O estudo sobre desigualdades sociais possui diferentes enfoques: social, econômico, político, cultural, entre outros. Há ainda outras categorias de análise, como por exemplo, sexo e etnia. Dentre estas, a categoria sexo interfere nas interações sociais por se constituir em fator influenciador de algumas práticas sociais. Por tanto, Joan Scott propõe que analisemos de acordo com a premissa de gênero, para que possamos refletir sobre sexo e suas relações históricas, não apenas pelo caráter biológico, mas também social.

A autora defende que a categoria estudos de gênero foi usada em outros estudos como sinônimo para estudos das mulheres, mais precisamente, estudos feministas. Já na sua proposta, a categoria despolitiza as mulheres, e consequentemente as retira da condição de ameaça. Scott propõe o uso mais abrangente, incluindo homem e mulher em suas conexões e relações de poder de uma forma que seres biológicos binários “macho e fêmea” passam a ser seres sociais inseridos em um discurso que desconstrói esta identidade pré conceituada de masculino e feminino. Ou seja, a partir do conceito de gênero é possível perceber a organização da vida social e as conexões de poder nas relações entre os sexos.

Os principais mecanismos dos quais o fator sexo opera nas sociedades de classe, exclui boa parte das mulheres por colocá-las numa posição tradicional, onde estas estão restritas a afazeres domésticos e ao ambiente privado. Estas são práticas que justificam a exclusão das mulheres no meio social. Por conseguinte busca-se o desenvolvimento de ações que coloquem as mulheres em outro patamar em suas relações, e para que possam contribuir para a sociedade em pé de igualdade com os homens. Visando justiça nas relações de gênero em diferentes espaços, tanto no publico quanto no privado.

O conceito de feminismo aqui utilizado faz parte do princípio de que o feminismo é a ação política das mulheres e as vê como sujeitos históricos da transformação de sua própria condição social, pois mesmo na condição de assistencialismo, se tornam agentes e passam a ter maior autonomia sobre suas próprias vidas.

O presente artigo busca discutir acerca das políticas públicas que possam potencializar ações que modificam a situação de vida de seus beneficiários, enfatizando as mães de família que recebem o benefício. Tendo as mesmas como agentes ativos na construção de seu empoderamento, a questão principal é compreender em que medida o acesso a uma política mínima de crédito influencia na modificação do cotidiano das recebedoras, contribuindo para uma maior autonomia e controle de sua própria vida.

 

Feminismo

 

A sociedade patriarcal está constituída, segundo Gebara (2001), há mais de 10.000 anos, pautada em uma hierarquia de culpa classista, racista e sexista. Ou seja, a mulher pobre e negra é culpada pelos seus pecados e desgraças. Fazendo com que seja naturalizada a violência que sofre, a ponto de não percebê-la. Sendo assim negados seus direitos – fundamentais do ser humano. Na sociedade capitalista patriarcal em que se vive há uma mentira: o de que todos são iguais perante a lei. E é justamente neste “todos” que ressalta o masculino e faz subentender as mulheres, que estão longe de estarem em condições de igualdade.

Ninguém sofre uma opressão tão prolongada ao longo da história como a mulher. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da pobreza que atinge, hoje, 4 dos 6 bilhões de habitantes da Terra. (CHRISTO, 2001)

Foi a organização feminista que começou a fazer com que as mulheres reivindicassem o que lhes é de direito. Segundo Alvez e Pitangy (2005) o feminismo como movimento político dá seus primeiros passos na América do século XVII, junto com as revoluções com os avanços na organização social do país, com os primeiros passos do capitalismo e o crescente pensamento racional e científico. Em 1972 a inglesa Mary Wollstonecraft escreve o livro Direitos da Mulher (2005, p. 36) onde defende que a inferioridade intelectual das mulheres, usada como justificativa para opressões e no privado e no trabalho, é decorrente da inferioridade educacional. Já no século XIX as lutas são por melhores condições de trabalho e de direitos a cidadania, mas é só em 1920 que elas ganham o direito ao voto. Já no Brasil, a luta pelo direito ao voto não teve características de movimentos de massas, tanto que o direito nacional de sufrágio feminino só foi concedido em 1932, durante o governo Vargas.

