A notícia de que Janaína Aparecida Quirino, mulher negra, pobre, usuária de álcool e drogas, que foi submetida a um procedimento de esterilização forçada pedido pelo Ministério Público e determinado judicialmente, nos paralisou. O caso é escatológico, como pontua em seu brilhante e tocante voto o Desembargador Leonel Costa, do Tribunal de Justiça de São Paulo. De fato. É escatológico.

Beira o inacreditável, de diversas maneiras, em diversos momentos da linha de acontecimentos processuais, e sob diversos aspectos técnicos e não-técnicos.

O caso ganhou repercussão após a publicação do contundente artigo “Justiça, ainda que tardia”, de Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV de Direito SP, mestre em direito pela Universidade de Columbia e doutor em ciência política pela USP, publicado no sábado, 9 de junho, na Folha de S. Paulo.

No entanto, muitas das matérias veiculadas nos dias subsequentes não tratam do caminho processual que terminou em tamanha atrocidade, causando desinformação e compreensão inadequada dos acontecimentos.

Antes de tratar de aspectos que merecem mais profunda análise, em especial no que se refere à argumentação jurídica trazida nos votos unânimes dos três Desembargadores da  8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, que se manifestaram contrariamente à decisão tomada pelo juiz de direito, Djalma Moreira Gomes Júnior, diante do pedido postulado pelo membro do Ministério Público, o 2º Promotor de Justiça de Mococa, Frederico Liserre Barruffini, trazemos, primeiro, um resumo dos principais pontos necessários à melhor compreensão do caso.

 

O contexto do caso

 

Da leitura dos autos compreende-se que, pelo menos, desde 2016, as equipes das unidades de Estratégia Saúde Família, Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas e do Centro de Referência Especializada de Assistência Social do município de Mococa realizavam tentativas de convencer Janaína a se submeter ao procedimento de esterilização, isto é, a laqueadura tubária.

Janaína, filha de um pai dependente químico, que agredia, diariamente, a sua mãe, lembrança que guarda com muito sofrimento, havia iniciado o uso de bebida alcoólica e drogas aos onze anos de idade.

Aos dezenove anos teve a primeira filha e, no intervalo de cerca de cinco anos, mais dois filhos, frutos de um relacionamento que veio a acabar.

Apesar de ter mãe e outros cinco irmãos, mantinha um bom relacionamento apenas com uma irmã que também se encontrava em uma situação vulnerável. Sem qualquer rede de amparo afetivo, seja familiar ou de amizade.

Janaína também era vítima de inúmeras agressões domésticas cometidas por seu último companheiro, também dependente químico, com quem tinha quatro filhos. Moravam junto com o casal, além de seus quatro filhos, um dos filhos de Janaína, fruto do relacionamento anterior.

Em 2016, diante da suspeita de que não estariam conseguindo desempenhar suas funções parentais devidamente, colocando os filhos em situação de vulnerabilidade, a equipe do CAPS-AD realizou visita determinada judicialmente na casa onde residia Janaína, o companheiro e seus cinco filhos.

Janaína não trabalhava e o companheiro trabalhava sem vínculo empregatício, sendo os dois beneficiários do programa Bolsa Família devido à condição de pobreza, pressuposto do benefício social. Contou que passava por muitas dificuldades financeiras, que havia oportunidades em que faltava até alimentação bem como que, dias antes da visita da equipe, havia feito ingestão de medicamentos e álcool, levada ao pronto socorro para lavagem estomacal e recebido alta no dia seguinte. A frequência dos filhos na escola era irregular. Em determinado momento, Janaína menciona que o filho não foi à escola no dia da visita da assistente social porque havia perdido o único par de sapatos que tinha.

Janaína perdeu o poder familiar sobre os quatro filhos menores e foi submetida à internação compulsória por 45 dias em virtude da dependência química. Também deixou de receber o benefício social do Bolsa Família referentes aos seus quatro filhos, passando a perceber somente R$ 46,00 por mês.

Já em janeiro de 2017, a Coordenadora do CREAS relata que Janaína havia recebido orientação da equipe quanto a todo o procedimento da laqueadura, bem como que haviam sido agendados para ela exames médicos para que o procedimento pudesse ser realizado.

Janaína não compareceu para realizar os exames.

Dias depois, retirou todos os pedidos de exames agendados pelo CREAS.

