A primeira edição de Gênero: uma perspectiva global publicada no Brasil é resultado da tradução da terceira edição do livro, publicada em inglês em 2014. Raewyn Connell lançou a primeira versão do texto em 2002, a qual foi ampliada e revisada nas edições seguintes. Nesta mais recente, recebeu a colaboração de Rebecca Pearse e o acréscimo de um capítulo sobre ecofeminismo, justiça ambiental e sustentabilidade, além de atualizações das teorias e pesquisas citadas. O livro analisa o impacto da ordem de gênero, do âmbito pessoal ao global, a partir da discussão de pesquisas e teorias sobre gênero, com ênfase na política.

Raewyn Connell é uma socióloga transexual australiana, consagrada internacionalmente por suas pesquisas e teorizações nos campos de gênero e sexualidades, especialmente por seus estudos sobre masculinidades. Professora emérita da Universidade de Sydney, trabalhou em universidades da Austrália e dos Estados Unidos. Rebecca Pearse é pesquisadora associada na Universidade de Sydney, onde tem estudado as dinâmicas globais da produção de conhecimento nos campos de pesquisa sobre mudanças climáticas, HIV/AIDS e relações de gênero.

O primeiro capítulo de Gênero: uma perspectiva global descreve desigualdades e diferenciações entre mulheres e homens, por meio de exemplos cotidianos, nos diversos âmbitos, como política, família e trabalho. As autoras ressaltam que essas distinções formam padrões e são parte de arranjos mais gerais do gênero, que nomeiam “ordem de gênero”. Connel e Pearse definem gênero como “a estrutura de relações sociais que se centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos para o seio dos processos sociais” (Raewyn CONNELL; Rebecca PEARSE, 2015, p. 48).

No capítulo 2, as autoras discutem cinco exemplos de pesquisas, de diferentes lugares do mundo, para mostrar como questões mais amplas de gênero são abordadas em investigações específicas. Para as autoras, esses estudos revelam a diversidade das dinâmicas de gênero, sua complexidade e poder. Gênero refere-se, portanto, a relações, práticas e identidades ativamente criadas e negociadas em processos sociais, frequentemente contraditórias, historicamente situadas, limitadas por forças econômicas e políticas e sujeitas a mudanças e lutas. O capítulo ilustra também o jogo constante entre gênero e sexualidade, os amplos sentidos culturais do gênero e como conformam a experiência individual.

O terceiro capítulo aborda a relação entre corpo e sociedade, refutando concepções da diferença natural como base para padrões sociais de gênero. Connell e Pearse chamam de corporificação social o processo histórico no qual “as práticas em que corpos são envolvidos formam estruturas sociais e trajetórias pessoais, o que, por sua vez, fornece condições para novas práticas nas quais os corpos são envolvidos” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 112). Gênero é uma forma específica de corporificação social que se refere a estruturas corporais e processos ligados à reprodução humana. Mas essa não é uma concepção essencialista, pois as autoras enfatizam que a reprodução sexual não causa as práticas de gênero, nem mesmo fornece modelos para elas. A arena reprodutiva está constantemente sendo reformulada por lutas sociais e não engloba tudo o que o gênero significa. Em referência às teorias que enfatizam a fluidez do gênero, as autoras apontam que corpos têm uma realidade irredutível, não se transformam em signos ou posições de discurso. Corpos têm agência e, ao mesmo tempo, são construídos socialmente.

No capítulo 4, as autoras discutem a construção das teorias de gênero. Connell e Pearse assinalam o impacto dos movimentos feminista e gay das décadas de 1960 e 1970, tanto no campo das práticas sociais quanto na produção de conhecimento sobre gênero. As pesquisadoras não constroem uma história eurocêntrica, linear, seguindo a tradicional categorização do feminismo por ondas. Fazem uma contextualização que valoriza a produção teórica de várias partes do mundo. Como exemplo dessa perspectiva, apresentam como um grande avanço teórico do feminismo o livro de Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes (1976), publicado pela primeira vez em 1969. Analisando a construção da categoria gênero, as autoras argumentam que grande parte da teoria na metrópole se tornou contemplativa ou se focou inteiramente na subversão cultural, lidando com sexualidade, identidade, representação, linguagem e diferença. Afirmam que as referências para esse tipo de teorização foram desenvolvimentos intelectuais de homens, como Foucault, Derrida, Deleuze, que não se preocupavam com gênero. Tratam ainda do reexame das categorias fundantes do feminismo, em especial, pela abordagem mais influente, a teoria queer, que enfatiza a fragilidade das categorias identitárias e a fluidez do gênero. As autoras apontam uma reação contra o foco nas identidades e na cultura dessas perspectivas por outras que lidam com questões mais materiais (como pobreza, AIDS, violência) que têm sido preocupações do feminismo do Sul Global. Nesse sentido, considero que uma das maiores contribuições das autoras é enfatizar a dimensão material e estrutural do gênero, diferentemente de abordagens que priorizam o discursivo.

