Em uma palestra na Universidade Federal da Bahia no ano de 2017, a ativista de direitos humanos norte-americana Angela Davis declarou: quando uma mulher negra se move, toda a estrutura da sociedade se move com ela[1].

Por estrutura ela se refere à base da pirâmide social capitalista, lugar comumente ocupado por mulheres negras, pelo menos desde o início da colonização europeia e da escravização de povos africanos.

Nesse sentido, a luta contra o racismo não pode ser dissociada da revisão dessa estrutura piramidal como padrão do nosso sistema econômico-social. É difícil imaginar uma sociedade saudável enquanto houver a dominação de uma classe sobre outra, de uma raça sobre outra ou de um gênero sobre outro. Por esse motivo, os movimentos antirracista, feminista e de classe precisam apoiar-se. No fim, todos lutam conta um inimigo em comum: o patriarcado capitalista.

 

Mulheres Não São Todas Iguais

 

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”[2]. A célebre frase dita por Simone de Beauvoir se refere à relação entre o sexo designado ao ser humano ao nascer e o papel social que se espera que ele desempenhe. Esse papel não é, no entanto, igual para todas as mulheres. É possível subdividir o conceito. Que mulher pretende-se definir?

Conforme explica Djamila Ribeiro[3], enquanto mulheres brancas são vistas como frágeis, mulheres negras são tidas como detentoras de uma grande habilidade para suportar a dor física e emocional, motivo pelo qual não foram poupadas dos castigos cruéis e degradantes da escravidão. Quando mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto, ex-escravas negras reivindicavam ainda por condições básicas de dignidade. Muito antes de mulheres brancas conquistarem espaço para trabalhar, mulheres negras já tinham sua força de trabalho massivamente explorada.

No Brasil, onde nunca houve uma política oficial de segregação racial (na direção oposta ao que ocorreu nos EUA e na África do Sul, por exemplo), as camadas que formam a segregação racial são mais difíceis de identificar. A promoção da miscigenação e a ausência de leis determinando direitos diferentes para negros e brancos dá a falsa impressão de que no Brasil o racismo é mais brando ou até inexistente.

Alguns dados históricos, no entanto, desmistificam essa ideia. O Brasil é o país que mais recebeu escravos nas Américas[4] e foi o último a abolir a escravidão, em 1888. Logo, o racismo está nas bases da formação da sociedade brasileira. De acordo com dados de 2019, cerca de 56% da população do país é negra[5], ou seja, mais da metade. Por outro lado, pessoas negras estão muito longe de ser a maioria nas universidades e nos cargos de poder. Além disso, uma pessoa negra é assassinada a cada 23 minutos no Brasil[6]. Enquanto a Constituição[7] (art. 5ª) determina que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, a hierarquia piramidal da sociedade brasileira insiste em mostrar o contrário.

A desigualdade racial é ainda mais marcante quando analisada com o enfoque de gênero. O abismo vai além dos âmbitos educacionais e laborais, mas passa também pelas tarefas mais básicas do cotidiano, como lavar o próprio banheiro. Lógico seria se cada um fosse responsável por lavar o seu próprio banheiro. Na prática, porém, quase sempre há uma mulher negra encarregada desse serviço.

 

Não É Como Se Fosse da Família

 

Que todos limpem os próprios banheiros pode parecer uma ideia simples de pôr em prática. Contudo, ela implica uma mudança cultural radical. É muito comum que nas casas das famílias brasileiras de classe média e rica (em sua grande maioria formadas por pessoas brancas) haja uma empregada que trabalha diariamente encarregando-se dos serviços domésticos. Geralmente, a empregada faz todo o serviço de limpeza e cozinha, além de cuidar das crianças. Ela geralmente ganha um salário mínimo ou não muito mais do que isso. Ela geralmente é negra.

Muitas empregadas domésticas trabalham nos fins de semana e pernoitam nos locais de trabalho. Aliás, existe um tipo de cômodo muito peculiar na arquitetura das residências brasileiras: o quarto de empregada. Um quarto minúsculo, sem espaço ou conforto suficientes, muitas vezes sem janela, localizado nos fundos da cozinha.