Foi orientada a procurar a enfermeira responsável pelo programa “Rede Cegonha”.

Janaína não compareceu.

Diante disso, a coordenadora do CREAS manifesta, nessas palavras, que “todo o esforço feito para que Sra. Janaína fizesse a laqueadura foi em vão, pois a mesma não adere os serviços e não cumpre as mais simples orientações”.

Percebe-se que quando é necessário tanto “esforço”, não estamos no território da voluntariedade. Além disso, a linguagem empregada evidencia flagrante insensibilidade, eis que, diante de tamanha situação de vulnerabilidade social e de um quadro de acentuada dependência química, não é razoável que se faça um julgamento de valor em relação a quaisquer orientações dadas pela rede enquanto “simples”.

No dia 20 de abril de 2017, durante novo contato da equipe de assistência social com Janaína, a equipe relata que percebeu que Janaína possuía perdas de memória e que, apesar dos registros em sentido contrário, em seu entendimento, Janaína relatou que não sabia que havia dado início ao processo de laqueadura e nem que havia feito qualquer tipo de contato com os profissionais da área da saúde do município.

Neste exato estado em que se encontrava, com episódios de perda de memória, a equipe afirma que, ao término da conversa, Janaína teria manifestado interesse em realizar a cirurgia de esterilização.

Eis que no dia 29 de maio de 2017 o 2º Promotor de Justiça de Mococa, Frederico Liserre Barruffini, ingressa com uma ação civil pública.

 

A ação do Ministério Público

 

A ação civil pública foi ingressada, com um pedido de tutela de urgência para “compelir o MUNICÍPIO DE MOCOCA a realizar a laqueadura tubária em JANAÍNA, bem como para submetê-la a tal procedimento mesmo contra a sua vontade” (grifos nos originais). Nestas exatas palavras, repetidas ao longo dos autos.

A nossa legislação proíbe a esterilização de pessoas contra suas vontades.

Neste momento, o pedido inicial já deveria ter sido indeferido, de imediato.

Na peça, o membro do Ministério Público afirma que Janaína “já” é mãe de cinco filhos.

Esse “já” chama, de cara, à atenção.

A quem cabe o juízo de valor de quantos filhos são suficientes a uma mulher? Definitivamente, não cabe ao Estado qualquer ingerência nesta esfera íntima de uma mulher.

Prossigamos.

O Promotor de Justiça menciona que “considerando que a mãe não teria condições de prover as necessidades básicas de seus rebentos, além de colocá-los, frequentemente, em potencial risco em razão do uso de álcool e outras drogas (…)  foi  recomendada  pelos equipamentos de saúde e de assistência social deste Município a realização de laqueadura tubária (…) como método contraceptivo”.

Menciona ainda que “a requerida constantemente é encontrada perambulando pelas ruas da cidade com claros sinais de uso abusivo de álcool e drogas”.

A palavra “perambulando” também salta aos olhos.

Adiante.

O membro do MP reconhece que Janaína “em determinados momentos, manifesta vontade em realizar o procedimento de esterilização; noutros, demonstra desinteresse”.

Continua para registrar que, em seu entendimento, “ao fazer uso contumaz de tais substâncias, levar uma vida desregrada, sem sequer possuir residência fixa e apresentar comportamento de risco, é maior a possibilidade de a requerida contrair doenças venéreas e ter nova gestação indesejada, aumentando a sua prole de forma irresponsável e não planejada”, Janaína “não demonstra discernimento para avaliar as consequências de uma gestação”.

Sua conclusão, então, é no sentido de que “não há dúvidas de que somente a realização de laqueadura tubária na requerida será eficaz para salvaguardar a sua vida, a sua integridade física e a de eventuais rebentos que poderiam vir a nascer e ser colocados em sério risco pelo comportamento destrutivo da mãe.”

Afirma que baseia o pedido no direito ao planejamento familiar (artigo 1º, da Lei nº 9.263/96), à inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput, da Constituição Federal), do qual  decorre o direito à saúde, entre outros dispositivos.

Em 27 de junho de 2017, o juiz de primeira instância deferiu a antecipação de tutela determinando que o munícipio de Mococa realizasse a cirurgia “no prazo máximo de 30 dias, sob pena de imposição de multa diária de R$ 100,00”.