Durante a Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra a presença das mulheres na cena social brasileira tem sido inquestionável. Sob grande influências de pensadoras da época, como Simone de Beauvoir que escreveu O Segundo Sexo no final da década de 40, e gerou uma revolução entre as classes feministas, surgem também outros livros de renome como A Mísitica Feminina, de Betty Friedan, Política Sexual de Kate Millet e entre outros.

A partir da década de 60 e durante os 21 anos em que o Brasil esteve sob o regime militar, a luta feminista era por direitos sociais, justiça e democratização. Desde então o movimento feminista vem travando uma luta no sentido de denunciar os conceitos de “masculino” e “feminino” na sua oposição de “superior” e “inferior”. Que implica em desigualdade, visto que é uma construção ideológica e não o reflexo da diferenciação biológica.

 

Bolsa Família

 

O programa Bolsa Família surgiu no ano de 2003, como unificação de outros quatro programas de transferência de renda: Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Auxílio-Gás e o cartão alimentação do Fome Zero. Visando inclusão social de milhões de brasileiros que sobreviviam em extrema miséria, o programa propôs o alívio imediato da situação de pobreza e fome. Também almejava estimular um melhor acompanhamento dos serviços públicos de saúde e ajudar a superar índices de evasão escolar, repetência e defasagem idade-série de alunos. Visto que um dos requisitos para receber o auxílio é a permanência das crianças e adolescentes na escola. Além disso, baseando-se em um conjunto de iniciativas o programa tem outros objetivos que visam a valorização real do salário mínimo, programas de fortalecimento da agricultura familiar, defesa e proteção do emprego formal e ampliação da cobertura previdenciária.

Ao romper com o que chamamos de “círculo vicioso de pobreza” – situação caracterizada pela impossibilidade de escolha pessoal sobre sua própria vida – a política de combate à fome do Programa Bolsa Família pode ser vista como urgência política e moral, e sem a qual seria impossível falar sobre cidadania e democracia no Brasil. Vale ressaltar que as famílias que recebem o auxílio são aquelas cuja existência inteira foi carente de direitos básicos. Viver uma situação de miséria extrema e de fome constante são privações da liberdade humana. O Estado sequer lhes garantia o direito à vida, descumprindo assim sua função precípua. É o que a Hannah Arendt chama de “Povos sem Estado”: expressão usada para definir pessoas que perdem a proteção de seu governo (Arendt, p 299, 1979), pois a ausência deste confirma a situação de pessoas sem direito a terem direitos. São pessoas emudecidas porque seu direito de voz pública não existe, pessoas desprovidas de direitos básicos e por estas razões não possuem condições nem canais de expressão. Milhões de brasileiros com escolaridade ausente, destituídos de qualificações necessárias para assumir qualquer tipo de emprego que exija leitura e escrita.

O programa de transferência estatal de renda para mulheres pobres é ainda muito recente, mas nos traz a possibilidade de se tornar uma política de formação de cidadãos – uma cidadania democrática no Brasil, visto que a prerrogativa básica de cidadania consiste no direito a vida. Direito este, que o Programa Bolsa Família assegura. Segundo o site do MDS, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome:

O Bolsa Família possui três eixos principais: a transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social; e as ações e programas complementares objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade.

Todos os meses, o governo federal deposita uma quantia para as famílias que fazem parte do programa. O saque é feito com cartão magnético, emitido preferencialmente em nome da mulher. O valor repassado depende do tamanho da família, da idade dos seus membros e da sua renda. Há benefícios específicos para famílias com crianças, jovens até 17 anos, gestantes e mães que amamentam.

