Ilustração por Raquel Thomé.

*Texto originalmente publicado no site Faladelas.

Em um país onde o aborto é criminalizado, quando o tema é saúde da mulher esse é em grande partes das vezes o assunto em pauta. A criminalização do aborto tem dois efeitos nefastos à saúde da mulher. Primeiro, em um aspecto individual, a lesão ao direito à liberdade da mulher, que é obrigada a levar a gestação, sem se ter em conta os transtornos psicológicos que isso lhe causa. Segundo, a interrupção da gravidez é um fato social e também uma questão de saúde pública.

É indiscutível que a existência da legislação repressiva à prática do aborto não impede a realização destes, mas deixa-os serem realizados na clandestinidade. É, portanto, uma norma ineficaz porque não evita que o aborto seja cometido. Segundo Dworkin:

Não podemos esquecer jamais que, antes de Roe vs. Wade (1), ocorriam muitos abortos nos estados em que o aborto era proibido. Esses abortos eram ilegais e muitos eram extremamente perigosos. Quando a mulher desesperada para fazer um aborto transgride o direito penal, pode pôr em risco sua própria vida. Por outro lado, se a mulher não transgride a lei, pode ter sua vida destruída e perder todo o respeito por si mesma (2).

A ilegalidade do aborto tem um efeito amplamente negativo à saúde da mulher, sobretudo as mais pobres, que se submetem a procedimentos clandestinos, com especialistas de profissionalismo duvidoso, em condições precárias de higiene, podendo ocasionar graves riscos à sua saúde e até mesmo à sua vida. Essa questão não pode ser ignorada pelo Poder Público, mas, no entanto, é.

Peter Singer afirma, na sua obra “Ética Prática”, que:

Em geral, as mulheres que pretendem abortar estão desesperadas e procurarão um abortador de fundo de quintal ou usarão remédios populares. O aborto feito por um médico qualificado é uma operação tão segura quanto qualquer outra, mas as tentativas de procurar fazer aborto com profissionais desqualificados geralmente resulta em graves complicações médicas e, às vezes, até mesmo na morte. Portanto, o resultado da proibição do aborto não é tanto a redução dos abortos realizados, mas, sim, o aumento das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada.(…)É um erro pressupor que a legislação deve sempre reforçar a moralidade. Pode acontecer que, como se alega no caso do aborto, as tentativas de reforçar a conduta levem a conseqüências não desejadas por ninguém e não produzam um decréscimos de erros (grifos nossos).

O “Painel Temático: Saúde da Mulher”, elaborado pelo Ministério da Saúde, analisando a quantidade de procedimentos médicos de cuidado contra alguma complicação resultada de um aborto, concluiu que: a) 686 mulheres são internadas pelo SUS a cada dia, em decorrência de complicações relacionadas ao aborto (é a terceira maior causa de internação feminina!); b) Os abortos contribuem com 15% da mortalidade materna; c) ocorreram cerca de um milhão de abortos no Brasil, em 2005 (3). Em 2013, esse número pode ser ainda maior, segundo a Organização Pan-americana de Saúde (4). Ainda, segundo os dados do Ministério da Saúde, “em 2005, ocorreram 1.619 mortes de mulheres por causas ligadas a gravidez, parto, puerpério e aborto. Essas mortes, em sua quase totalidade, são evitáveis” (5). Em dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde, estima-se que 1 mulher morre a cada 2 dias devido a abortos inseguros no Brasil (6). Em 2013, “foram realizadas 190.282 curetagens (método de retirada de placenta ou de endométrio do corpo), a grande maioria de quem quis interromper a gravidez” (7).

Além disso, “há uma verdadeira indústria do aborto ilegal sustentada na base desta proibição estatal. Calcula-se que os custos para um abortamento clandestino girem em torno de R$ 1.500 a R$ 3.500” (8). Estes valores implicam, obviamente, na exclusão da absoluta maioria da população feminina brasileira, que se vê forçada a recorrer a métodos muito mais precários, que vão da ingestão de substâncias venenosas até a introdução de objetos cortantes no útero. Esse fato foi mencionado no estudo realizado pelo Ministério da Saúde, ao afirmar que “a prática do aborto inseguro evidencia diferenças socioeconômicas, culturais, étnico-raciais e regionais: mulheres com mais recursos econômicos realizam aborto com mais segurança, em melhores condições de higiene” (9).

Ademais, com relação à saúde da mulher, no caso Roe vs. Wade, no qual a Suprema Corte americana decidiu pelo direito à interrupção da gravidez foi exposto um estudo que apontava que: a) o aborto era mais seguro que dar à luz uma criança; b) a legalização do aborto não aumentava o número de abortos, mas somente substituía os abortos ilegais e inseguros por abortos legais e seguros; c) clínicas de aborto são tão seguras quanto hospitais; d) a maior parte das mulheres que não conseguem realizar o aborto, não o fazem por causa de suas condições financeiras. Aliás, essa não é uma realidade somente dos Estados Unidos. O Comitê da Organização das Nações Unidas pela Eliminação da Discriminação da Mulher mostra que, conforme já afirmado, a tipificação do aborto como delito ou crime não reduz sua incidência. Ao contrário, isso tem contribuído para aumentar a prática em situação de risco, com impactos graves para a saúde e a vida das mulheres.

