A Nova Mulher e a Moral Sexual foi escrito em 1918 por Alexandra Kolontai. A obra critica a “crise sexual” e à própria posição da mulher na sociedade burguesa. Depreende-se pelo título, portanto, que é uma obra que referencia a moral sexual e a nova mulher. Portanto, primeiramente, quem são essas “novas mulheres”?

Kolontai denomina a mulher moderna como “celibatária”, descrevendo-a como “filha do sistema econômico do grande capitalismo”. Ela nasceu “com o ruído infernal das máquinas da usina e da sirene das fábricas”, ela se adapta à realidade econômica e social que a envolve. São mulheres trabalhadoras, acompanhando a massiva ocupação feminina das forças de trabalho da época, que se libertam da submissão e dependência financeira do marido para se submeterem à dependência econômica do capital.

São mulheres que vêem que muitas das “virtudes femininas” que lhes fora ensinadas desde sempre, na dura realidade do chão de fábrica, se tornam “supérfluas, inúteis e prejudiciais” [1]. A mulher celibatária é, portanto, forjada pelas transformações econômicas da época. Kolontai vê esse passo do lar ao trabalho como um passo da individualidade para o coletivo. E é esse sentimento coletivo que agora a mulher trabalhadora dispõe que irá moldar a mulher moderna:

Privada da proteção que até então lhe prestara a família ao passar do aconchego do lar para a batalha da vida e da luta de classes, a mulher não tem outro remédio senão armar-se, fortificar-se, rapidamente, com as forças psicológicas próprias do homem, de seu companheiro, que sempre está em melhores condições para vencer a luta pela vida. Nesta urgência em adaptar-se às novas condições de sua existência, a mulher se apodera e assimila as verdades, propriamente masculinas, frequentemente sem submetê-las a nenhuma crítica, e que, se examinadas mais detalhadamente, são apenas verdades para a classe burguesa. [2]

Junto com a transformação das relações de trabalho vem não apenas a transformação da mulher, mas também uma transformação de valores. A mulher moderna, celibatária e independente, influencia uma série de novos pensamentos. As heroínas na literatura, por exemplo, adquirem novos traços e qualidades inspirados nas mulheres modernas. Vê-se, portanto, além do rompimento de um mundo doméstico para o espaço público, também o rompimento de valores do passado para os do presente. É essa nova mulher que irá inspirar novas visões de mundo.

 

A crise sexual

 

Kolontai parte de uma análise da obra de Grete Meisel-Hess, feminista austríaca e autora de, entre outras obras, “The Sexual Crisis: a critique of our sex life”:

Depois de submeter a uma análise sistemática as três formas fundamentais da união entre os sexos, o matrimônio legal, a livre união e a prostituição, Meisel-Hess chega a uma conclusão pessimista, porém inevitável, de que no mundo capitalista todas essas formas, tanto umas como outras, marcam e deformam a lama humana e contribuem para a perda de qualquer esperança de se conseguir uma felicidade sólida e duradoura, numa comunidade de almas profundamente humanas: no estado invariável e estagnado da psicologia contemporânea, não há solução possível para a crise sexual” [5]

 

É importante salientar que, como mencionado anteriormente, esta é uma obra de 1918 e possui um nítido caráter memorial histórico, na medida em que esboça a realidade do período na qual foi produzida, em todas a suas nuances.

Se é certo que hoje o divórcio é possível, naquela época tentava-se ainda argumentar a favor da possibilidade de dissolução do casamento. A crítica da obra à proibição do divórcio voltava-se a algo simples como a impossibilidade de se mudar de ideia durante a vida, mas também a como o relacionamento era muitas vezes uma prisão. “A delicada flor da moral sexual é uma felicidade adquirida à custa da escravidão da mulher à sociedade”, diz, “uma leal separação do casal é considerada pela atual sociedade, interessada unicamente na ideia da propriedade e não nos destinos da espécie, nem sequer na felicidade individual, como a ofensa maior que se lhe pode infligir”. [6]

Kolontai via que a indissolubilidade do casamento era fundado tanto no conceito de propriedade quanto na posse de um cônjuge pelo outro:  “a ideia da posse não deixa livre o eu, não há momento de solidão para a própria vontade e, se a isto se acrescenta a dependência econômica, já não fica nem sequer um pequeno recanto próprio” [8]. A liberdade, portanto, era o objetivo a ser perseguido nas relações amorosas.