A gestão do programa instituído pela Lei 10.836/2004 e regulamentado pelo Decreto no 5.209/2004, é descentralizada e compartilhada entre a União, estados, Distrito Federal e municípios. Os entes federados trabalham em conjunto para aperfeiçoar, ampliar e fiscalizar a execução.

A seleção das famílias para o Bolsa Família é feita com base nas informações registradas pelo município no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, instrumento de coleta e gestão de dados que tem como objetivo identificar todas as famílias de baixa renda existentes no Brasil.

Com base nesses dados, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) seleciona, de forma automatizada, as famílias que serão incluídas para receber o benefício. No entanto, o cadastramento não implica a entrada imediata das famílias no programa e o recebimento do benefício.

As famílias que recebem o bolsa família, estão na condicionalidade de famílias pobres (com renda per capita mensal entre R$77,00 e R$ 154,00) e extremamente pobres (renda per capita inferior a R$77,00 por mês).

Os benefícios são:

Benefício o Básico: R$ 77

  • Concedido apenas a famílias extremamente pobres (renda mensal por pessoa
    menor de até R$ 77)

Benefício Variável de 0 a 15 anos: R$ 35

  • Concedido às famílias com crianças ou adolescentes de 0 a 15 anos de idade

Benefício Variável à Gestante: R$ 35

  • Concedido às famílias que tenham gestantes em sua composição
  • Pagamento de nove parcelas consecutivas, a contar da data do início do pagamento do benefício, desde que a gestação tenha sido identificada até o nono mês
  •  A identificação da gravidez é realizada no Sistema Bolsa Família na Saúde. O
    Cadastro Único não permite identificar as gestantes.

Benefício Variável Nutriz: R$ 35

  • Concedido às famílias que tenham crianças com idade entre 0 e 6 meses em sua composição
  • Pagamento de seis parcelas mensais consecutivas, a contar da data do início do pagamento do benefício, desde que a criança tenha sido identificada no Cadastro Único até o sexto mês de vida

Observação: Os benefícios variáveis acima descritos são limitados a 5 (cinco) por família, mas todos os integrantes da família devem ser registrados no Cadastro Único.

Benefício Variável Vinculado ao Adolescente: R$ 42

  • Concedido a famílias que tenham adolescentes entre 16 e 17 anos – limitado a dois benefícios por família

Benefício para Superação da Extrema Pobreza: calculado caso a caso

  • Transferido às famílias do Programa Bolsa Família que continuem em situação de extrema pobreza (renda mensal por pessoa de até R$ 77), mesmo após o recebimento dos outros benefícios. Ele é calculado para garantir que as famílias ultrapassem o limite de renda da extrema pobreza

Além de entender que os valores recebidos pelas famílias do PBF podem variar, é importante saber que o Cadastro Único é um banco de dados mais amplo e que dá acesso a outros programas e políticas sociais do Governo Federal, não apenas ao Programa Bolsa Família.

Segundo a autora Walkiria Leão do Rego, que realizou entrevistas por algumas regiões pobres no sertão nordestino do país, podem-se notar mudanças significativas na vida das pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família. Uma das mudanças que a autora enfatiza é o início da superação da cultura de resignação – onde as pessoas nada fazem de suas vidas, além de esperar… pelas doenças, pela seca e pela morte. Apesar de o auxílio já ter trazido mudanças significativas na vida das famílias, ainda é insuficiente o valor recebido.

 

Hipótese

 

O que o Bolsa Família e outros auxílios governamentais promovem às mulheres, está longe de ser uma nova revolução. Até por questão de consciência revolucionária, que infelizmente é desconhecida por esta classe populacional. Mas o que pode ser sim, é o início de uma pré revolução, o início de uma consciência de si mesma e a possibilidade (ainda que mínima) de tomar conta de sua própria vida e mudar seu destino.

A renda monetária, por menor que seja, provoca alterações na vida das famílias recebedoras, especialmente nas mulheres. Apesar de o valor não tirar essas famílias da faixa da pobreza, elas conseguem perceber a diferença e serem reconhecidas pelo Estado como cidadãos e também, pela primeira vez passam pela experiência de uma renda regular.

