A mulher habitada, romance da nicaraguense Gioconda Belli, foi publicado pela primeira vez em 1989. Chega ao Brasil, em edição em língua portuguesa, em 2000, pela Editora Record. É um livro sobre lutas: a revolução sandinista contra a ditadura somozista e a luta das mulheres para se legitimarem enquanto integrantes de um espaço tido tipicamente como masculino, o da luta armada.

Belli, poeta, romancista e revolucionária nicaraguense, imprime em Lavínia, a personagem central do romance, muito de si. Belli nasceu em Manágua, em 1948, estudou na Espanha e nos Estados Unidos e, ao retornar ao seu país, Nicarágua, encontra um cenário caótico e de opressão que exige que ela se posicione. Ela decide, então, tornar-se uma militante da Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN, que, por sua vez, foi responsável por derrubar o ditador Anastasio Somoza, em 1979. Lavínia, igualmente, é uma mulher bastante autônoma para os padrões da época. Por influência de uma tia, estuda fora de seu país ficcional: Fáguas. Ao retornar, revolta-se com a ditadura que está instaurada em seu país e decide entrar para a luta armada.

Assim, A mulher habitada metaforiza a revolução sandinista ao ter, em sua narrativa, um país ficcional que sofre das mesmas mazelas de Nicarágua. Há uma revolução, que se transmuta ao longo da narrativa, pois inicia-se pacífica e torna-se mais intensa e resistente devido à repressão imposta. Lavínia acompanha o desenvolvimento dessa revolução e, conforme a repressão aos opositores torna-se mais violenta, ela vai se aproximando dos revolucionários.

A obra tem um profundo cunho feminista, pois, por mais que haja a participação de homens ao longo da diegese, não é sobre eles que a narrativa se centra e, sim, nas relações entre mulheres. Ela, aliás, desconstrói o mito de que as guerras é um espaço masculino. Esse mito existe, inclusive, porque, como diz Svetlana Alexijevich, em A guerra não tem rosto de mulher, as vozes que narram as guerras são vozes masculinas: “tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’” (ALEXIJEVICH, 2016, p. 12).

A mulher habitada é iniciada com o fluxo de consciência da indígena Itzá no seu processo de incorporar-se em uma árvore. Ela havia há muito tempo, no momento da invasão da Nicarágua pelos povos espanhóis. Foi, assim como seu parceiro, Yarince, morta pelos espanhóis. Ao firmar morada no pé de laranja no quintal da casa de Lavínia, acompanhará a trajetória dessa mulher, que, quando bebe o suco feito das frutas do pé de laranja, bebe, também, parte do espírito de luta da guerreira Itzá.

Assim, ela sente, sem nem saber por qual razão, que a revolução a chama. Além disso, seu olhar para as desigualdades sociais em seu país e a opressão contra as mulheres em um cenário violento exigem que Lavínia abandone o conforto de ser uma mulher independente, profissional e com um bom emprego para lutar uma guerra que não é sua, diretamente.

A mulher habitada, então, é construído em torno de metáforas acerca do morar, do habitar. Itzá habita uma árvore na casa de Lavínia e habita, também, esta mulher, que, por sua vez, habita um tempo e espaço que Itzá não compreende muito bem:

Tudo ficou em silêncio quando se foi; não escutei sons de templo, movimento de sacerdotes. Só a mulher habita esta moradia e seu jardim. Não tem família, nem senhor, e não é deusa porque teme: trancou portas e cadeados antes de ir embora (BELLI, p. 9).

A obra, então, promove um resgate da participação das mulheres nos espaços revolucionários e oferece uma visão importante da participação da própria autora, Gioconda Belli, na luta pela libertação de seu país. Além disso, encontramos uma leitura importante da história, de modo ficcionalizado, claro, de dois momentos decisivos: a invasão da América Latina e o extermínio dos povos latinos; e o desenvolvimento da resistência contra a ditadura militar.

 

Maisa Barbosa é mestre e doutora em Letras. Pesquisa, desde a graduação, temas relacionados às políticas públicas de leitura, crítica feminista e literatura brasileira escrita por mulheres.

 

REFERÊNCIAS    

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Trad. Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

BELLI, Gioconda. A mulher habitada. Trad. Henrique Boero Baby. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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