No entanto, existem muitos obstáculos a serem transpostos. Para Kolontai, seria necessária uma transformação radical na psicologia humana, particularmente na ideia “do direito de propriedade de um ser sobre o outro e o preconceito secular da desigualdade entre os sexos em todas as esferas da vida” [9]. Esse direito de propriedade se refere, principalmente, à própria dominação que o homem exerce sobre a mulher no matrimônio:

A ideia da propriedade inviolável do esposo foi cultivada com todo esmero pelo código da classe burguesa, com sua família individualista encerrada em si mesma, construída totalmente sobre as bases da propriedade privada. A burguesia conseguiu com perfeição inocular essa ideia na psicologia humana. O conceito de propriedade dentro do matrimônio vai hoje em dia muito além do que ia o conceito da propriedade nas relações sexuais do código aristocrático. No curso do longo período histórico que transcorreu sobre o signo do princípio de casta, a ideia da posse da mulher pelo marido não se estendia além da posse física, mas sua personalidade lhe pertencia completamente. [10]

Para Kolontai, a crise sexual, ou seja, as tensões em torno das relações entre homens e mulheres, devem ser superadas juntamente com os outros problemas enfrentados pela classe proletária. Não é, portanto, um problema que deve ser relegado “ao arquivo das questões puramente privadas” [10]. É uma questão coletiva, e que deve ser de preocupação coletiva, portanto. Assim, apenas uma transformação fundamental das relações econômico-sociais, ou seja, o estabelecimento do comunismo, tornaria possível a transformação da relação entre os sexos.

 

O amor-camaradagem

 

“É chegado o momento de reconhecer abertamente que o amor não é somente um poderoso fator da natureza, não é apenas uma força biológica, mas também um fator social” [11], afirma Kolontai. Isso quer dizer que o amor tem diz respeito à toda a coletividade. Afinal, é a sociedade que determina que formas de amor são consideradas legítimas e quais serão proibidas e rechaçadas. É a sociedade que irá definir se sua forma de amar gerará culpa ou satisfação.

Durante o feudalismo, o amor era posto como algo praticamente inacessível. Kolontai refere-se a este tipo de amor como “amor espiritual”, exemplificado pelo objeto de adoração dos cavaleiros: uma dama em uma posição inacessível, nunca as moças solteiras à sua volta. No amor espiritual, a busca pelo amor, o fator psicológico envolvido nessa caçada, era o que se tinha como definição do amor, um amor platônico, completamente dissociado do sexo. Amor e matrimônio também não possuíam correlação alguma. As uniões em casamento eram feitas de acordo com os interesses patrimoniais da família. É a burguesia que traz a “de novo ao amor a fusão do corpo e do espírito” [12].

É a burguesia também que vai fundir a ideia do amor ao do matrimônio, e a filosofia da época irá acompanhar essa grande mudança de paradigma. A família burguesa se baseava na acumulação do capital e, portanto, a família seria a guardiã dessas riquezas. O ideal de família formada por laços de amor era importante para solidificar essa estrutura. O destaque ao matrimônio seguia esse sentido:  o casamento unia o patrimônio do casal, impedia que o capital acumulado pudesse ser disperso em filhos nascidos fora daquela união e possibilitava uma linhagem delimitada para a herança. [13]

“A experiência da história ensina que a ideologia de um grupo social e, consequentemente, a moral sexual se elaboram durante o próprio processo de luta contra as forças sociais que se opõe” [14], afirma Kolontai. Dessa forma, qual seria o ideal de amor que a classe trabalhadora deveria aspirar?

