Crédito dos fotógrafos: Claudia Melo e Fabio Marujo

 

Rosana Paulino é artista visual, pesquisadora e educadora, segundo sua própria descrição de si. Uma mulher negra e de origem periférica, doutora pela USP, com mais de vinte anos de carreira como artista plástica, além de militar pelas causas que permeiam suas obras de arte. Rosana bebe da história para compor suas obras, mostrando a relação direta entre nosso passado escravocrata e a condição marginalizada da população negra no Brasil atual, em especial da mulher negra. Suas obras de arte partem da fina estética e chegam até a mente como um soco no estomago, proporcionado pela angustiante realidade designada a população negra, que até hoje é a grande maioria nas periferias do Brasil.

Ainda no primeiro semestre de 2019, uma exposição com objetivo de apresentar ampla retrospectiva de sua carreira ocupou parte das salas expositivas da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Confesso, foi meu primeiro contato com sua obra e sai da pinacoteca deslumbrada. Aliviada em observar o trabalho de uma artista tão contestadora ocupando os salões de destaque de uma instituição tradicional como a Pinacoteca paulista, principalmente, em tempos de censura descarada, como os que estamos vivemos.

A obra Atlântico Vermelho (2016) exemplifica boa parte dos temas trabalhados pela artista, entre costuras e impressões, Rosana nos leva a um Brasil ainda escravista, que tem como principal característica de seu estrato social mais populoso o trabalho cativo. A linha em vermelho conecta imagens para que possamos entender o Brasil escravista. O tráfico nas caravelas, o comércio de seres humanos que mesmo proibido por potências marítimas como Inglaterra, foi praticado no Brasil até a Lei de Abolição de 1888. A estampa de azulejo português lembra qual foi o país colonizador. A imagem de ossos humanos nos remete a eugenia, teoria que tentava apontar os escravizados como inferiores aos europeus caucasianos, essa pseudociência foi usada para legitimar a escravidão, além das políticas racistas (EUA) e higienistas (BRASIL) no período posterior à abolição. Atlântico vermelho expõem, esteticamente, a necessidade contemporânea por uma revisão de nossa história.

Atlântico Vermelho

(Atlântico Vermelhor. 2016. Imagem: Wikipédia)

 

Em Bastidores (1997), o bordado no tecido que alude à uma espécie de rasura, remete ao espectador a voz, a visão e o pensamento de mulheres negras historicamente podadas. Um silenciamento manifestado pelo gênero, classe social e cor da pele. O bordado e a costura para compor a forma física desta obra de arte não consistem em escolhas aleatórias da artista. A costura, quando pensada como fonte de renda em uma periferia, associa-se quase imediatamente ao gênero feminino.

 

Bastidores

(Bastidores, 1997. Imagem: Wikipédia)

 

Parede da Memória (2015) transmite de forma fascinante o quanto dramas pessoais podem ser também coletivos, a individualidade que dá lugar ao anonimato. Uma memória ancestral que não existe, um conhecimento sobre sua própria história que dificilmente ultrapassa algumas gerações e que, na maioria das vezes, não é permitido ao indivíduo nem mesmo saber de qual etnia ou ordem social seus ancestrais fizeram parte, já que ainda hoje lidamos com “uma África” e não com as diversas Áfricas.

Em História Natural (2016), a sobreposição de imagens impressas e a escolha minuciosa da artista por uma imagem cabível, revela não apenas uma ferida ainda aberta, propositalmente esquecida e negada por muitos grupos sociais, já que o caderno expõem também o pensamento eugenista como páginas da história ocidental que devem ser postas às claras. A obra nos faz sentir a necessidade de revelar a criação de uma pseudociência para legitimar as estruturas racistas presentes na maioria dos países que foram escravistas e a legitimação da escravidão, enquanto se fazia vigente.

 

História Natural

(História Natural, 2016. Imagem: Wikipédia)

 

Impossível não entender a obra de Rosana Paulino como a exposição legitima da necessidade do revisionismo de nossa história. Para além do que é pesquisado academicamente sobre racismo, eugenia e escravidão, se escondem ainda hoje, atrás do mito da democracia racial, a necessidade de entender toda essa estrutura Iniciada com a formação do estado brasileiro e perpetuada ao longo da história brasileira como uma opção. Essas escolhas vêm das estruturas de poder, formadas pela elite, e que até hoje são mantidas por essas mesmas elites, por preferência, consistindo em uma escolha que se faz nítida.

Para além da história do país, Rosana Paulino denuncia a condição social da população negra no Brasil contemporâneo, como as vozes ainda são caladas, como a memória permanece apagada, como pressupostos “naturais” de teor racista se fazem presentes no imaginário do judiciário brasileiro, olhemos todos para a cor da pele da maioria da população encarcerada. É possível afirmar que o sangue da população negra não pintou somente o atlântico de vermelho no passado, ele continua sendo derramado pelas periferias do país no presente.

Referências:

Dicionário da Escravidão e Liberdade. Org. Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes.
A Liberdade é uma Luta Constante. Angela Davis.
Imagens de Sombras. Rosana Paulino.
Arte Contemporânea: uma introdução. Anne Cauquelin.