No livro Vozes do Bolsa Família (2014), a autora Walkiria Leão do Rego relata experiências e faz entrevistas ao longo de seis anos, com diversas mulheres, relatando como o auxílio alterou suas vidas. Há relatos básicos onde a alteração é mínima, porém não insignificante, como comprar um alimento diferente para alimentar seus filhos, e outras maiores questões de divorcio e empoderamento e autonomia de sua própria vida.

Ao receber um dinheiro que é somente seu, as mulheres passam a desenvolver um empreendimento econômico próprio, engajam-se em novas experiências sociais e passam a se reconhecer, a si e as suas famílias, de modo diferenciado, tendo um controle de sua vida pessoal e familiar coletiva.

 

Considerações Finais

 

A reflexão sobre o impacto das políticas públicas de assistencialismo tem como pressuposto que o acesso a estes benefícios contribui para uma vida mais autônoma, através do ganho próprio e de uma situação financeira favorável. Por meio da expansão das liberdades, que é, segundo Sen (2000), condição fundamental para o desenvolvimento e a evolução das comunidades e das sociedades, tendo as políticas públicas uma participação fundamental nesse processo.

A hipótese de que as mulheres ao poder administrar e contribuir com os recursos financeiros da família tendem a investir mais em alimentação e educação, assim como outros necessários do dia-a-dia se comprova em diferentes estudos aqui citados.

A relação de empoderamento x condição de agente é uma via de mão dupla. Ou seja, um determina o outro. Por tanto, a construção da sua condição de agente e de seu empoderamento a partir do acesso a uma política de crédito assistencialista não se faz menos significativa para a autonomia destas mulheres do que a conseguida por meio das lutas do século passado. As mulheres são as lideres de família, cadastradas para receber o benefício do Governo Federal, e justamente por isso é que elas é quem são as responsáveis por buscar este acesso e pela manutenção, colocando-se dentro das exigências necessárias para não perder o mesmo.

Esta pesquisa não se encontra finalizada, pois sendo ainda muito recente não nos dá base suficiente para medir suas modificações a longo prazo e também devido a importância recebida do governo ser relativamente pouca, não houveram mudanças significativas em relação as outras mulheres que não possuem o acesso a este crédito. O que se pode notar é um aumento da auto-estima e da confiança em si próprias, pois ao terem a possibilidade de administrar uma renda própria, ainda que pequena, tem também a possibilidade de escolha, e é esta possibilidade que gera o início de uma autonomia, sendo os primeiros passos em direção ao fim da submissão – ainda que financeira.

 

Roana Kerchner – Graduada em Historia e em Design de Moda, com especialização em Historia Contemporânea e enfase em gênero. Mora atualmente nos Estados Unidos onde estuda historia da Moda e gênero. Pesquisa indumentaria e sociedade.

 

Referencias Bibliográficas:

ALVES, Branca M; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
CHRISTO, Carlos Alberto. Marcas de Baton. Revista Caros Amigos, 2001. Disponível na internet: (https://secundo.wordpress.com/2010/11/21/marcas-de-batom-parte-i/) acesso em dezembro de 2014.
GEBARA, Ivone. Cultura e Relações de Gênero. São Paulo:Cepis, 2001.
REGO, Walkiria D. M. PINZANI, Alessandro. Liberdade, Direito e Autonomia – O caso do bolsa família. Revista de Ciências Sociais, 38, Abril de 2013, pp. 21-42
REGO, Walkiria D. M. PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Direito e Cidadania. São Paulo, Ed UNESP, 2013.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Porto Alegre, 1990.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
TEIXEIRA, Nelson C. Fome Zero, A solução antropofágica para a pobreza no Brasil. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2004 (http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/beneficios) Acesso em dezembro de 2014. (http://www.mds.gov.br/bolsafamilia) Acesso em dezembro de 2014.

 

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