Assim, a equipe do Departamento de Saúde do município visitou Janaína para que fosse dado andamento ao cumprimento da medida. De acordo com relatório, no dia 28 de julho de 2017:

“Janaína se encontrava na porta de casa próximo ao bar. Desnutrida, com uma aparência descuidada, falta de higiene, vive em condições precárias. (…) Relata estar em uso de álcool diário. Sensibilizamos a paciente explicando o motivo da determinação judicial (laqueadura). Ficou acordado com Janaína comparecer no PPA no dia 31 de julho de 2017 de manhã, para consulta Ginecológica. Janaína não compareceu no dia.”

Diante do não comparecimento de Janaína à consulta ginecológico, o membro do MP aduziu que:

“Ora, em se tratando de ação que visa a realização de cirurgia de esterilização compulsória, a resistência da requerida era esperada, motivo pelo qual foi pleiteado pelo Ministério Público e determinada liminarmente a realização de cirurgia de laqueadura, a qual deve ser feita mesmo contra a vontade da requerida. Caso contrário, nem seria necessário o ajuizamento de ação judicial” (grifos originais).

Diante de tal manifestação, o juiz limitou-se a determinar, novamente, o cumprimento da decisão, agora, no prazo de 48 horas, sob pena de multa de R$ 1.000,00 por dia.

O Município se insurgiu contra o alto valor da multa e informou que não era possível dar cumprimento à ordem judicial no prazo assinalado devido à impossibilidade de “realizar uma cirurgia não urgente em prazo exíguo pela própria sistemática do SUS”.

O magistrado, então, indefere o pedido de redução da multa e determina o cumprimento da ordem exarada.

Exatamente uma semana depois, tem-se notícia nos autos de que Janaína estava grávida, o que impossibilitou o cumprimento da ordem e levou à sua suspensão.

Na oportunidade em que o Município informou ao Juízo sobre a gravidez de Janaína, ficou também consignado nos autos que, em visita realizada no dia 13 de agosto, Janaína foi informada sobre a ordem judicial que determinava a laqueadura compulsória e, no dia seguinte, as integrantes da equipe de saúde e assistência social voltaram à residência da Janaína para que esta realizasse em suas companhias a consulta com a médica ginecologista, quando foram solicitados os exames necessários ao andamento do cumprimento da ordem judicial.

Consta do documento que tendo em vista que “Janaína não adere a nenhum tratamento”, a equipe achou por bem acolher Janaína em lugar diverso de sua residência, isto é, no prédio do Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas do município local em que permanecia até o momento em que o documento era firmado, praticamente dez dias depois.

Ao fim do relatório, a notícia do resultado do exame: Beta HCG Reagente.

À essa altura, Janaína sobrevivia com uma renda de R$ 46,00.

Em relatório datado de 8 de novembro, a coordenadora do CREAS conta que “tem chegado aos serviços de proteção denúncias que a Sra. Janaína permanece nos bares, fazendo uso de bebidas alcoólicas e maconha”, bem como que “já fizeram várias orientações, foi sugerido o acolhimento do CAPS-AD, porém a mesma não aderiu”.

A coordenadora então escreve que “a cada momento essa família tem uma desculpa para não cumprir o orientado”. Novamente, é flagrante a falta de sensibilidade e de respeito à dignidade de Janaína e à sua condição de vulnerabilidade que transparecem na linguagem empregada.

Em seguida, contraditoriamente, menciona, ainda, que “as equipes técnicas acreditam que a família tem medo de proceder com o pedido de internação devido uma possível reação da família do companheiro da Sra. Janaína”.

Medo é sentimento que se difere muito de uma simples “desculpa”.

Consta do relatório também que Janaína “encontra-se com infecção urinária colocando em risco a gestação, pois não faz uso correto da medicação, não aceitou ser internada no hospital para o tratamento”, para concluir com a sugestão de “internação compulsória e a laqueadura já que a gestante novamente não demonstra as mínimas condições de prover os cuidados próprios e de um bebê”.

Alguns dias depois, em 23 novembro de 2017, chega aos autos a informação de que Janaína foi presa preventivamente em virtude de crime relacionado ao tráfico de drogas.

Munido dessa informação, e com a proximidade da data provável do parto, o membro do Ministério Público pediu que fosse determinada “a realização do procedimento de laqueadura tubária compulsória no momento do parto” (grifos nosso).