Kolontai acredita que o amor deve fundar a base de todas as relações humanas e que a base social que coloca a mulher como inferior ao homem, o casamento como uma prisão às mulheres, devem ser abolidos. Segundo ela, dois princípios são fundamentais para substituir os conceitos tradicionais de desigualdade e subordinação entre os sexos: a solidariedade e a camaradagem. Explica:

Mas o que é a solidariedade? Não somente devemos entender por solidariedade a consciência da comunidade de interesses; constituem a solidariedade, também, os laços sentimentais e espirituais estabelecidos entre os membros da mesma coletividade trabalhadora. O regime social edificado sobre o princípio da solidariedade e da colaboração exige que a sociedade em questão possua, desenvolvida em alto grau, a capacidade potencial de amor, isto é, a capacidade para a sensação de empatia.

Se estas sensações faltam, o sentimento de camaradagem não se pode consolidar. Por isso, a ideologia proletária procura educar e reforçar em cada um dos membros da classe operária sentimentos de simpatia diante dos sofrimentos, das necessidades de seus camaradas de classe. A ideologia proletária tende, também, a compreender as aspirações dos demais e desenvolver a consciência de sua união com os outros membros da coletividade. Mas todas essas sensações de simpatia, delicadeza e sensibilidade derivam de uma fonte comum: a capacidade para amar, não de amar no sentido propriamente sexual, mas do amor no sentido mais amplo da palavra. [15]

A burguesia entendeu a importância do amor, por isso tratou de subjugá-la a seus interesses. Não obstante, o amor segundo a ideologia burguesa está diretamente associado ao instinto da propriedade, ou seja, à posse, a ideia de que um sujeito tem o direito a possuir inteiramente o outro. Se esta é a moral burguesa, certamente em outro sentido corresponderá os interesses da classe proletária:

Muito mais importante e desejável é que, do ponto de vista da ideologia proletária, as sensações dos homens se enriqueçam cada vez com maior conteúdo e se tornem múltiplas. A multiplicidade da alma constitui precisamente um fato que facilita o desenvolvimento e a educação dos laços do coração e do espírito, mediante os quais se consolidará a coletividade trabalhadora. Quais mais numerosos são os fios que se estendem entre as almas, entre os corações e as inteligências, mais solidez adquire o espírito de solidariedade e com maior facilidade pode realizar-se o ideal da classe operária: camaradagem e união. [16]

Kolontai, portanto, passa a se referir ao amor em seus múltiplos aspectos. São amores de amizade, são amores unidos por uma causa, mas são também amores românticos que podem ser múltiplos. Isso significa também que podemos pensar na complexidade desses sentimentos, quando, por exemplo, quando se ama diferentes pessoas:

O exclusivismo e a absorção no sentimento de amor não podem constituir, do ponto de vista da ideologia proletária, o ideal do amor determinante nas relações entre os sexos. Ao contrário, o proletariado, ao tomar conhecimento da multiplicidade do amor, não se assusta absolutamente com esta descoberta, nem tampouco experimenta indignação moral como aparenta a hipocrisia burguesa. O proletariado trata, ao contrário, de dar a este fenômeno (que é o resultado de complicadas causas oficiais) uma direção que sirva a seus fins de classe, no momento da luta e da edificação da sociedade comunista. [17]

O ideal de amor na classe proletária, o amor-camaradagem, baseado no espírito de solidariedade e união, é um amor entre indivíduos, entre amantes, entre amigos, mas também entre a coletividade. Ele substitui o amor possessivo da moral burguesa, bem como seu individualismo, e estabelece ao amor os direitos recíprocos, o respeito, o apoio mútuo. Porque, segundo Kolontai, “a ideologia da classe operária não pode fixar limites formais ao amor”. [18]

 

A nova mulher e a moral sexual

 

 

Notas

[1] Pg. 16-17.

[2] Pg. 17.

[3] Pg. 26.

[4] Pg. 27.

[5] Pg. 28.

[6] Pg. 29.

[7] Pg. 28.

[8] Pg. 30.

[9] Pg. 50.

[10] Pgs. 50-51.

[11] Pg. 107.

[12] 115.

[13] No entanto, é claro que a própria burguesia ia contra a própria moral e haviam casamentos por conveniência, desde que as aparências fossem mantidas. Também saía constantemente dos laços matrimoniais impostos.

[14] Pg. 61

[15] Pg. 121

[16] Pg. 126

[17] 127

[18] 128

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