Também não podemos ignorar o impacto que uma gravidez indesejada tem na saúde psicológica da mulher. De acordo com Ana Noya e Isabel Pereira Leal:

Para algumas mulheres, a gravidez é um estado altamente desejado, que contém gratificações, como por exemplo, a promessa de um filho para criar e educar, uma identificação positiva com a sua mãe ou ainda a construção da sua própria família. No entanto, para outras mulheres, ou ainda para as mesmas, mas num outro “timing”, a gravidez pode ser vista como algo extremamente penoso. Pode ser experienciada como uma invasão do corpo, ou pode trazer à tona conflitos e sentimentos relativos a uma mãe desvalorizada e odiada. A gravidez surge muitas vezes como resposta inconsciente a perdas ou a situações estressantes (10).

Por isso, a interrupção da gravidez significa, para muitas mulheres, uma solução. Estudos psicológicos recentes mostram que, ao contrário do que se pensava, a interrupção voluntária da gravidez pode se tornar em experiência de crescimento, que traz consigo sentimentos tais como o alívio e o bem-estar (11). Os estudos revelam, também, que a reação ao aborto é diferente em cada mulher, principalmente considerando a religião que adotam, se são casadas ou se têm apoio familiar. No entanto, “a maior parte dos estudos levados a cabo nos últimos 20 anos evidencia o fato de que o aborto por si só não é indutor de distúrbios psicológicos graves, na mulher que o pratica” (12):

Adler et al. (1990) fizeram a mais recente revisão na literatura científica no que diz respeito às respostas emocionais que se seguem a uma i.v.g. Os resultados permitiram concluir que a maior parte das mulheres que optava por abortar, apresentava uma maior intensidade de emoções positivas. O alívio e bem-estar, aparecem como os sentimentos predominantes após o aborto. Contudo, uma minoria de mulheres, aproximadamente um terço, apresentava emoções negativas tais como culpa, tristeza, mágoa e angústia.

A partir destes dados pode inferir-se que não há uma relação de causalidade entre i.v.g. e consequências psicológicas negativas. Analisar as respostas pós-aborto implica uma árdua e holística reflexão acerca do fenômeno em causa, na medida em que é uma questão que se dispersa pelos múltiplos níveis da pessoa, nomeadamente o sócio-cultural e esferas políticas, que parecem ter um impacto na resposta do individual. Significa, no fundo, olhar para a i.v.g. de forma mais aberta e ampla e ter em conta toda uma complexidade de dimensões, que resultam, de certo modo, da qualidade de ser um fenômeno indissociável da realidade pessoal.

Nesse sentido, uma norma que proíbe o aborto somente causa efeitos indesejáveis à saúde psicológica da mulher: obriga que mulheres levem adiante uma gravidez indesejada e, assim, cause efeitos psicológicos negativos, bem como impede que mulheres que precisem de tratamento psicológico sejam devidamente amparadas pelo Estado.

Portanto, percebemos que a lei repressiva ao aborto é completamente ineficaz. A legislação brasileira, tal como é hoje, além de não salvar a vida dos fetos, põe em sério risco a vida da gestante. Nesse cenário, e levando em consideração o medo político de defender o aborto como questão de saúde pública, a mulher brasileira está correndo riscos desnecessários.

 

Bruna Rangel

 

¹ Caso judicial pelo qual a Suprema Corte americana reconheceu o direito ao aborto naquele país.
² DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (Pg. 159).
³ Painel Temático: Saúde da Mulher. Disponível em: <http://www.fiocruz.br/redeblh/media/painelmulher.pdf>. Acesso em 25.11. 2013.
⁴ http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/09/850-mil-mulheres-realizam-aborto-brasil-por-ano.html
⁵ Painel Temático: Saúda da Mulher.
⁶ Clandestinas: retratos do Brasil de 1 milhão de abortos clandestinos por ano. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-20/clandestinas-retratos-do-brasil-de-1-milhao-de-abortos-clandestinos-por-ano.html. Acesso em: 5.12.2013.
⁷ http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/09/850-mil-mulheres-realizam-aborto-brasil-por-ano.html
⁸ PEIXOTO, Francisco Davi Fernandes. A Ineficácia Jurídica e Econômica da Criminalização do Aborto. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/francisco_davi_fernandes_peixoto2.pdf> Acesso em: 25.11.2013.
⁹ Painel Temático: Saúde da Mulher.
¹⁰ NOYA, Ana; LEAL, Isabel Pereira. Interrupção Voluntária da Gravidez: que respostas emocionais? Que discurso psicológico? Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aps/v16n3/v16n3a09.pdf>. Acesso em 25.11.2013.
¹¹ NOYA; LEAL.
¹² NOYA; LEAL.
¹³ Interrupção voluntária da gravidez.
¹⁴ NOYA, LEAL.

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