A nossa legislação proíbe, expressamente, a esterilização de mulheres durante o período do parto. Isso porquê a cirurgia feita nessas circunstâncias aumenta o risco de moralidade materna.

Janaína estava grávida, sob custódia, num estabelecimento prisional. Nestes casos, a mulher é levada sob escolta policial à maternidade para ter seu filho.

Casos como esses, inclusive, de acordo com recente o entendimento do Supremo Tribunal Federal, não podem sequer subsistir enquanto regra, salvo raras exceções, eis que a mulher grávida, presa preventivamente, tem o direito de ter sua prisão convertida em regime domiciliar.

O lugar de uma mulher grávida e de um bebê recém-nascido não é dentro de uma cela de um estabelecimento prisional, em especial, naqueles que apresentam condições absolutamente precárias e insalubres como é o caso da maioria dos estabelecimentos prisionais brasileiros.

Havia uma determinação judicial, ainda que flagrantemente ilegal, para a realização da laqueadura no período do parto. Na sala de cirurgia, foi realizada a cesárea e a laqueadura tubária.

 

O tipo de esterilização realizado e aquele, de fato, permitido por lei

 

O pedido feito pelo  membro do MP, acatado pelo juiz de primeiro grau, que determinou ao Município de Mococa a realização da laqueadura tubária, sob pena de multa diária foi rejeitado pelo voto unânime de três Desembargadores do Tribunal de Justiça.

Segundo o Desembargador Leonel Costa, em seu voto, o pedido feito pelo membro do MP e acatado pelo juiz de primeiro grau, por suas características, se trata de um pedido de esterilização do tipo eugênica ou demográfica, proibida expressamente em território nacional [1].

Isto porque pedido “contra a vontade da parte, tendo por fundamento jurídico sua pobreza, eventual dependência química e o entendimento pessoal do d. Promotor de Justiça de que é caso de necessária esterilização por laqueadura”, e acatado pelo juiz de primeiro grau, que afirmou a necessidade da submissão de Janaína à cirurgia de laqueadura tubária sob a fundamentação de que esta “é pessoa hipossuficiente, apresenta grave quadro de dependência química, sendo usuária contumaz de substâncias entorpecentes, além de ser mãe de cinco filhos, que já estiveram acolhidos na Casa de Acolhimento Betânia, nesta cidade”.

Salienta, ainda, se tratar de “inadmissível preconceito social contra os menos favorecidos, uma vez que existem alternativas jurídicas disponíveis de assistência social e de orientação de planejamento familiar” e fez uma digressão histórica relacionando sociedades em que o controle reprodutivo das pessoas era realizado da forma pretendida e realizada no bojo deste processo.

Ao longo do voto, o magistrado compara o caso – tamanha a flagrante incompatibilidade com o nosso ordenamento –  aos ocorridos no seio de civilizações da Antiguidade Clássica, da Era Medieval, dos Estados unidos do século IXX, bem como da primeira metade do século XX, tais como a Alemanha nacional-socialista, a Suécia que entre os anos de 1935  a 1976 teve uma política de Estado com o objetivo de “higiene social” instituída legalmente; o Peru, onde centenas de milhares de mulheres peruanas, entre 1990 e 2000, foram submetidas  a  cirurgias  esterilizadoras  em  regiões  com  níveis  de  pobreza elevados e onde a maioria da população é indígena.

Lembrou, ainda que, no Brasil, em 1991, foi requerida a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, com o fim de examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no país e que no relatório final da CPMI constatou-se que houve omissão do governo brasileiro, que falhou em investigar instituições que realizavam o controle de fertilidade no Brasil e executaram políticas de controle demográfico, concebidas  por  governos  estrangeiros  e  organismos  internacionais.

Em virtude do apurado, foi recomendada a discussão e votação de Projeto  de  Lei  para  regulamentar  o  §  7º  do  artigo  266  da Constituição Federal, a fim de implementar diretrizes constitucionais para delinear o planejamento familiar no Brasil, apontando para a vedação de qualquer forma coercitiva e sanção legal para os abusos contra as mulheres.

Assim, no ano de 1996, foi publicada a Lei nº 9.263/96, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar.

É importante que se entenda que, de acordo com o art. 1º da  Lei nº 9.263/1996, “o planejamento familiar é direito de todo cidadão” e que, em seu art. 5º, estipula que o Estado assegurará que o exercício do planejamento familiar seja livre.

