As diferentes formas de violência contra a mulher estão presentes de forma intensa na sociedade. Segundo dados do Instituto Avon [1], 54% dos brasileiros afirmam conhecer uma vítima de violência doméstica, e mais de metade dos homens de todas as classes sociais já cometeu algum tipo de agressão – física, psicológica ou sexual – contra uma parceira. Embora seja verdade que qualquer pessoa, independentemente de gênero ou orientação sexual, pode ser vítima de abuso em um relacionamento, as mulheres são, sem sombra de dúvidas, as maiores vítimas de todos os tipos de abuso.

A maior parte dos esforços de pesquisa e conscientização relacionados à violência doméstica costuma ter como foco a questão do abuso físico. Porém, uma pesquisa recente realizada pela Enóis em parceria com os institutos Patrícia Galvão e Vladimir Herzog [2] expandiu seu leque de investigação, incluindo algumas formas de violência menos divulgadas. A pesquisa, realizada com jovens mulheres de 14 a 24 anos, das classes C, D e E, revelou, por exemplo, que 57% delas já tiveram um parceiro que controlava suas amizades e os locais aonde ia; 47% já foram forçadas a ter relações sexuais com o parceiro e 39% já foram pedidas por um parceiro para trocar de roupa antes de saírem de casa. Segundo outra pesquisa do Instituto Avon [3], 40% das jovens entre 16 e 24 anos já tiveram parceiros que tentavam controlá-las, ligando para saber onde, com quem estavam e o que faziam; 30% já tiveram seu e-mail, Facebook ou outra rede social invadida por um parceiro e 51% dessas jovens foram vítimas de algum tipo de comportamento abusivo após o término de um relacionamento. 

A violência contra a mulher – esteja ela na forma de um abuso físico, emocional, digital, financeiro ou sexual – tem como base uma sociedade cujos preceitos patriarcais e misóginos naturalizam (quando não incentivam) essa violência. As mulheres são, desde a infância, expostas a um machismo corrosivo que domina não apenas o espaço público, como também o ambiente doméstico em que são criadas. Os padrões de comportamento feminino e masculino transmitidos nos lares brasileiros perpetuam, por exemplo, a ideia da mulher sexualmente recatada à procura de um parceiro para o casamento e do homem agressivo e viril.

Essa diferenciação faz com que as mulheres sejam tratadas como propriedades pelos homens. Voltando à pesquisa do Instituto Avon [1], vemos que 85% dos homens considera inaceitável que uma mulher fique bêbada; ; 69% que ela saia com amigos(as) sem o marido e 46% que ela use roupas justas ou decotadas. 89% dos homens consideram inaceitável que a mulher não mantenha a casa em ordem. Ou seja: os homens acreditam ter o direito de ditar o que uma mulher – e, mais especificamente, sua parceira – pode ou não fazer.

Além disso, a repressão aos desejos sexuais da mulher faz com que sua recusa de participar de um dado ato sexual seja culturalmente interpretada como parte de seu ritual de sedução: o “não” da mulher seria um “sim” velado pelos bons costumes, e bastaria uma insistência por parte do homem para que ela cedesse aos desejos dele. Essa naturalização, respectivamente, da passividade feminina e da agressividade masculina, acaba por tornar as diferenças entre o ato sexual consentido e a violência sexual difusas para a população.

O fato de crescerem em uma sociedade desigual e de serem o lado mais fraco de uma relação em que há um claro desequilíbrio de poder faz com que muitas mulheres não percebam que estão sendo vítimas de abuso por um parceiro. As mulheres entrevistadas pelo Enóis citam ainda a pressão para ter um companheiro como um problema. Uma delas diz que “A mulher, principalmente na periferia, tem que ter homem, se não ela perde seu valor, é vista como um ser desprotegido. Acho que muitas aceitam relações assim porque não querem ficar sozinhas”.

Estudando toda essa questão mais a fundo, podemos perceber que toda a sociedade ocidental foi fundada tendo como base preceitos misóginos que até hoje permeiam nossa cultura [4]. Na Grécia, no período da Antiguidade, as mulheres tinham uma posição inferior aos homens, a quem cabia educá-las e vigiá-las. O único papel da mulher era dar herdeiros legítimos ao seu marido e, para que essa legitimidade não fosse alvo de dúvidas, era preciso manter a submissão da mulher, garantindo sua fidelidade. Segundo Aristóteles, o homem era o responsável por determinar, regular e dominar o prazer da mulher em uma relação sexual.

As religiões judaico-cristãs têm também um papel central na difusão e perpetuação de uma cultura de submissão e culpabilização da mulher. Desde o princípio, o discurso religioso judaico se centrou na figura do patriarca. Nas famílias, os homens eram provedores e tinham direito de comando, enquanto as mulheres tinham como dever obedecê-los – e essa era a vontade de Deus. O mito do pecado original de início marcou a mulher como a responsável pelo pecado e, portanto, pelas próprias dores e pelo sofrimento de toda a humanidade.

A afirmação de que as mulheres devem ser submissas a seus maridos é repetida diversas vezes na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Mais preocupantes do que as passagens que insistem em colocar a mulher em um lugar de passividade, porém, são aquelas que não apenas naturalizam, como ainda culpabilizam abertamente as mulheres vítimas de violência sexual – “Se uma mulher for estuprada na cidade e não gritar alto o suficiente, ela deve ser apedrejada até a morte” (Deuteronômio 22:23-24) – e que não apenas retiram da figura do agressor qualquer resquício de culpa pelo violência, como dão ao estuprador o direito e dever de ter sua vítima como esposa – “Se um homem encontrar uma moça ainda não comprometida, agarrá-la à força para dormir com ela e forem surpreendidos, o homem que dela abusou dará ao pai da jovem 50 moedas de prata, e ela será sua esposa, uma vez que a deflorou, e não poderá repudiá-la enquanto viver” (Deuteronômio 22:28-29).

