As primeiras imagens evocadas pela sonoridade do nome “Game of Thrones” provavelmente serão o trono de ferro composto por centenas de espadas fundidas no formato de assento real e a da rainha cercada por seus três dragões. A figura de Daenerys Targaryen, interpretada pela atriz Emilia Clarke, já se tornou um ícone da cultura pop mesmo entre quem não é espectador da série transmitida pela HBO.

Apesar de se marcar no imaginário do público, a personagem incorpora problemas generalizados da representação feminina em Game of Thrones. O roteiro da oitava e última temporada da história continua a associar suas protagonistas mulheres a implicações nocivas. Duas são as mais gritantes e perigosas: o seriado se ancora no estupro como artifício narrativo de empoderamento feminino e tem como padrão mostrar suas líderes como ou inaptas para política ou afetadas por uma obsessão patológica pelo poder.

 

DIFUSÃO DE NOÇÕES

Como se trata de uma das obras mais populares do entretenimento atual, essas noções são difundidas entre um volume gigantesco de espectadores. O último episódio da sétima temporada foi assistido por 16,5 milhões de pessoas só nos Estados Unidos. Isso para não falar na audiência formada por telespectadores que assinam a HBO em outros países, ou que acompanham o seriado por meios “piratas”.

A arte (e o entretenimento, na nossa era de consumo massificado das produções da indústria cultural) é um agente de poder simbólico, para citar um conceito da sociologia. As produções simbólicas são instrumentos de dominação. As obras da ficção transmitem valores, influenciam visões e práticas.

Assim como outras narrativas audiovisuais de grande alcance, as representações de “Game of Thrones” ajudam a construir a mentalidade de seu público, mesmo que seja apenas um tijolo entre outros. Vale lembrar, a ficção fantástica agrada sobretudo o nicho geek ou nerd, comunidade que já é considerada problemática por apresentar comportamentos sexistas e misóginos. A recepção e ofensas direcionadas por uma parcela dos fãs dos seriados a determinadas personagens mulheres é uma pequena demonstração disso.

 

LIVROS E ADAPTAÇÃO PARA A TV

A série “Game of Thrones” é uma adaptação dos livros “As Crônicas de Gelo e Fogo”, do autor norte-americano George R. R. Martin, publicados desde 1996 e ainda não concluída. A trama se passa em continentes fictícios conhecidos como Westeros e Essos, baseados respectivamente na Europa Ocidental e em porções da Ásia, Oriente Médio e norte da África, durante o período medieval. Trata-se de um mundo violento, onde o abuso sexual, a guerra e a violência são recorrentes. É um mundo brutal para homens e mulheres.

Porém, as personagens femininas de Martin não são definidas por estupros. O autor criou uma grande gama de mulheres com diversidade em personalidades, complexidade psicológica e diferentes ferramentas para sobrevivência. Elas são garotas sonhadoras em processo de amadurecimento, políticas, mães, cavaleiras, sacerdotisas, rainhas e princesas de caráteres distintos. O próprio autor já destacou que costuma escrever suas personagens femininas como humanas.

O mesmo não pode ser dito sobre a adaptação, principalmente nos anos mais recentes. Isso porquê a trama do seriado esgotou o material dos livros já lançados por Martin e passou a apresentar desdobramentos originais para a história.

Desde as primeiras temporadas, a série é acusada de uso excessivo de nudez feminina e de estupros. Passagens de sexo consensual (entre os personagens Daenerys e Drogo, e Cersei e Jaime), nos livros, foram transformadas em violência sexual na adaptação. Na quarta temporada, exibida em 2014, a série chegou ao ponto de exibir uma cena em que um personagem homem monologava enquanto dezenas de figurantes mulheres eram estupradas em plano de fundo, como se fossem meros objetos da cenografia. A violência sexual ali sequer foi retratada como alerta, conscientização sobre suas consequências. As mulheres eram apenas acessórios.

Outro exemplo, alvo de discussões entre o público do seriado, é a história da Sansa Stark, interpretada por Sophie Turner. A personagem é filha de uma família nobre, criada para ser uma dama e influenciada pelo idealismo das canções de cavalaria, cheia de donzelas, cavaleiros e reis heroicos. Sansa é delicada como um “passarinho”, apelido que recebe de um outro personagem.

Quando seu pai é morto, ela se torna refém da família inimiga, que ocupa o trono. Nos livros, Sansa amadurece com as decepções sobre a corte, com as observações sobre os esquemas políticos, ardis e violência. Ela aprende a lidar com a própria força interna que a torna uma sobrevivente. Ela também é empática e gentil, o que também já a ajudou a se livrar de mortes violentas.

A adaptação não só tornou mais tardio seu desenvolvimento. Na série, Sansa só se fortalece depois de sofrer um estupro – um abuso sexual do qual a personagem não foi vítima nos livros até o momento, embora já tenha abandonado sua inocência e fragilidade sem passar por isso. Como ela mesma diz no romance, “sua pele se transformou em porcelana, marfim e aço”.