A esterilização permitida em nosso país é somente voluntária, e desde que cumpridos diversos requisitos relacionados a idade, quantidade de filhos, consentimento inequívoco expresso, inclusive do cônjuge, se houver; intervalo de sessenta dias entre o consentimento e o ato cirúrgico; além da sua vedação durante o período de parto.

Cumpre salientar que existem diversas críticas à referida legislação por parte do movimento feminista, principalmente com relação à necessidade de consentimento do marido para a realização da cirurgia. No entanto, voltemos ao caso ora analisado.

O Desembargador Costa aventa a possibilidade excepcional da esterilização compulsória se houvesse a necessidade de salvaguardar a vida e a preservar a saúde da pessoa que pretende se ver esterilizada e frisa que este não é o caso de Janaína, uma vez que não foi trazido aos autos qualquer prova médica que indicasse a urgência e imprescindibilidade da mutilação e esterilização.

A conclusão dos três Desembargadores é no sentido de que a esterilização realizada em Janaína, nos moldes em que foi pedida e determinada, não encontra respaldo em nosso arcabouço jurídico uma vez que, entre outros:

“Nossa Constituição Republicana inicia-se com a adoção do Estado Democrático de Direito com fundamento na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza, com promoção do bem de todos e sem preconceitos. Igualmente, proclama a Constituição da República a garantia intransigente da inviolabilidade do direito à vida e à liberdade, não se obrigando ninguém a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Assegura a inviolabilidade da intimidade. Veda a tortura ou a algum tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) bem como as penas corporais”.

Por sua vez, o Desembargador Bandeira Lins afirma que neste caso específico, “o que se pedia não era a recuperação da saúde de alguém; mas sim  a  imposição  a  terceiro  da  mutilação  de  uma  capacidade  corporal  sua,  e, subsidiariamente, a condenação de ente estatal resistente ao pleito a pagar multa caso não se desincumbisse de encontrar a paciente e coagi-la à cirurgia”, bem como que já, há muito tempo, no Direito encontra-se fundamentada a noção de que busca-se assegurar o direito, inclusive daqueles que infringem à lei, de ter o próprio corpo resguardado contra a ação do Poder Público.

No mais, ressalta que não se trata de proteção à saúde das pessoas ou direito de recondução à sua saúde quando tal pedido, para se concretizar, signifique que corpos devam ser moldados, inclusive corpos futuros, cujo nascimento se evita.

Registra, ainda, que as pessoas não podem ser coisificadas e que lei alguma pode despossuir uma pessoa dela mesma, dando azo à investidura de vontade alheia domínio pleno sobre seu corpo.

 

 A necessidade de manifestação inequívoca de vontade da mulher que venha a se submeter ao procedimento de esterilização

 

Conforme mencionado no tópico anterior, o procedimento de esterilização permitido por lei necessita de manifestação inequívoca de vontade da mulher que venha a ser a este submetida, diante do caráter definitivo e invasivo da medida.

Prevê o parágrafo §3º do art. 10 da Lei nº 9.263/1996 que “não será considerada a manifestação de vontade (…) expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente”.

O Desembargador Paulo Dimas, citando Albuquerque[2], assenta que “nas situações em que não for possível a obtenção do consentimento em virtude da autonomia do paciente estar absolutamente comprometida, modelos de decisão substituta devem ser adotados, nos quais a família delibera pelo paciente” e que “tão somente a família poderá substituir a decisão do paciente, não cabendo ao Estado fazê-lo”.

No caso em questão, de acordo com o que já foi relatado nos itens anteriores, o que consta nos autos, e consoante o que afirmaram, em uníssono, os magistrados da Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, não se perfez a manifestação de vontade inequívoca de Janaína em se submeter à laqueadura tubária.

Isto porque “há narrativa clara no sentido de que Janaina, por vezes, demonstra desinteresse em aderir aos tratamentos sugeridos pelos órgãos públicos”, bem como que as “ausências reiteradas aos programas municipais, relatados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (…), deixam claro a falta de vontade da requerida em realizar o procedimento cirúrgico”, além de haver a menção expressa de que “não cumpre as mais simples orientações” dadas pelos órgãos da rede de proteção.

