecruzamento dos eixos de sexo e raça/etnia. Segundo dados da PNAD Covid-19, em maio de 2020 a taxa de desocupação de mulheres negras era de 13,8%, passando para 17,6% em julho do mesmo ano (SILVA; SILVA, 2020). As medidas sanitárias aplicadas provocaram a redução ou mesmo o encerramento de atividades produtivas por várias empresas. Muitas empresas ainda se valeram de iniciativas governamentais que possibilitavam a suspensão temporária dos contratos de trabalho, o que foi mais frequente no caso das mulheres negras (SILVA; SILVA, 2020). Segundo Tatiana Dias Silva e Sandro Pereira Silva (2020), a diferença pode ser explicada parcialmente pela posição da ocupação dessas mulheres, pois a categoria mais afetada pela pandemia foi a do trabalho doméstico informal, qual é executada majoritariamente por mulheres (92,3%), sendo que 67,7% destas trabalhadoras são negras. Nota-se como a divisão sexual do trabalho interseccionalizada com a condição da raça/etnia no Brasil afeta as mulheres negras. Esse tipo de trabalho é atribuído às mulheres negras por homens em razão do sexo e por mulheres devida a raça/etnia, o que evidencia a existência de hierarquias não somente nas relações entre os sexos, mas também entre as mulheres, quais são organizadas por variáveis como classe e raça/etnia (BIROLI, 2016).

Como se nota, o coronavírus afetou drasticamente as vidas das mulheres brasileiras. No mundo do trabalho, a pandemia evidenciou a existência de uma divisão sexual do trabalho e, consequentemente, agravou as desigualdades sociais. Diante deste cenário, questiona-se quais são as medidas necessárias para a reorganização de uma sociedade visando, dentre outros objetivos, a igualdade de sexo, raça/etnia e classe. Pensando na reconstrução de uma realidade melhor com foco na inclusão, igualdade e resiliência para a América Latina e o Caribe, a CEPAL recomenda que as políticas fiscais de resposta à pandemia incorporem uma perspectiva de gênero a fim de abordar a discriminação que as mulheres vivenciam e evitar o aumento de desigualdades (CEPAL, 2020). Indo mais além, nota-se que será necessária a adoção de medidas com perspectivas não somente de gênero, mas que abordem a raça/etnia e a classe, especialmente no Brasil, país que possui desigualdades sociais históricas.

 

Considerações finais

 

Amplamente debatida, principalmente pelas teóricas feministas, a divisão sexual do trabalho expõe uma distinção entre o trabalho produtivo, designado aos homens, e o trabalho reprodutivo, concebido como responsabilidade das mulheres. Esta distinção se sustenta em argumentos naturalistas, concebendo o trabalho doméstico e de cuidado executado pelas mulheres como uma expressão dos sentimentos da mesma para com seus familiares e em prol da instituição do casamento. Esta base evidencia que a gênese da divisão sexual do trabalho está na relação entre os sexos e nas hierarquias formadas pelos eixos de sexo, raça/etnia e classe.

O cenário de desigualdades sociais promovido pela divisão sexual do trabalho se mostra claro no Brasil. Dentre os(as) afetados(as), as mulheres negras compõem o grupo mais prejudicado na formação de seus rendimentos e, não por coincidência, são as que mais realizam atividades de trabalho doméstico e de cuidado, seja para suas famílias ou como trabalho remunerado informal.

A pandemia da Covid-19 realçou as desigualdades sociais existentes no contexto da divisão sexual do trabalho no Brasil. O desemprego bateu recorde em setembro de 2020, afetando principalmente as mulheres. Elas tiveram que lidar com a perda de seus empregos, tentativas de conciliação do trabalho remunerado com os cuidados com a casa e filhos(as), a sobrecarga do trabalho doméstico, entre outras consequências da pandemia. Mais uma vez as mulheres negras foram as mais impactadas, o que pode ser parcialmente explicado pela posição que ocupam na sociedade brasileira. Trabalhadoras dos setores mais afetados, dentre esses o trabalho doméstico informal, as mulheres negras foram as que mais tiveram seus contratos, quando era o caso, suspensos, o que provocou uma alta na taxa de desocupação desse grupo social.

A abordagem da divisão sexual do trabalho no contexto da Covid-19 no Brasil demonstra como as hierarquias de sexo, raça/etnia e classe se relacionam nas condições de vida de diferentes grupos sociais. Não tratar desses pontos equivale a desconsiderar as discriminações oriundas da divisão sexual do trabalho e não reconhecer a importância das mulheres no desenvolvimento socioeconômico de um país. Assim, se mostra necessária a adoção de políticas fiscais de resposta à pandemia que incorporem perspectivas de gênero, raça/etnia e classe a fim de tratar das discriminações de mulheres de uma maneira ampla e mais próxima da realidade, principalmente vivenciada no Brasil.

 

Beatriz Molari. Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora nas áreas de gênero, comunicação e estudos culturais.

 

 

Referências bibliográficas

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