Dia 10 de Setembro é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio. Em função dessa data, Setembro foi escolhido, oportunamente, como o mês para dar visibilidade ao fenômeno. Fenômeno este que corresponde à quase 1 milhão de mortes por ano. Segundo o último Relatório da Organização Mundial de Saúde (2014), o Brasil ocupa a 8ª posição no ranking mundial em números de óbitos por suicídio e é o 4º país latino-americano com maior crescimento no número de suicídios entre os anos de 2000 e 2012.

Mesmo nossos números já sendo preocupantes, eles podem ser ainda maiores. Bertolote (2012), afirma, com base nos estudos do IBGE, que 15,6% dos óbitos não são registrados e entre os registrados, 10% correspondem a “causa externa de tipo ignorado”, causa indefinida entre acidente, homicídio ou suicídio. Há, portanto, um sub-registro deste tipo de mortalidade, especialmente em função de razões morais, religiosas, discriminação e implicações legais.

As representações simbólicas sobre o suicídio e daquele que tenta ou consuma o ato são quase sempre vinculados à elementos negativos, como: pecado, crime, covardia, anormalidade, loucura, etc. Isto posto, a relevância de falar sobre a temática é, sobretudo, uma maneira de desmistificar; tirar as máscaras da moralidade e enfrentar o fenômeno como um problema de saúde pública mundial e, por essência, de sofrimento humano. O Setembro Amarelo é, então, uma estratégia de convocação à sociedade para discutir e buscar medidas efetivas e inventivas de prevenção.

Um dos acontecimentos de 2017 que capturou com comoção e polêmica a temática do suicídio foi a série da Netflix “13 Reasons Why”. Esta, juntamente com a Baleia Azul, trouxe à tona a discussão sobre o suicídio como imperativo. À posteriori e por nuances de todas as ordens, ambos os eventos impuseram o debate com a necessidade de uma abordagem responsável, ou seja, a ideia de que problematizações do fenômeno devem ser, sempre, acompanhadas de cuidados.

O enredo da série “13 Reasons Why” reflete o acúmulo de conflitos, vivências traumáticas e a dilatação do sofrimento da jovem Hannah Baker. A jovem comete suicídio após gravar treze fitas dirigidas à treze pessoas, as quais ela entende como sujeitos que influenciaram direta ou indiretamente a sua decisão. Clay Jensen, um dos protagonistas da série, acompanha a sua narrativa, bem como tenta reconstruí-la a partir da investigações dos fatos e debruçamento afetivo sob a história de Hannah.

Muitos jornalistas, psiquiatras, psicólogos e críticos se manifestaram no início do ano, via interpelação de questões éticas e técnicas na abordagem do suicídio na série. Quase seis meses depois da sua exibição, que conclusões podemos tirar sobre o debate em torno nela? Que atualizações podemos fazer, especialmente tendo em vista as ações de prevenção do suicídio ressaltadas no Setembro Amarelo?

As discussões em torno de 13 Reasons Why: pontos positivos e negativos

 

Diferente da crítica de alguns profissionais, penso que um dos pontos positivos da série foi a abordagem não patologizante do suicídio. Apesar de a associação entre o fenômeno e os transtornos mentais ter registro significativo na literatura, penso que há muitos riscos de atrelar uma coisa à outra. Não por achar que devemos negligenciar as estatísticas ou mesmo minimizar os efeitos de um diagnóstico. Pelo contrário! Sabemos como uma depressão não tratada pode danificar uma vida, como um psicótico e melancólico podem passar a ato com mais facilidade, como um transtorno pode alterar a percepção da realidade ou mesmo interferir no livre arbítrio, etc. O diagnóstico deve sempre existir como norteador das condutas dos profissionais no tratamento às pessoas, mas a associação supracitada merece, na minha concepção, uma maior criticidade.

É preciso questionar, por exemplo, como se edifica o estatuto de transtorno mental, especialmente na atualidade, com o imperativo do bem-estar social, de um lado, e o interesse e supremacia das indústrias farmacêuticas, de outro. À título de curiosidade, O Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-V), na sua última edição, afrouxou o limite entre o luto e a depressão, anteriormente bem delineado. O luto se tornou passível à medicação, no caso de “persistência” dos sintomas após duas semanas, ou seja, um transtorno mental. Essa referência contemporânea é emblemática porque denuncia como somos todos, em algum grau, medicalizados – evento nomeado também como psiquiatrização dos normais (OLIVEIRA, 2015); sem margem para atravessar experiências naturais da vida com outros recursos de enfrentamento que não os remédios.