Ademais, o Desembargador Costa aponta que uma avaliação psicológica do setor próprio do Fórum local revelou manifestações de vontade de Janaína contrárias à realização da laqueadura. Não obstante, foi registrado na conclusão do relatório que a “Sra. Janaína aparentou ter desejo espontâneo e convicto em realizar a cirurgia, como forma de evitar outras possíveis ocorrências de gravidez”, pelo que, afirma o magistrado, “leva a crer que o documento tem características tendenciosas”.

Afirma, ainda, que houve indício forte de indução da requerida a declarar seu interesse no procedimento, nos seguintes termos: “no dia desta avaliação Janaína foi orientada a declarar seu desejo  referente  à  realização  da  cirurgia  de  laqueadura no  Cartório  desta Comarca”, pelo que não se pode afirmar de maneira inequívoca a manifestação de vontade real de Janaína, ainda que haja documento firmado em cartório neste sentido, eis que a possibilidade de ter sido induzida a fazer determinada declaração não pode ser afastada.

Ademais, tem-se que, uma vez determinada a realização da laqueadura  tubária,  em  caráter  liminar,  com  imposição  de  multa  diária, inclusive, e marcada consulta ginecológica para dar andamento ao seu cumprimento, Janaína, ciente da ordem judicial, não compareceu à consulta ginecológica, o que não pode ser compreendido como manifestação de vontade inequívoca de realização do procedimento.

Foi este o entendimento dos três Desembargadores.

 

A maneira (coercitiva) pretendida e realizada de cumprimento da medida

 

Repisa-se que, no espírito da lei que regulamentou o planejamento familiar no Brasil, que se sucedeu a uma CPMI que discutia o uso e abuso de esterilização em massa de brasileiras, estava o objetivo de vedar qualquer forma coercitiva e sanção legal para os abusos contra as mulheres.

No caso em apreço, as sucessivas atitudes de Janaína iam no sentido contrário da realização do procedimento cirúrgico e, uma vez demonstrado o não comparecimento de Janaína à consulta ginecológica marcada após a determinação judicial de realização da laqueadura tubária.

Se Janaína não se apresentava voluntariamente para dar andamento aos procedimentos indispensáveis a realização do procedimento, indaga o Desembargador Costa em seu voto “qual seria o próximo passo? A condução coercitiva da senhora Janaína para o hospital?”.

Era esta a proposta do Ministério Público, uma vez que se trata de ação que visa “realização de cirurgia de esterilização compulsória”.

Sobre o instituto da condução coercitiva tramita a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 444 no Supremo Tribunal Federal no bojo da qual, no último 18 de dezembro, foi concedida a liminar “para vedar a condução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Isso porque não se pode obrigar o investigado a comparecer a um ato ao qual não é obrigado.

O magistrado de segundo grau menciona que, não há “nenhuma hipótese a lei autoriza o constrangimento forçado à submissão do exame (…) sob condução coercitiva, com muito mais razão para ser vedada a realização de cirurgia em caráter compulsório”.

Importante salientar que, consoante o já mencionado nos tópicos anteriores, Janaína estava grávida, sob custódia, num estabelecimento prisional. Nestes casos, a mulher é levada sob escolta policial à maternidade para ter seu filho.

Se Janaína quisesse se opor ao procedimento à altura, como poderia fazê-lo, uma vez que estava privada de sua liberdade de locomoção e foi conduzida à Maternidade para dar à luz a seu filho?

 

A necessidade de oportunidade de defesa técnica, isto é, por advogado ou defensor, dos direitos de Janaína.

 

De acordo com a 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, o processo em questão padece de um vício muito grave, que diz respeito à ausência de defesa efetiva, que contamina o procedimento de nulidade.

A oportunidade de defesa efetiva somente se dá quando de natureza técnica, isto é, feita por quem tem capacidade postulatória para defender seus interesses – leia-se, no caso, membro da Advocacia ou da Defensoria Pública.

Afirma o Desembargador Costa que “embora tenha havido a citação da ré (fl. 32), não se lhe abriu oportunidade defesa, violando a garantia constitucional do devido processo legal, o que inclui o direito à ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV da CF), com os meios e recursos a ela inerentes. O processo é nulo de pleno direito, pois a ré não poderia ser privada de defesa efetiva, seja qual fosse a matéria em questão, mas especialmente porque aqui se debate a realização de cirurgia, em caráter compulsório, de esterilização”.

