“Manuel Bandeira é delicado e musical e tudo o mais – nada parece sólido ou realmente ‘criado’ – é tudo pessoal e tendendo para o frívolo. Um bom poema de Dylan Thomas vale mais do que toda a poesia sul-americana que já vi, com a exceção, possivelmente, de Pablo Neruda”.

A citação anterior é de Elizabeth Bishop, poetisa norte-americana do século XX e… a autora homenageada da FLIP de 2020. Faltaram autores e autoras nacionais de talento?

A FLIP é um festival literário lançado em 2003 e realizado anualmente na cidade bucólica e histórica de Paraty, no interior do Estado do Rio de Janeiro. É considerada um dos principais festivais literários do Brasil e da América do Sul, atraindo anualmente milhares de pessoas para palestras, oficinas literárias e programações culturais. O sucesso é tão grande que, além da programação oficial, ocorre também em paralelo muitas outras atividades não-oficiais mas igualmente (senão até mais) interessantes pela cidade.

Apesar no Rio, nunca havia ido para o festival. Amo Paraty desde que por impulso um dia peguei o carro e resolvi fazer uma viagem sozinha à cidade para espairecer. Me apaixonei pela suas ruas, caminhos, história e poesias. E considerando minha paixão por livros, comparecer à FLIP sempre foi um sonho.

E finalmente realizei este sonho neste ano de 2019. Pude observar o que sempre imaginei que encontraria: Paraty pulsa de cultura durante a FLIP.

As ruas são absolutamente lotadas, os espaços disputados, mas existia uma magia no ar. Havia uma forte presença de manifestações políticas. Em parte pelo contexto atual que colocou a política de volta aos debates cotidianos. Havia, portanto, muitas pessoas vestidas com camisetas de mensagens de teor político, falas em mesas e debates que ressaltavam questões da política atual, em certo ponto uma faixa gigante escrito “Lula Livre” ocupou a principal praça da cidade. Uma mala enorme foi posta na rua. Nela, estava escrito: “Traficante Internacional de Livros. 39kg de versos”, em alusão à carga de cocaína apreendia em um avião da FAB. Manifestações do tipo, incluindo com dança, poesia e música encheram a cidade. Por outro lado, uma particularidade desta edição trouxe a política como presença marcante: a presença do jornalista Glenn Greenwald.

Uma faixa foi colocada bem na entrada da cidade. Dizia: “Indignação é coisa nobre! Fora de Paraty Glenn Greenwald”. Passei de carro pela faixa e comentei indignada com a minha mãe que estava ao meu lado. No que ela imediatamente respondeu: vamos tirar essa faixa daí. Parei, ela desceu e correndo foi tirar a faixa. Colocou no porta-mala e saímos rindo da situação.

Fora este pequeno incidente cômico, o clima era de tensão no dia que Glenn participou da mesa a mesa “Os Desafios do Jornalismo em Tempos de Lava Jato” ocorrida no barco da FLIPEI, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. O The Intercept Brasil, do qual Greenwald é editor, estava no auge da série de reportagens que desmascarava a lama da Lava Jato e havia uma série de mobilizações pela cidade em protesto à sua presença. Ele foi, sem dúvida, o convidado mais comentado e esperado, apesar de fazer parte da programação paralela da FLIP.

Perto do hotel, eu já podia ouvir a movimentação de várias pessoas para protestar contra a presença de Glenn no evento. Alguns deles cobriam as placas do carro enquanto carregavam rojões aos porta-malas. Um sol alto de carro tocando o hino do Brasil ficou tocando enquanto eu me arrumava para sair.

Não por menos que a presença de Greenwald em Paraty demandou um forte esquema de segurança, tanto que ele chegou de barco ao local do evento. Foi recebido com protestos de um grupo que tentou a todo tempo interromper sua fala com carros de som às alturas, mas pôde passar sua mensagem para um público ainda maior de apoiadores que marcaram presença para ouví-lo.

O fato é que a política marcou a Flip em 2019, bem ao estilo da polarização que vem ocorrendo em todos os outros locais no Brasil. Por isso, não me parece mero acaso a escolha da homenageada de 2020. Além de repulsa pela literatura brasileira, Bishop nutria simpatia pela Ditadura Militar:

“Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva – tudo terminado em menos de 48 horas”, escreveu Bishop a Lowell em 4 de abril de 1964, três dias depois do golpe que destituiu o presidente João Goulart. “A junta militar provavelmente parece muito pior vista de fora do que vista daqui. Como você sabe, os militares no Brasil jamais na sua história tentaram tomar o poder ou mantê-lo – e Castelo Branco relutou em ser presidente… A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera ‘deposição’, e não uma revolução”, escreveu ela ao mesmo interlocutor em 13 de abril de 1964.

A opinião de Bishop cai como uma luva no contexto atual de saudosismo dos anos de chumbo e preparação para um novo golpe. Eduardo Bolsonaro disse que vem “um novo AI-5” se a esquerda se radicalizar, o próprio Bolso-pai vê o AI-5 como um evento histórico, homenageia ditador desde quando era deputado e agora criou seu novo partido fascista cujo nome, Aliança pelo Brasil, é inspirado na Aliança Renovadora Nacional – o ARENA. E mais recentemente, o Ministro Paulo Guedes deixou cair sua máscara de liberal ao ameaçar a população com um novo AI-5 se for necessário.

Paulo Henriques Britto, tradutor da obra de Bishop, afirmou que a poeta “não era, de modo algum, uma escritora politizada. A companheira dela, Lota Macedo Soares, é que era muito próxima dos líderes civis do golpe de 1964”. Não sei o que fez Britto achar que talvez a poeta não compartilhasse das mesmas opiniões da companheira, já que é o que ela afirma nas cartas. Ou que é um certo paternalismo afirmar que, no fundo, ela queria dizer o contrário do que de fato disse.

No entanto, a escolha da Flip diz muito menos sobre Bishop e muito mais… sobre a Flip. Não acredito que seja ingenuidade ou coincidência a escolha. Foi uma decisão bem analisada, pensada e repensava, revista e planejada.

“Todas as pessoas têm o direito de errar, e de fazer suas próprias revisões. Não me filio a patrulhas eternas. Me pergunto, porém, se nesse momento de loas efusivas à ditadura, e mesmo à tortura, não seria o caso de prestar tributo a quem tenha uma história de compromisso com a democracia sem maiores hesitações”, escreveu o escritor Marcelo Moutinho, sem pensar que talvez seja essa a intenção.

A Flip resolveu acenar para os ares conservadores que agora soprarão pelas areias de Paraty.