Podemos considerar ainda que a ideia do sofrimento como virtude, profundamente entranhada na cultura judaico cristã, tem um efeito negativo sobre as mulheres. Elas devem ser submissas aos homens, ainda quando são vítimas de violência e são elas as culpadas pela violência que sofrem – mas esse sofrimento não deve ser visto com maus olhos. Pelo contrário, deve ser exaltado.

Embora muitas passagens bíblicas mais chocantes, como as citadas acima, não se sustentem hoje e não sejam postas em prática devido à laicidade do Estado, os preceitos bíblicos em geral, assim como os preconceitos históricos contra a mulher, estão na base de nossa cultura e incorporam nosso cotidiano. A visão do homem como chefe da casa; a pressão sobre a mulher para que encontre um companheiro que “cuide” dela; a abordagem da violência doméstica como um assunto privado; a culpabilização das mulheres vítimas de violência; e a ideia da nobreza da mulher forte que aguenta em silêncio seu sofrimento estão presentes de maneira muito forte na sociedade atual.

Como outro grande ator de perpetuação de estereótipos femininos e de naturalização da violência contra as mulheres, podemos citar a mídia. A mulher na mídia é quase sempre hisperssexualizada. Seu corpo é usado como objeto de atração para a venda de produtos e para o ganho de audiência. Ao mesmo tempo, as personagens femininas apresentadas ao público são as que querem casar, fazem coisas consideradas “de mulher” e cuidam de casa. Todas as mulheres ricas são brancas, e as negras costumam ser empregadas.

Os produtos de ficção  da atualidade ainda romantizam constantemente o abuso em relacionamentos e a violência sexual. Novelas e filmes retratam  como algo romântico a perseguição sofrida por mulheres, o sequestro de jovens por seus ex-namorados e o estupro de meninas virgens, drogadas por garotos em festas. Os jornais e revistas também fazem sua parte. Uma matéria publicada por um jornal carioca no primeiro semestre de 2015 sobre uma pesquisa que revelou que 89% das mulheres se sentiam ofendidas ao serem assediadas na rua, por exemplo, era ilustrada por uma mulher de microvestido fazendo poses sensuais para um grupo de pedreiros. Além da imagem problemática, o texto tratava com tom de humor a violência verbal sofrida cotidianamente por milhares de mulheres, chamando os assediadores de galanteadores e indicando que o problema do assédio estava não no homem que assedia, mas na beleza da mulher.

As revistas masculinas, em especial, mostram uma total desconsideração pelo conceito de consentimento sexual. Uma pesquisa [5] que analisou 4 revistas do gênero publicadas em fevereiro de 2012 revelou a naturalização da violência sexual em seu conteúdo: “Não cutuque se ela estiver dormindo ou com sono. Especialmente se tiver câmeras no local” (MEN’S HEALTH, fevereiro de 2012, p. 98) – o que se põe em questão não é o fato de que uma mulher não deve ser abusada, mas sim que esse abuso pode ser registrado e trazer consequências negativas para o homem. A Revista Sexy recomendou aos homens que, diante de uma mulher embriagada, a solução era levar “a gata” para o chuveiro, ensaboar seu corpo inteiro e deitá-la no chão para fazer o “trabalho pesado”  (SEXY, fevereiro de 2012, p. 16, Bloco do Eu Solteiro) – como disse a autora da pesquisa, há uma naturalização de que o homem se aproveite de uma situação em que se propôs a ajudar para fazer sexo com uma mulher fora de seu estado normal. A Revista VIP traz ainda uma piada em que as agressões de um marido bêbado contra sua mulher são justificadas pelo fato de a mulher falar muito (VIP, fevereiro de 2012, p. 12).

Nossa cultura historicamente misógina, junto à desinformação espalhada pela mídia, faz com que o entendimento da sociedade sobre a violência contra a mulher seja prejudicado. A desnaturalização da violência de gênero se mostra e a reeducação da sociedade diante desse tema se mostra, então, como um passo importantíssimo na luta pelo fim da violência doméstica.

Bruna de Lara

[1] INSTITUTO Avon; DATA Popular. Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher. 2013. Disponível em: < http://bit.ly/1KXGxrq > Acesso em: 26 jun. 2015.

[2] ENÓIS; INSTITUTO Patrícia Galvão; INSTITUTO Vladimir Herzog. #meninapodetudo: como o machismo e a violência contra a mulher afetam a vida das jovens das classes C, D e E?. 2015. Disponível em: <http://bit.ly/1FS0ERm>Acesso: 26 jun. 2015.

[3] INSTITUTO Avon. Violência contra a mulher: o jovem está ligado? 2014. Disponível em: <http://bit.ly/1HPWH7n > Acesso em: 26 jun. 2015.

[4] DE LIMA, R. O imaginário judaico-cristão e a submissão das mulheres. Fazendo Gênero 9: diásporas, diversidades, deslocamentos. Santa Catarina, 2010. Disponível em: < http://bit.ly/1BZjwTh> Acesso em: 21 jul. 2015.

[5] MAIA, A; PASTANA, M; SPOSITO, S. A naturalização da violência contra a mulher em revistas voltadas para o público masculino. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais eletrônicos). Florianópolis, 2013. Disponível em: < http://bit.ly/1U9w28T > Acesso em: 21 jul. 2015.

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