No entendimento do juiz de primeiro grau, Janaína seria uma pessoa capaz de se defender em ação judicial e que só lhe cabia a nomeação de um curador especial, isto é, um defensor público, caso houvesse decisão ou pedido de curatela com fundamento em incapacidade. Tendo em vista que não havia constituído advogado por sua própria conta, teria ocorrido a revelia.

O Juízo de segundo grau ressalta que o juiz do primeiro entendeu que Janaína não tinha capacidade para cuidar de seus próprios filhos e não tinha capacidade de decidir a respeito da necessidade de cirurgia de esterilização, tanto é que a determinou em caráter compulsório.

Isto posto, aduz que, em suas palavras, “é no mínimo contraditório entender que a ré não dispõe de plena capacidade mental para bem dispor de seus atos, mas, ao mesmo tempo, entender que a ré possui plena capacidade de se defender em ação judicial”.

Ademais, frisa o magistrado de segundo grau que “não foi realizada qualquer audiência, colocando-se frente a frente ré e magistrado (…) não houve, por parte do Juízo, propósito investigatório mínimo acerca da pertinência de pedidos tão graves tais quais os formulados pelo Ministério Público”, além de que não é possível dizer que documentos produzidos unilateralmente por órgãos do próprio Município (como os relatórios apresentados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social ou então o Laudo de Psicologia) seriam capazes de suprir questionamentos e indagações formulados oral e presencialmente durante uma eventual audiência preliminar”.

E repisa que a certidão firmada por Janaína em cartório não supre a falta de defesa, pois o direito constitucional se refere ao direito de defesa técnica.

Neste caso, Janaína foi, portanto, segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, cerceada em seu direito de defesa.

 

 O corpo feminino enquanto corpo público

 

Além da violação frontal a vários dispositivos legais e constitucionais, já analisados, salta aos olhos o poder desenfreado, resultado de uma convergência de várias vontades, de fazer valer uma decisão contrária ao nosso ordenamento, permeada de singular violência e de inconformidade diante da liberdade de uma mulher absolutamente vulnerável.

Uma liberdade que foi, indevidamente, travestida de desobediência e suscitou a urgência de um castigo desmedido e infundado.

O que agora pulsa, antes do número e da fria análise de cada um dos diversos dispositivos legais e constitucionais violados, é relembrar que o filho de Janaína não foi à escola no dia da visita da assistente social porque havia perdido o único par de sapatos que tinha. Que Janaína sofria violência do companheiro, mas, ressaltou, “não na frente das crianças”. Que via a mãe sofrer violência cometida por seu pai.

O que agora pulsa são os valores presentes em nossa sociedade, são as tantas violações sofridas por Janaína, antes, durante e depois do processo. Tantas. E diante de tamanha vulnerabilidade social.

Esse tipo de proceder, nestes exatos termos, com este exato tipo de resultado, não é a regra no nosso sistema de Justiça. No entanto, a despeito do aparente desvio-padrão, é impossível nos desviarmos da certeza de que tal materialização, isto é, a mera possibilidade de uma aberração dessas se configurar no mundo dos fatos — e ter, de fato, se consumado, o que é mais grave — só se fez possível, pois existem impregnadas noções perversas em incontáveis indivíduos que estão investidos em quase todos os lugares de poder na nossa sociedade.

Como não pode deixar de ser, esses indivíduos impregnam nossas instituições com esses valores. É impossível ser diferente, eis que, por óbvio, as instituições agem por meio de pessoas.

Ainda que se venha a cogitar este como um caso escatológico, essa natureza de valores exteriorizados nas várias manifestações ao longo do processo não estão restritos a uma pequena parte dos indivíduos que ocupam cargos de poder, de comando e de direção na nossa sociedade. Não estão. Ainda que se cogite que tenham sido destilados este tipo de valores em uma proporção exacerbada neste caso em particular, não é possível afirmar que tais valores estão restritos a um grupo diminuto de pessoas. Assistimos inúmeras violações que encarceram, torturam, marginalizam e minam oportunidades de um número incontável de pessoas que colecionam características semelhantes às de Janaína.

É de se pensar, inclusive, que muitos desses valores restam absolutos e inquestionáveis desde a chegada dos colonizadores que para cá vieram, e que, através de seus processos cruéis, contribuíram para forjar nossa sociedade à base de muita exploração, violência, corrupção, sangue, dor, tortura e estupro.

