“A verdade é que, da sociedade comum dos homens advêm muito mais vantagens do que desvantagens […] por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e que apenas pela união das suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte.”  (SPINOSA, 2009, p. 45)

 

“Bacurau” é uma ousada construção estético-política repleta de camadas complexas de sentidos e cenas intrigantes que ficam sem explicação para nos fazer pensar. Os significados escapam aos criadores, como uma grande obra de arte. O filme resgata a ideia de que não se deve confundir a reação dos oprimidos com a violência dos opressores. O filme não é um discurso a favor do uso da força, o povoado não é violento por natureza, mas pela desigualdade brutal e pela história que cerca a vida das pessoas da comunidade. Os diretores, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, afirmaram que o problema do Brasil é não se reinventar, o país não aprende, continua repetindo o passado, e reconstruir o que foi destruído é muito difícil. As principais questões abordadas na película são os problemas históricos do Brasil, a violência contra os brasileiros; — negros, indígenas, nordestinos, pobres — o completo descaso com a educação, a saúde e a memória; a negligência desonesta de políticos; a ausência de recursos hídricos. O pensamento de Espinosa exposto no livro Ética serve bem para falar da obra, pois por meio da ajuda mútua entre a população, a união das forças, evita o perigo de extermínio que os ameaçam. O filme “Bacurau” é a realidade brasileira sob estética antropofágica, foi empregado desde os artistas modernos da lenda indígena como uma forma de lutar contra a dominação da cultura estrangeira sobre o Brasil, seria um manifesto anti-imperialista, a história, a maneira de contar, os elementos que inspiraram, da cultura popular a traços do cinema americano.

O enredo tem um tom de documentário, acompanhando a vida dos moradores; — assim como no filme “O som ao redor” mostra o cotidiano das pessoas sem explicar como chegaram ali — Bacurau aos poucos vai crescendo em violência e resistência. O primeiro ato é longo e a narrativa é lenta, apresenta muitos personagens, moradores da cidade, sem se aprofundar, visto que o foco é a comunidade. Já no começo da obra a câmera vai levando os telespectadores para Bacurau, do espaço para a trajetória do caminhão pipa, e vai durante o longa entregando sutilmente o que ronda a vila, o prenúncio da morte. Após a morte da matriarca, o pequeno povoado descobre que a cidade não consta no mapa, um clima de estranhamento toma conta e fatos inusitados acontecem. Os estrangeiros invadem as redondezas com a missão de matar, carros tomam tiros, cadáveres começam a aparecer, logo a população de Bacurau conclui que está sendo atacada e cria coletivamente um meio de defesa. Em termos gerais a obra cinematográfica descreve um conflito entre utopia (povo vitorioso) e distopia futuro próximo.

Na caracterização das personagens, a protagonista é a cidade Bacurau, semelhante à estratégia do realista Aluísio Azevedo, em que o próprio cortiço é o protagonista. Em ambos, a personagem principal é o coletivo. As personagens da cidade são pouco desenvolvidas para dar ênfase à coletividade, são ambíguas — doces e fortes, nem vilões e nem mocinhos, bem-humorados e sofridos —, diversas, movidas pela solidariedade, têm voz e dão visibilidade ao povo brasileiro: o nordestino, o negro, a mulher, a trans., a prostituta, o professor, a médica, a trabalhadora, o bandido, o assassino. As personagens femininas são destaques, fortes e empoderadas: a falecida matriarca Carmelita foi uma figura importante para a comunidade, a médica Domingas possui um papel fundamental na conscientização sobre os perigos de tomar os remédios doados pelo prefeito de Serra Verde e a médica Teresa traz as vacinas em uma mala que simbolicamente passa pelas várias mãos dos cidadãos. Todas as personagens quebram com os estereótipos típicos a respeito do brasileiro, tachado de exótico, inferior, atrasado e ignorante. O filme mostra o oposto, é a visão do nordestino sobre o Brasil e sobre os americanos e europeus. A cidade-personagem vive de uma economia de subsistência colaborativa, a paisagem é verde e não de seca extrema, há uma organização popular assertiva. A narrativa do filme deixa claro que a comunidade de Bacurau é consciente, politizada, informada, orgulhosa da sua história e democrática, pois é transparente quando conta dos alimentos vencidos e remédios prejudiciais que o político doou, deixando os moradores livres para pegarem o que precisarem e não pegarem o que for ruim, também a população não mata o prefeito e o forasteiro alemão, ou seja, não matam se não tiverem correndo perigo.

