Um país em que uma jovem de 17 anos foi estuprada por nada menos que 33 homens. De todas as idades. Dentre eles, um ex-companheiro. Alguém que disse querer vingança da adolescente por suspeitar que ele o tivesse traído. Nenhum deles se opôs, se sensibilizou, se compadeceu. Dos 33, não houve quem impedisse.

Eles se sentiram à vontade o suficiente para gravar em detalhes a mulher violada. Fizeram piada. Publicaram. Divulgaram para o país com orgulho a barbaridade que fizeram. Seu corpo virou espetáculo, troféu. O sobrenome do primeiro a divulgar o vídeo é Brasil. Seria irônico, se não fosse trágico. Todo o país violou aquela jovem.

Neste mesmo país, nenhuma mulher no alto escalão do governo interino de Michel Temer. O mesmo país onde o ministro da Educação recebeu, na mesma semana, um homem que confessou um estupro em rede de televisão aberta. A pauta: sugestões para a educação do país, como o “fim da ideologia de gênero nas escolas”.

Em 2015, estudantes de todo o Brasil tiveram de escrever sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” para a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O tema foi claro: a persistência. A violência que persiste, que é naturalizada e continua se perpetuando todos os dias. Houve quem protestasse contra. O tema.

É este o país que se indignou com a barbaridade ocorrida com esta menina depois de exposta nas redes sociais. Mas também o país que se recusa a se entender como machista. Na mesma semana, a apresentadora Ana Hickman foi atacada em uma tentativa de homicídio por um “fã obcecado” que não aceitou não tê-la pra si. Todos esses fatos estão interligados. Todos fazem parte de uma cultura que objetifica a mulher. De uma piada numa mesa de bar, um puxão pelo braço em uma festa, o controle de uma roupa, a censura de um comportamento.

Em 24 horas, 120 mulheres são estupradas no Brasil. Aqueles 30 — nem os outros tantos que abusam sexualmente de mulheres — não são doentes. Se há uma epidemia, então, é chamada machismo.

Homens que estupram não estão longe. Homens que acham que mulheres existem apenas em função deles. Mulheres são violentadas a cada onze minutos no Brasil. E não esqueçamos que até o ano de 2009, o estupro era considerado crime contra a honra. E ainda hoje, 2016, o estupro é um dos crimes menos notificados e mais silenciados do Brasil.

O Brasil teve no ano passado ao menos 47.646 estupros. É o que mostram os dados oficiais das secretarias estaduais da Segurança coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 50 mil casos de estupro são registrados anualmente no Brasil e estima-se que isso representa apenas 10% da quantidade dos casos. Um silêncio que ecoa.

Assim acontece a cultura do estupro. Um conjunto de fatores que fazem com que mulheres sintam o peso da culpa e do medo. Uma cultura que culpabiliza a vítima. Que faz com que silencie diante de uma agressão. Uma cultura que inclui cantadas de rua, que começa na socialização de crianças, que passa pela educação formal. É reproduzida em filmes, programação de televisão, publicidade.

É a forma como em cada um desses espaços, a mulher é colocada em posição inferior, é submetida a piadas sobre seus comportamentos, opções, aparência física, é questionada sobre sua capacidade, é silenciada em debates em qualquer instância. É como a existência da mulher é pensada sempre de acordo com a dos homens. É pagar menos a elas, e menos ainda às mulheres negras. E assim, cada uma de nós internaliza o medo de estar sozinha no transporte público, na rua, à noite ou mesmo sob a luz do sol. E também a culpa, o pensamento “eu poderia ter evitado”. E assim toda a sociedade entende como normal, como parte do funcionamento do mundo, inevitável que homens se apoderem dos corpos femininos.

“As pessoas falam da Índia e se chocam a cada caso de estupro lá, mas a Índia é aqui. Gerou repercussão o caso de lá, mas a nossa realidade é similar”, disse a promotora de Justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público do Estado de São Paulo, Silvia Chakian. “Por tudo isso, esse caso precisa de uma punição exemplar. E acima de tudo, precisamos fazer um trabalho de educação de gênero, de respeito ao corpo da mulher e aos direitos dela.”

É preciso quebrar esse ciclo vicioso de poder. Estupro nada mais é que uma demonstração masculina de domínio sobre as mulheres, o corpo feminino. Uma agressão profunda, íntima. Um caso como este, do Rio de Janeiro ou como do Piauí, é sobre todas nós. Faz lembrar quem somos, que papel a sociedade atribui às mulheres, como é condescendente com os homens, como estamos todos sujeitos a uma educação sexista que ensina as mulheres a fecharem as pernas desde crianças para que os homens se sintam poderosos ao abri-las sem consentimento, se sintam no direito de violar o corpo feminino.

Nos calar não é uma opção. É preciso transformar a dor em luta. Gritar, incomodar. A normalidade, a naturalização, ou a descontextualização de um caso extremo, como um ponto fora da curva, não inaceitáveis. Vamos renascer em cada gesto, em cada lágrima.

 

Ana Pompeu

 

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