O quinto capítulo apresenta o gênero como estrutura social, explorando suas diferentes dimensões e os processos de mudanças históricas. As autoras definem a “ordem de gênero” de uma sociedade como sendo os padrões maiores, nos quais se inserem os regimes de gênero, ou seja, os padrões nos arranjos de gênero de uma instituição e que formatam as práticas de gênero. Para tanto, construíram um modelo para mapear a estrutura das relações de gênero, dividindo-a em quatro dimensões: poder, produção, vínculos emocionais e simbolismo, sublinhando que essas dimensões são ferramentas analíticas e não instituições separadas. Na “vida real”, as diferentes dimensões do gênero se entrelaçam e se condicionam umas às outras. Além disso, as estruturas de gênero estão entrelaçadas com outras estruturas sociais e é dessas interações que emergem muitas das forças de transformação. Pressões externas, como novas tecnologias ou a vida urbana, podem alterar padrões de gênero, mas as relações de gênero também têm tendências de transformação, ou seja, contradições internas em suas dimensões, que minam os padrões correntes e forçam mudanças na estrutura. As pesquisadoras analisam os movimentos que atuam na política de gênero, seja para mudar a ordem de gênero ou para resistir a alterações.

O sexto capítulo discute o gênero na vida pessoal e as políticas da identidade. Tratando da aquisição do gênero, as autoras assinalam que as pessoas aprendem a adotar certa identidade de gênero, ou a se distanciar dela, ou seja, como “fazer o gênero” e lidar com as ordens de gênero. Assim, as/os aprendizes são ativas/os. Connell e Pearse afirmam que com a proeminência das teorias performativas houve aumento do interesse nas variações de gênero e nas violações das normas. Nesse contexto, apontam o surgimento do movimento transgênero, influenciado pela teoria queer, focado na dimensão simbólica e procurando quebrar ou confundir as categorias de gênero. A este, as estudiosas contrapõem os projetos de transição entre posições na ordem de gênero de transexuais. Enquanto as histórias de transgêneras/os enfatizam, em geral, a fluidez do gênero, as trajetórias de transexuais destacam, sobretudo, a estabilidade do gênero, pois suas vidas são marcadas por contradições pessoais e enfrentamentos sociais. As autoras argumentam que o projeto de gênero é consistente ao longo do tempo, mesmo quando destoa da corporificação social convencional, como no caso de transexuais: “o gênero é intransigente, tanto como uma estrutura da sociedade quanto uma estrutura da vida pessoal” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 216). As pesquisadoras defendem que as experiências da vida “real” de mulheres e homens transexuais acabam por ser apagadas pela teoria queer, pois a transexualidade é melhor compreendida não como uma posição discursiva, mas como um conjunto de trajetórias perpassadas por contradições na “corporificação social”. Connell e Pearse enfatizam que as experiências de transexuais demonstram as possibilidades de mudanças nos processos tradicionais de corporificação social do gênero e enriquecem o projeto de justiça de gênero do feminismo.

O capítulo 7 trata da relação entre o gênero e as mudanças ambientais que, segundo as autoras, não têm precedentes, o que se expressa na destruição de recursos naturais em uma proporção insustentável. Os impactos da mudança ambiental são altamente desiguais e intensamente generificados, pois as mulheres representam maior número entre aquelas/es que vivem na pobreza e exercem o papel social de cuidadoras e provedoras de alimentos, além de seu trabalho na produção agrícola. Connell e Pearse apresentam o ecofeminismo como uma variedade de perspectivas sobre gênero e meio ambiente que têm em comum a concepção de que há conexões importantes entre como se tratam mulheres, pessoas de cor e as classes subalternas, de um lado, e como se trata o ambiente natural e não humano, de outro. Feministas ambientalistas do Sul Global, em especial, preocupadas com o mau desenvolvimento e com o colonialismo, revelaram conexões entre gênero, capitalismo e imperialismo na geração de problemas ambientais. Ao fazerem isso, estão desafiando estruturas de gênero em múltiplos aspectos. As autoras afirmam que há um gerenciamento masculinizado dos problemas ambientais. Contudo, os agentes de desenvolvimento têm feito algum progresso rumo a políticas ambientais sensíveis ao gênero.