Sobretudo, contra negros e indígenas. Sobretudo, contra mulheres, mas sobretudo, contra mulheres negras e mulheres indígenas. Sobretudo, contra pessoas pobres, mas sobretudo, contra mulheres pobres. Disto tudo submergiram esses valores que nos regem e que regem todas as nossas instituições.

Não vivemos esse estado de coisas atual à toa. Do fim da escravização ainda não demos conta, das torturas institucionais e sistemáticas ainda não demos conta também. Da desigualdade abismal, idem. Da misoginia muito menos.

Quando é que houve qualquer ruptura real destes valores?

Estamos contaminados. Tudo está contaminado. Nunca tocamos, experienciamos nada que não fosse, assim, contaminado.

Temos no exercício do poder, sobretudo, os mesmos de sempre, os que reafirmam e perpetuam os valores de sempre.

Mas, ora, pois, afinal, que valores são esses?

São elas, nossas velhas conhecidas: as lógicas racistas, patriarcais, machistas, classistas, higienistas, autoritárias, desrespeitadoras das liberdades individuais, dos direitos fundamentais, quando — e tão somente quando — a imagem do indivíduo não é a mesma daquela refletida no espelho dos que ocupam o poder.

Vivemos — ainda — sob a égide da naturalização da noção do corpo feminino enquanto um corpo público, a naturalização da noção de indignidade inafastável da pessoa pobre, a naturalização de que são os valores ditados pela classe dominante, pelo gênero que comanda, pela raça que tudo controla os que imperam e devem imperar. Goela abaixo. A naturalização de que tudo podem.

Uma reunião de vontades decidindo sobre o órgão reprodutor de uma mulher sem que ela tenha direito à voz, sem que seu consentimento seja indubitável. Sem ninguém com poder estrutural para frear essa atrocidade em tempo hábil.

É de paralisar. Não surpreende quem tem disponibilidade para lançar olhos ao funcionamento das estruturas e interações sociais e estatais, todavia, é de paralisar ver tudo isso documentado.

Os argumentos utilizados para fundamentar uma dita urgente necessidade da esterilização compulsória — figura inexistente em nosso ordenamento jurídico— ao fazerem por ela uma escolha que tão somente a ela cabia, também são ensurdecedores. Fizeram-no sob o manto da “defesa” dela contra si mesma. Sob o manto de uma dita legitimidade de poder decidir livremente por ela sobre seu corpo e sobre sua vida. Sob o manto de uma dita “proteção” direcionada a eventuais vidas futuras.

Esse argumento é de um paternalismo e misoginia inenarráveis. Sob o pretexto de “proteção” aos seus próprios direitos, uma mulher foi escoltada a ser mutilada contra a sua vontade. É estarrecedor que isso não tenha horrorizado todas as pessoas que fizeram parte dessa cadeia de eventos que resultou nessa tragédia.

É preciso responsabilização daqueles que se utilizaram da ocupação de função pública para agir em flagrante desrespeito ao nosso ordenamento jurídico em reiteradas manifestações que culminaram na mutilação à qual Janaína Aparecida Quirino foi submetida.

Mas não basta.

É preciso responder às falhas do nosso sistema de justiça que tornam casos como estes possíveis. É preciso desimpregnar nossas instituições de valores incompatíveis com a nossa ordem constitucional, que atuam de maneira seletiva e, muitas vezes, misógina.

A notícia de que Janaína Aparecida Quirino, mulher negra, pobre, usuária de álcool e drogas, que foi submetida a um procedimento de esterilização forçada pedido pelo Ministério Público e determinado judicialmente, nos paralisou.  No entanto, a paralisia não pode nos abater. Seguimos na luta para que não nos mutilem mais. Para que não nos violentem mais. Para que não decidam sobre o nosso próprio corpo mais. Para que não nos paralisem mais.

Até que não o façam.

Nunca mais.

Iara Gonçalves Carrilho
Bruna Leão

[1]  Art. 1º, parágrafo único da Lei nº 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar.[2] Esterilização  compulsória  de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. In: Revista Bioethikos – Centro Universitário São Camilo – 2013, p. 24, disponível [on-line] em: https://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/99/a2.pdf, acessado em 20/04/18.

 

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