Crédito/ Instragram @crisvector

Segundo Barbosa [1], professor da UFPEL, houve o nascimento de uma metanarrativa onde o homem é o principal responsável por sua empregabilidade ou empreendimento (no sentido de ser o principal e o único fator determinante). Ele ressalta que o nascimento desse reflexo tem origem na modernidade e na globalização, mostrando que, segundo relatos, o homem moderno tem sua autonomia ampliada e que, paralelamente, nasce um tipo agudo de individualização.

Essa individualização e metanarrativa pode ser observada claramente quando se trata de endeusamento do “empreendedor de si mesmo”. Muitas vezes, vemos pessoas “batendo palmas” e glorificando os entregadores de comida por aplicativo, por exemplo, e, conforme foi observado por Rita Von Hunty [2], esse endeusamento é equivocado, uma vez que estes são vítimas da sociedade, não heróis.  

Fica longe deste texto à crítica àqueles que fazem dos aplicativos sua única (ou principal) fonte de renda. Há total compreensão à necessidade de rendimento para sobreviver. A crítica embutida neste escrito, no entanto, busca dissecar um pouco mais a lógica do trabalho na sociedade atual e fazer uma reflexão para que percebamos que, pouco a pouco, nossos direitos estão sendo roubados e nossas condições de trabalho estão sendo sucateadas.

Retomando a observação feita por Karl Marx [3], “Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização dos mundo dos homens”. Além disso, o trabalhador se torna uma mercadoria mais barata a cada mercadoria que produz. Partindo deste pressuposto, podemos criar paralelo com a modalidade de trabalho dentro de aplicativos de entrega (como iFood, Rappi, UberEats etc).

Inicialmente, o trabalho é colocado pelos aplicativos como uma oportunidade inovadora que pode propiciar trabalho e renda ao trabalhador e trabalhadora que encontra-se às margens do mercado de trabalho. Entretanto, no discorrer da situação e com o desenvolvimento e firmamento do método de entregas nas cidades, a relação aplicativo-entregador se torna cada vez mais sanguinária e benéfica somente para o grande capitalista. 

De acordo com a matéria da Época Negócios [4], existem entregadores que dormem na rua, pedalam 30km (trajeto casa – local de espera das entregas – casa) e trabalham cerca de 12 horas por dia. A “cereja do bolo” fica por conta da ausência de contratos trabalhistas ou qualquer garantia de empregabilidade fixa. Dentro disso, caso qualquer um dos trabalhadores e trabalhadoras se acidente, ele perde, de uma hora para outra, todo seu sustento (no caso da composição da renda ser exclusivamente dos aplicativos)

Então, podemos voltar ao que Marx teorizou dentro da objetificação do trabalho:

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho [que] está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem. (2004, p. 86)

Deste modo, a força de trabalho do trabalhador é trocada por qualquer migalha (migalha esta com importância extrema, visto que ela fornece a subsistência do entregador), gerando lucros exorbitantes para as empresas bilionárias donas dos aplicativos, que repassam uma parte ínfima ao entregador que é obrigado a se manter dentro daquela situação por falta de opção. 

Trazendo para os dias atuais, segundo a reportagem da BBC [5], a classe de entregadores por aplicativos tem se unido para reivindicar “melhorias nas condições de trabalho e pagamento”. Deste modo, convocaram uma greve à categoria que, segundo a CUT [6] tem adesão de 98% dos trabalhadores e trabalhadoras. A greve ocorreu primeiramente no dia 01 de julho de 2020, em diferentes cidades brasileiras e se repetirá no dia 25 de julho, sábado.

Este movimento, acende uma fagulha de esperança, porque podemos observar a classe trabalhadora se unindo e brigando por seus direitos, se configurando como uma oportuna (para nós, como classe trabalhadora) “pedra no sapato” dos grandes capitalistas que estão por detrás dos “amigáveis” aplicativos de entrega. 

Por fim, fica o grito de pedido para que a classe trabalhadora possa se unir novamente e rejeitar veementemente qualquer perda de direito ou configuração de neoescravidão na estrutura do trabalho do mundo moderno.

 

Daniel Perrut dos Reis

 

Referências:

[1] BARBOSA, Attila Magno e Silva. O empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho. Revista de Sociologia e Política, v. 19, p. 121-140, 2011. 

[2] HOME OFFICE – TEMPERO DRAG. Disponível em <https://youtu.be/ytpEq9eCol4> Acessado em: 25/06/2020

[3] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boi Tempo, 2004.

[4] Dormir na rua, pedalar 30 km e trabalhar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/05/dormir-na-rua-pedalar-30-km-e-trabalhar-12-horas-por-dia-rotina-dos-entregadores-de-aplicativos.html> Acessado em: 25/06/2020

[5] Queremos parar o serviço’: os movimentos de entregadores que brigam por melhorias e convocam greve. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53124543> Acessado em: 25/06/2020

[6] 98% dos entregadores de aplicativos aderem à greve e até clientes vão apoiar. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/98-dos-entregadores-de-aplicativos-aderem-a-greve-e-ate-clientes-vao-apoiar-eef9> