Eu queria contar essa história em terceira pessoa. Mas é sobre mim. Embora eu goste de ver e entender meu corpo, observando-o como uma narradora, como uma cena de um filme frívolo, não consigo. Dessa vez.

Dias normais. Acordei. Fiz meu café atrasado. Roupa amassada. Coloquei os sapatos no elevador mesmo, e comi no caminho. Dormi tarde ontem, corrigindo trabalhos e ouvindo o de sempre: Gal e mais. Dia normal. Evoluímos sobre os artifícios do cinema para a cidade, em sala de aula. Sugeri debates e ensinei sobre a escolha da observação.

Engraçado. Lecionar sobre cidades e caminhos observatórios. Tornar-se câmera. Registrar. Coletar corpos, palavras, olhares, distâncias. A cidade, quase como um texto, argumenta todo o caos e questiona qualquer singularidade. Somos personagens? Olhamos e somos olhados. Nesse roteiro, criamos a tragédia e o divino. A antítese do texto desmonta o caminho de todo dia. Sim. Eu acordo todo dia atrasada. Bebo café durante a chegada e o cabelo fica como quiser. Todo dia. Normal. Mesmo caminho. No entanto, as Idas e as Vindas nunca são as mesmas. Escolhe-se direcionar o olhar. Enquadrar a sobreposição, o enfrentamento, o atraso. Sem adiar, mesmo que normal, meu caminho até a Escola nunca é o mesmo.

E foi o que fiz. A vinda para minha casa, próxima à Escola, durou – sempre dura – três quarteirões. O trajeto de meus olhos decidira ir em busca do apelo: Vinho. Vinho para uma mulher sozinha e desatada. Já meus pés, imploravam pelo piso aquecido da sala e um pouco trincado de abandono e de antiguidade. Bom, não faz mal. Dessa vez, a possibilidade do futuro foi escolhida pela tragédia visual: o porre. Quem sabe não seria o álcool a solução de uma solidão de pés descalços frios, desajeitados e insensatos. Confesso estar cansada. De mim. Dos meus medos. Em pressa, organizo-me mesmo com um café atrasado. Ainda, adio-me, de esperanças e de sonhos.

Da janela, filmo qualquer concreto pálido que me cause curiosidade. Como espaços abertos ao tempo, essa fresta ajuda-me a olhar. Daqui, não é igual. O caos não perturba, a pele não seca. Observo o presente passar, a ponto de esquecer qualquer caminho já feito por mim: viciei. Viciei, em goles, toda a secura, de olhar daqui, lugares que não existem, que são nós, que são passeios, que são livres, sombras, pés e corpo.

Minha garrafa cheia, de álcool e de estragos, acompanha-me. Descalça. Sem nada. Habito o mundo. Não quero adiar. A verdade é que é difícil soltar-se. Todos os dias, desmancho-me de cenários e crio cenas nunca antes notadas. De minha cabeça, explodem intérpretes, implorando o gosto do vivo e o funeral de pés apertados no sapato. Os dedos escapam de qualquer nó, em qualquer esquina, de qualquer cidade. Normal? São normais os dias em que a gravidade submete seu corpo à agonia? De passo a passo, me envolvem em reflexos, sons, poluição e silêncio.

Silêncio? Foi naquele chão, agora frio, de pinga envelhecida, que escutei. Aos trinta anos, ainda leio os mesmos livros, ensino as mesmas ciências, tenho os mesmos amigos, faço o mesmo caminho: confirmo ser repetitiva. Tento não ser. Aos prantos, também confirmo esse esforço como efetivo. Oscilo entre silêncios, minhas letras se confundem. Meus pés dançam qualquer música.

Porém, foi nessa história que, mesmo com as músicas mais óbvias, o vinho mudou. Parece que a pressa no mercado, aquele dia, gerou o imprevisível. Na minha sala, com os pés desprevenidos, dançamos. Dancei. Não só dancei, mas me vi.  No momento certo, me engoli quase como qualquer garrafa indecente e desonrada. Uma mulher completamente vestida de vermelho.  Bati o pé no chão com ritmo. Duas palmas. Girei. O ritmo das mãos convidara o quadril e, em roda, dançamos. Rodei, de modo que os cabelos voavam e os olhos narravam. Narravam todo o giro que cada pé meu ia fazendo em círculos perfeitos. Devagar, deixei o corpo entrar no ritmo. Não foi normal. Sublime. Não foi o porre, fui eu. Olhei para todos os lados, como se fosse vigiada. Tentador. Meu corpo estava íntegro, por princípio.

Qualquer um que visse, duvidaria. Alguém estava olhando? Será que alguém presenciou a taça vazia e o silêncio constrangedor? O som abafado saía de onde? De mim? Da minha silhueta inquieta? Cada vez que me balançava eu era orquestra. De repente, entendi tudo. Espiei de longe o que acontecia. Como uma cena, assisti a tragédia e a beleza de ser circular. Sem história nenhuma roda se repete. Se dança. Se nota. Se Inventa. Fui terceira pessoa. Fui segunda. Fui primeira. A figurante interpretou o presente e mirou o palco. Ocupada e distraída, fui queimada pelos caminhos que eu mesma fiz. Aquele dia, eu tive a certeza de que fui invadida pelo toque das ruas. O caos, finalmente, havia poluído a minha sala. Presente. Sem futuro.

Olhei para todos os lados. E só havia uma presença: eu. Eu? A carne dos meus lábios murchara. Seca como essa porta velha que não entra nada. Eu estava roxa. E brilhava, como a uva que provei há pouco tempo. Engraçado. Eu estava de costas para a cidade que defendi, que criei, que fui e que narrei. De frente, o único roteiro nunca lecionado, a única cena nunca registrada e o caminho nunca exposto: a carne. Minha anatomia suada. Amarelada e fatídica. Reservada. Foi o torso, o figurante da avenida e da coreografia. O silêncio constrangedor era meu. Da minha tragédia visual. As janelas tentam um script daquela sala, mas, talvez quem começa sou eu. E não termino. Só invento.

 

Giovanna Farkas. Sou estudante de arquitetura e urbanismo, e embora eu faça parte do mundo da escrita desde a infância, nunca assumi isso de fato. Observo e Invento histórias por aí. Noto-me sem a necessidade de ser definida. Mudo de cenas e de palavras. E a minha curiosidade nunca vai embora.
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