Caso a empregada não durma na casa, ela provavelmente precisa utilizar diariamente dois meios de transporte público para chegar ao trabalho, tendo em vista que mora longe, em uma região desfavorecida da cidade. Sua jornada começa cedo, com a preparação do café da manhã dos donos da casa. Estes que, por sua vez, não podem chegar atrasados nos seus respectivos trabalhos.

O casal chega tarde em casa e, por isso, não é incomum encontrar filhos que passam mais tempo com a empregada do que com os próprios pais. A empregada acaba assumindo importante papel na criação das crianças e com elas cria laços afetivos.

Em razão de estar sempre tão presente em momentos de intimidade familiar, a empregada é tratada “como se fosse da família”. Às vezes trabalha na mesma casa por muitos anos, vê as crianças nascerem, formarem-se na faculdade e casarem-se. São convidadas para as festas e grandes eventos da família. Sem ela não há ordem na casa, o que torna sua presença absolutamente indispensável, até mesmo em viagens internacionais de férias.

Essa relação de proximidade e afeto poderia ser convincente, não fosse por um detalhe: ela não é da família. Ela ganha um salário, é detentora de direitos trabalhistas e tem sua própria casa e filhos para cuidar.

 

Tradição que Não Deve Ser Continuada

 

Não é preciso ir muito longe para entender de onde a tradição de “ter uma empregada” se origina. Mulheres negras foram forçadas a prestar serviços domésticos para famílias ricas durante os quase 400 anos de escravidão no Brasil. Talvez por esse motivo seja tão difícil para alguns empregadores compreender que essas mulheres possuem direitos. Em 2015, quando a legislação sobre o trabalho doméstico sofreu alterações no Brasil, entre elas a limitação das horas de trabalho e o controle do pernoite[8], muitos empregadores se mostraram desconfortáveis.

Tal desconforto precisa ser provocado mais vezes e com mais intensidade. Adequar a legislação trabalhista às especificidades do trabalho doméstico é fundamental, mas não basta. É preciso que sejam criadas oportunidades para que essas mulheres tenham a chance de sair do lugar. É imprescindível derrubar os resquícios da estrutura escravagista e racista sobre a qual a sociedade brasileira se formou.

Nesse processo, as mulheres brancas devem tomar consciência do seu papel na luta feminista e saber que os seus privilégios são o que faz necessária a existência de um feminismo negro. Afinal, mulheres negras lutam por duas causas em uma só: tanto por igualdade em relação aos homens quanto em relação às mulheres brancas.

Se os homens devem ser confrontados sobre sua dependência de mulheres para lavar seu banheiro, as mulheres brancas também devem ser confrontadas sobre sua dependência de outras mulheres para fazê-lo. Atingido esse ponto, o movimento das mulheres negras será nítido e irreversível, assim como a estrutura da sociedade, que se moverá junto com elas.

 

Andreia Robert. Advogada e Redatora, curiosa por questões sociais e comportamento humano.

 

REFERÊNCIAS

 

BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe II. Gallimard. Paris, 1949.

CONSTITUIÇÃO DA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Accessed at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

EL PAYS. Angela Davis: Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. Salvador, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html.

IBGE. Território Brasileiro e Povoamento. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros.

LEI COMPLEMENTAR 150. 2015. Accessed at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm.

PIAUÍ. Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antiracista. Companhia das Letras. São Paulo, 2019. 2º Edição.

RIBEIRO, Djamila. Quem Tem Medo do Feminismo Negro. Companhia das Letras. São Paulo, 2019. 10º Edição.

[1] EL PAYS. Angela Davis: Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. Salvador, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html. Acesso em 04/04/2020.

[2] BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe II. Gallimard. Paris, 1949. Página 13.

[3] RIBEIRO, Djamila. Quem Tem Medo do Feminismo Negro. Companhia das Letras. São Paulo, 2019. 10º Edição. Página 51-53.

[4] IBGE. Território Brasileiro e Povoamento. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros. Acesso em: 04/04/2020.

[5] PIAUÍ. Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/. Acesso em 04/04/2020.

[6] RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antiracista. Companhia das Letras. São Paulo, 2019. 2º Edição. Página 94.

[7] CONSTITUIÇÃO DA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 04/04/2020.

[8] LEI COMPLEMENTAR 150. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm. Acesso em 04/04/2020.

 

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