No episódio exibido em 5 de abril de 2019, o roteiro força a personagem a reconhecer o próprio estupro como uma catapulta para o fortalecimento. “Sem Ramsay [seu estuprador], eu ainda seria apenas um passarinho”, ela diz, em referência à própria inocência. Dessa forma, os roteiristas da série induzem o espectador à noção de que garotas frágeis só se fortalecem mediante estupro e ainda se congratulam por utilizar em violência sexual como ferramenta para moldar caráter das personagens.

 

MULHERES E POLÍTICA

Como comentado anteriormente, outra implicação que “Game of Thrones” faz com sua representação feminina é de que a aproximação entre mulheres e política é perigosa. Assim como nos livros, a vilã, Cersei (Lena Headey), exibe uma fome de poder e falta de escrúpulos para mantê-lo. A ameaça à perda da autoridade e o luto transformaram a já arrogante e egoísta Cersei em louca e genocida.

Contudo, esse não é o único exemplo. Daenerys Targaryen, a heroína conhecida por ser a rainha dos dragões se tornou outro. Recapitulando sua história, ela era filha de um rei tirano de Westeros, deposto e morto durante uma rebelião. A queda de sua família a obrigou a crescer escondida em outro continente, Essos. O arco dela é de fortalecimento. Daenerys é vendida pelo próprio irmão a um líder tribal em troca de apoio bélico, mas contorna a situação e se torna uma rainha poderosa, consegue causar o nascimento de três dragões, ganha a lealdade da tribo, liberta escravos (o que, por si só, já causa umas implicações perigosas da noção de white saviour – ou salvador branco, necessário para a proteção de povos exóticos, o que poderia ser tema de discussão para outro artigo), desafia governantes corruptos. Suas conquistas se baseiam na força e violência, assim como os atos de personagens masculinos da séries. A diferença é que ela tem dragões e age com derramamento de “sangue e fogo”.

Daenerys busca a justiça. Embora não seja uma líder perfeita, é uma governante em amadurecimento, preocupada com seus seguidores e com visões mais progressistas que as de qualquer nobre do seriado. E é altruísta. Mesmo que seu objetivo seja atravessar o oceano para retomar o trono – que considera ser seu por legitimidade – ela adia a travessia pelos seguidores que acumula em Essos e que a amam. Quando seus dragões começam a matar pessoas para comer, ela os prende e fica abalada pelas mortes. Quando atravessa o oceano, ela deseja romper com ciclos e sistemas políticos corruptos e disputas de famílias nobres pouco preocupadas com as camadas mais baixas da população.

Porém, em plena última temporada, os produtores resolveram descartar todo seu desenvolvimento. Daenerys chega a Westeros e demonstra ter perdido sua capacidade de compreender os plebeus de culturas diferentes, algo que ela exibia em outras temporadas. Ela já não se preocupa com o perigo apresentado por seus dragões quando famintos, o que escancara em um diálogo debochado. Daenerys também sofre perdas (dois de seus resistentes dragões morrem com grande facilidade, como conveniência para trama, seus exércitos e seguidores são dizimados).

Assim como Cersei, ela responde à solidão, ao luto e à ameaça à perda de poder com o que é interpretado como loucura dentro da história. Seus próprios conselheiros conspiram para evitar que ela assuma o trono, elegendo como seu novo campeão, um homem, Jon Snow (Kit Harrington). Embora o seriado não se importe mais em demonstrar em ações os motivos de ele ser um líder mais adequado, os outros personagens em diálogos o apontam como mais apto, mais comedido. Atenção para o contraste no roteiro: as opções para rainhas são descontroladas e perigosas, a opção masculina é classificada como excelente.

Vale a ênfase: a protagonista poderia ter um arco que a transformasse em antagonista, porém não há sequer um desenvolvimento coeso para isso na narrativa. Daenerys em uma temporada é quase um messias, na outra, uma ameaça ao povo. Os indícios utilizados como sintomas de sua loucura são atos violentos não diferentes dos utilizados por personagens masculinos em guerra, como a execução de traidores. Entretanto, quando os homens – e incluindo Jon Snow – os praticam, essas ações são aceitáveis. Só para Daenerys, eles são sinais de insanidade.

Daenerys não é a única heroína a se transformar negativamente sob a influência do poder. Na atual fase, Sansa Stark também tomou gosto pela política. Embora ela seja mostrada como mais pragmática, sensata e preocupada com seu povo e provisões, Sansa também se tornou obcecada pelo poder, com sua trama resumida a uma rivalidade com Daenerys. Ela é capaz de descumprir promessas (embora a honra seja um valor firme para sua família – e, mais uma vez, para o líder homem, Jon Snow).

Assim, as três principais personagens de “Game of Thrones” mais envolvidas com a política servem para incorporar uma representatividade feminina que é mais um desserviço, com insinuações sexistas e preocupantes. Superficialmente, estamos falando sobre um produto da ficção, uma obra de entretenimento. Mas o que suas problemáticas significam quando esse produto é assistido e bem aceito por dezenas milhões de pessoas?

 

Rafaela Tavares Kawasaki. Jornalista de 31 anos, autora do livro de contos “Enterrando Gatos”.