O último capítulo discute as relações de gênero na sociedade global contemporânea, bem como os movimentos que buscam transformações nesse campo. Para tanto, analisa empresas, Estados e a economia global, explicando política de gênero em larga escala. Para Connell e Pearse, empresas são instituições generificadas. Afirmam que a maioria dos administradores públicos são homens e a maior parte dos Estados depende de empresas multinacionais que operam em um ambiente econômico dominado por homens ricos e poderosos. Mas, em vários lugares do mundo, as mulheres se tornaram líderes notórias de empresas, na política e chefes de governo. Apontam que, a partir da década de 1990, o gender mainstreaming (tornar o gênero uma questão dominante) tornou-se uma estratégia influente sobre as políticas públicas, graças, em grande parte, à mobilização feminista. De acordo com as autoras, há uma ordem de gênero mundial emergindo, que se expressa, por exemplo, na dimensão internacional do gênero na pandemia de HIV/AIDS. Ao mesmo tempo, há uma mobilização global em torno dos interesses das mulheres. O imperialismo e a globalização colocaram sociedades muito diversas, e suas ordens de gênero, em contato umas com as outras. Instituições de âmbito mundial criam, assim, novas arenas para a formação das dinâmicas de gênero.

Connell e Pearse ressaltam que o gênero é inerentemente político, pois seus arranjos são fontes de prazer, de reconhecimento e de identidade, mas, ao mesmo tempo, de injustiça e danos. Uma característica atraente da política queer é demonstrar os prazeres de atuar o gênero, na inventividade erótica, em corporificações alternativas. Por outro lado, há o que as autoras chamam de “vertigem de gênero” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 272), ou seja, momentos em que a integridade de um projeto de gênero é perdida e que podem ser extremamente estressantes. As autoras afirmam que o gênero não implica necessariamente desigualdade, o que demonstra a existência de ordens de gênero diversas. Aqui se encontra um diferencial das autoras que, diversamente de muitas feministas – como Monique Wittig (2006) que propõe uma sociedade sem sexos – se posicionam contrariamente a um projeto de desgenerificação para o feminismo. Dessa forma, propõem não abolir o gênero, mas democratizá-lo. Essa estratégia tem a vantagem de preservar a parte boa do gênero – os prazeres, as riquezas culturais, as identidades – que as pessoas valorizam. Para alcançar a democratização da ordem de gênero, Connell e Pearse sugerem que é preciso buscar a igualdade de participação, poder, recursos e respeito. Elas afirmam que a solução para a democratização virá das teorizações sobre gênero do Sul Global, ou, como dizem, do “mundo da maioria” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 285), e dos movimentos sociais dos quais tratam.

Essa sugestão expressa um dos pontos fortes do livro: a democratização também das teorias de gênero, pois as autoras valorizam a produção teórica dos países periféricos. Democrática ainda é sua proposta política, pois sugerem transformações duplamente realistas, no sentido de serem viáveis e por considerarem a realidade concreta da maioria de pessoas que não desejam, ou talvez não consigam, realizar grandes subversões da ordem de gênero. Em parte, o livro objetiva ser um facilitador para aquelas/es que iniciam os estudos de gênero. Oferece diversos exemplos que refletem o cotidiano das pessoas e apresenta muitas pesquisas que trabalham com o conceito de gênero, sintetizando o pensamento de uma ampla área do conhecimento. A escrita das autoras é acessível, mas mantém a sofisticação teórica. Dessa forma, é útil como introdução aos estudos de gênero e também para quem já pesquisa o tema, oferecendo uma abordagem integrada que conecta uma variedade de tópicos, do campo pessoal ao global. O livro tem o potencial de disseminar uma compreensão abrangente sobre as relações de gênero, contribuindo, assim, para a democratização dessas relações.

REFERÊNCIAS

CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Tradução da 3.ed e revisão técnica de Marília Moschkovich. São Paulo: nVersos, 2015. [ Links ]

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. [ Links ]

WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayosMadrid: Egales, 2006. [ Links ]

 

*Resenha originalmente publicada na Revista de Estudos Feministas.

Adélia de Souza Procópio é doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Estudos de Gênero. É mestra em Sociologia e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás. Tem formação e atuação no campo dos estudos de gênero, feminismo e sexualidades. Foi servidora pública federal, ocupando o cargo de Analista Técnica de Políticas Sociais, na Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e também o cargo de socióloga, no Ministério do Esporte, onde trabalhou com pesquisas, monitoramento e avaliação de políticas públicas em esporte e lazer e participação social.

 

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