O espaço é uma vila sertaneja no oeste de Pernambuco na região nordeste chamada Bacurau que simboliza o Brasil. Lá as pessoas possuem sinal de wi-fi, tablet, televisão, celular, entre outras tecnologias. O tempo é cronológico, ambientado “daqui a alguns anos”, o filme se passa em torno da resistência ao ataque de supremacia de raças dos estrangeiros brancos. O clímax está na reviravolta, o canto do bacurau traz o presságio da morte. O casal de negros da cabana age antes de ser atacado e, após isso, a comunidade reage às matanças. A população do vilarejo se protege e se defende em ato de resistência na Escola João Carpinteiro e no Museu Histórico de Bacurau, e não na igreja, que serve de depósito, a religião não tem papel relevante, como é observado no funeral da matriarca. Os tiroteios na escola e museu simbolizam a valorização do conhecimento e da memória em Bacurau, e o frequente ataque à educação e à cultura do país, como vemos no Brasil. O desfecho é épico, inesperado e surpreendente. Diferente de Canudos, que terminou com a destruição da cidade no sertão Belo Monte, que foi também uma história de resistência ao poder dominante, Bacurau vence, sem salvador, na união dos fracos, dos heróis de si mesmos.

A fotografia pertence à estética faroeste, cangaço, filmes antigos, gore, “Western Spaguetti”, utilizam de zooms e transições. O filme se enquadra no cinema de gênero pela mistura de ficção científica, terror, ação, suspense; permite trabalhar alegorias; o exagero, o absurdo e a catarse. De fato, os enquadramentos se demoram pouco em cada personagem, especialmente no que elas falam, para enfatizar o caráter comunitário da resistência expresso na fotografia correta dos rostos de cada participante da comunidade.

A trilha sonora é poética, a música serve de elemento narrativo que dialoga com as situações e é composta majoritariamente por Música Popular Brasileira, como por exemplo a canção “Não-identificado”, de Caetano, cantada por Gal Costa. A letra dessa música afirma fazer uma arte brasileira, pinceladas da Tropicália influenciada pelas vanguardas e o do Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade. Em “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, temos referência à literatura de Guimarães Rosa — “Se alguém tem que morrer. Que seja para melhorar”. A música também foi trilha sonora do filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. “Bicho da Noite”, de Sérgio Ricardo, fala do simbolismo do pássaro Bacurau, que metaforicamente representa o povo da vila. Há alguns sons sem letra, como de John Carpenter, com “Night”, para intensificar o mistério, o suspense e o horror.

Outro aspecto é a presença da Antropofagia, que consiste em deglutir tendências, informações, manifestações do pensamento, e expressar a realidade em uma obra brasileira. A proposta dos modernistas era definir a cultura nacional como algo heterógeno e repleto de diversidade, cuja identidade é marcada por uma não identidade, mas, ainda sim, rica. A relação entre o modernismo e a antropofagia é de que o movimento antropofágico foi utilizado para pensar uma nova arte brasileira moderna. Ademais, na linguagem do filme há uma contextualização imagética sutil e inventiva que passa mensagens. A água simboliza a vida, e o caixão a morte, transborda água, rompe o inesperado. O neonazista sendo enterrado vivo no final do filme simboliza que a ideologia nazista sempre pode retornar e devemos ficar atentos, pois está enterrado e não morto. O pássaro bacurau remete a uma metáfora da própria população. O Museu simboliza o quanto o brasileiro desconhece sua história e não tem interesse em conhecer. As cabeças cortadas remetem a Lampião e, conforme os diretores disseram, ao sistema prisional e dos homicídios na periferia. Os varais de roupas sujas de sangue remetem à violência nas favelas e a mãe segurando sua criança assassinada lembra as mães negras perdendo seus filhos, por exemplo, Agatha e Marcos Vinicius. O estrangeiro que entra no museu e rouba um objeto demonstra as riquezas que os colonizadores levaram de nós.