Considerar os modos pelos quais opera a cisão entre o normal e o patológico na construção de estratégias de poder é reconhecer, primeiramente, que o conhecimento não é desatrelado de interesses políticos e epistemológicos. De acordo com Canguilhem (2014), a normalidade biológica se circunscreve por um valor estatístico e normativo da variabilidade humana. Se há frequência, é normal; se há desvio, é anormal. Berlinguer (1988), em um extrapolamento argumentativo, anuncia que fazer coincidir anormalidade e patologia é frequentemente uma arbitrariedade, especialmente em função da normalidade social – uma avaliação ética e moral dos comportamentos que mudam segundo a época. A definição contemporânea de normal e patológica pode vir então, a: 1) multiplicar barreiras seletivas que cerceiam as diferenças; 2) proliferar um padrão de poder ontológico que hierarquiza vidas e modos de viver; 3) no caso do suicídio, justificar o ato via transtorno, de modo a culpabilizar o indivíduo e isentar a responsabilidade social do fenômeno.

O suicídio é considerado pela Organização Mundial da Saúde como 2ª causa de morte mundial entre pessoas de 15 a 29 anos – público alvo representado na série. Tendo como cenário principal uma escola e toda a lógica subjacente do “american way of life”, os jovens revelaram conflitos das suas relações, da “adultescência”, do poder, os movimentos de alienação e separação, as violências, os mecanismos de abuso e segregação em suas diferentes facetas, com ênfase no bullying e estupro.

A violência de gênero me saltou aos olhos.  Não apenas pela convergência clínica – muitas jovens com histórico de tentativa de suicídio relatam casos de abuso sexual -, mas principalmente pelo silenciamento e/ou complacência em torno do ato violento. Aspecto que pôde ser observado, entre outras fontes, na fala do conselheiro da Escola Liberty, que retrata um discurso social que frequentemente culpabiliza a vítima, incentivando-a a “seguir em frente”. Ou mesmo, nas críticas posteriores à série que pouco exploraram as marcas e repercussões das violências no corpo e no psiquismo de uma mulher; com exceção do texto de Gabriela Ferraz , que discute a série em torno desse eixo. Estou de acordo com essa autora que o que vinha sendo posto debaixo do tapete está sendo escancarado pelas novas gerações, que têm percorrido fortemente as veredas da denúncia e militância.

Nesse sentido, “13 Reasons Why” apontou para uma sobreposição de emergências; uma escolha assertiva acompanhada por uma abordagem imprudente, por desconsiderar as indicações/diretrizes de prevenção de suicídio ligadas à mídia, encabeçadas pela Organização Mundial da Saúde (2000). Entendo que falamos de uma obra audiovisual, mas não podemos perder de vista a incumbência da produção sobre as repercussões midiáticas que uma série da Netflix têm sobre milhares de pessoas. A exibição do suicídio de Hannah foi o ponto mais problemático da série, que sofreu duras condenações pelo risco de efeito contágio, o efeito “Werther”. O psiquiatra Luís Fernando Tófilo e o escritor e crítico de cinema Pablo Villaça contribuíram fortemente para essa discussão, sinalizando os perigos e danos de jovens em vulnerabilidade assistirem a série.

 

O que poderia ser diferente em 13 Reasons Why?

 

Como bem traduziu o querido artista Maurício Scheneider, a felicidade não é, não pode ser o único parâmetro para a vida. O pensamento suicida atravessa a existência humana por escancarar a dor de viver. Entendido por muitos autores como uma possível saída diante do sofrimento psíquico, o suicídio se articula, segundo a psicóloga e psicanalista Soraya Carvalho (2014), através da concatenação de fatores precipitantes, motivações internas e elementos sociais. Ou seja, o suicídio não tem culpados, como a série deu margem à interpretação, ele se localiza entre os processos de subjetivação, sempre singulares, e as condições sociopolíticas ofertadas ao sujeito em sofrimento. Por isso, ratifico que o sofrimento, seja no âmbito da depressão ou não, deve ter um lugar de legitimidade. Esse é um bom começo para pensar em medidas de prevenção.