Influenciado pelo regionalismo universal de Guimarães Rosa, o conto “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” foi referência na construção de uma narrativa de um sertão místico. Matraga é Lunga, cangaceiro moderno, anti-herói e andrógino. Matraga, Lunga e Pacote têm em comum o constante conflito interno entre o bem e o mal. “Bacurau faz um paralelo com o sertão de Euclides da Cunha”, visto que a obra de Euclides de Cunha é anterior, mostrando “o homem, a terra e a luta”. Existe a presença dos faroestes italianos, que tematizam pequenas comunidades e uma presença externa altera a dinâmica da cidade e termina com confronto sangrento, como a trama do filme. A caricatura do político brasileiro no filme é desenhada sob o sucateamento da educação, o desmonte do sistema de saúde, a doação de comida fora da validade, relação agressiva com uma profissional do sexo e o envolvimento com os assassinatos; demonstra o desprezo ao jogar os livros no chão, aparece apenas em período eleitoral, leva remédios, alimentos, caixões e estrangeiros para matar a população. Por fim, precisamos considerar ainda as cenas exibidas na TV, como as execuções públicas no Anhangabaú e os linchamentos midiáticos, que são as novas formas de execuções.

As afirmações de Haddad quanto ao filme de que a chave para a compreensão é uma “ideia que se encontra fora de lugar”, o museu, é porque, como dizem os diretores de “Bacurau”, se o casal forasteiro tivesse visitado o museu, se eles conhecessem a história talvez tivessem outra mentalidade e o desenrolar da trama poderia ser outro. Já a professora Ivana Bentes diz que o filme é um retrato ficcional apocalíptico do Brasil. Bentes lembra da Tropicália na trilha sonora, também fala da caracterização dos corpos dos personagens, o nu remetendo aos índios nas suas cabanas de barro em contato com a natureza e entregues ao misticismo, e relembra em meio às mortes das Marielles assassinadas, o protagonismo das grandes mulheres do enredo e esse novo cangaço de lutas atuais que foi construído.

A experiência sensorial em assistir a película é intensa e um tanto perturbadora, um misto de emoções, êxtase e euforia. Um texto e uma obra de arte sempre comunicam uma ideia. A mensagem que a obra passa é de que a resistência no mundo, calcada na sobrevivência, exige sonho, utopia e alguma dose de delírio. Impossível não lembrar do conceito de “banalidade do mal”, cunhado pela filósofa Hannah Arendt, “por mais terríveis que possam ser algumas ações, não devemos nos esquecer que elas podem ser cometidas pelo mais comum dos humanos: o mal não se esconde atrás de monstros e outras evocações naturais ou sobrenaturais que nossa imaginação possa criar, mas sim no mais banal dos indivíduos”. A intenção de Arendt ao analisar o mal tirando o véu de perplexidade que o encobria, buscando compreender como ele é possível, se dá para não aceitar os acontecimentos, mas para ver que há sempre uma possibilidade além da maldade, que resistir é uma das únicas formas de se manter humano, e é isso que o povo de Bacurau faz. Levando em consideração as ideias de Safatle, em Circuito dos afetos, para entender o momento político do longa metragem é preciso analisar os afetos que estão sendo produzidos no ato e questionar como Spinosa “o que pode um afeto? ”. Safatle responde: “o afeto que nos abre para os vínculos sociais é o desamparo”, vemos nitidamente isso no filme, a alteridade e a união que surge do desamparo do Estado para com o povo, é do desamparado que brota a emancipação.  Para Safatle, o desamparo não é algo contra o qual se luta, mas algo a que se afirmar, sendo assim apenas pessoas desamparadas são capazes de agir e criar politicamente um movimento de resistência, sem salvador e pela emancipação.

 

Referências bibliográficas

 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

BACURAU. Direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Brasil/França: Globo Filmes, 2019. 2h 12m.

CUNHA, Euclides. Os sertões. São Paulo: Martin Claret, 2017.

O SOM AO REDOR. Direção de Kleber Mendonça Filho. Brasil: CinemaScópio, 2012. 2h 11m.

SAFATLE, Vladimir. Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Autêntica, 2015.

SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Autêntica. 2009.

 

Rayane Aline Damasceno. Graduanda em Letras na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais , professora de linguagens e escritora.

 

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