Nessa perspectiva, concordo com psicóloga Karen Scavacini: faltou no desfecho da série o que Hannah poderia ter feito de diferente, ou mesmo, ações de outros pessoas que poderiam fazer diferença. Essa não foi uma falta relevante ao enredo, foi, sobretudo, uma perda da oportunidade da produção da série falar de uma maneira responsável sobre a busca por ajuda, inclusive, a ajuda especializada.

Dunker (2017), psicanalista, faz uma análise da cena do diálogo de Hannah com o conselheiro da Escola, profissional que ela conseguiu dirigir o seu sofrimento e cujas respostas ao apelo tiveram efeitos catastróficos. Esse autor interpretou a intervenção como um exemplo de contraindicação: “Como não ser um anti-psicólogo. O que devemos fazer em situações extremas, como acolher o sofrimento do outro? E, principalmente, o que não fazer em determinadas situações.”

Dunker explorou a postura do conselheiro, declarou que este não estava “inteiro” no encontro, foi tomado por preocupações outras, como o telefone que não parava de tocar. A comunicação inadequada denunciou, paralelamente, a não disponibilização do conselheiro, que não quis escutar, quis resolver. Não à toa, ocupou predominantemente uma função jurídica, especialmente no que tangeu à investigação do abuso sexual. Seus questionamentos, apontamentos dos furos do discurso de Hannah, bem como julgamentos frente ao contexto, reforçou a sensação da jovem quanto ao rompimento de laços, inviabilizou um compartilhamento da experiência, desautorizando-a à inventivas construções e saídas frente ao seu desamparo. O discurso ambivalente frente à morte, bem como a expressão “Preciso que pare, preciso que tudo pare, as pessoas, a vida” não tiveram espaço de legitimidade e interlocução.

O término da primeira temporada manifestou a fragilidade dos vínculos, que devem, ao contrário, ser potencializados. Temos a emergência de novos laços sociais – fio condutor enunciado por Clay no último episódio: “Precisa melhorar. O modo como nos tratamos e cuidamos um do outro. Precisa melhorar de algum jeito.” O cuidado pode ser privilegiado através do diálogo, que só existe, segundo o filósofo Wanderson Nascimento (2016), quando há disponibilidade de se deixar desconstruir pelo outro. Fora desse espectro, qualquer encontro ou processo terá como condição a negação da alteridade. A linguagem ainda é a nossa matriz identitária e existencial.

Destarte, a aposta fica na palavra. Como bem me ensinou a psicanálise, em especial os autores Cristiane Oliveira, Soraya Carvalho e Christian Dunker, os atos de reconhecimento têm o poder de transformar a vivência real do sofrimento, ele se altera conforme é nomeado. Assim, encerro meu pensamento fazendo menção à ideia da professora e psicanalista Angélia Teixeira (2011): a vida pode ser reinventada ou reafirmada pelo poder da fala. Precisamos falar, precisamos estar atentos às historicidades dos sujeitos, precisamos aliar a clínica com a política, progredir nas políticas públicas de saúde e nos modos adequados de cuidado. Precisamos conhecer os fatores de risco e potencializar os fatores protetivos.

Precisamos falar: quanto mais a gente fala, mais a gente previne.

PS. A quem interessar (ou precisar) possa, segue o registro de redes e instituições que trabalham com prevenção do suicídio no Brasil, além da CVV:- Núcleo de Estudo e Prevenção de Suicídio (NEPS – Salvador/BA);- Instituto Vita Alere (São Paulo/SP)- Núcleo de Intervenção e Prevenção do Suicídio na Universidade de Brasília (UNB- DF)- Associação Brasileira de Prevenção do Suicídio (ABEPS)- Rede Brasileira de Prevenção do Suicídio (REBRAPS)- Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) – Comissão de Prevenção do Suicídio

Luana Lima é psicóloga e Bacharel Interdisciplinar em Humanidades. Mestranda em Bioética.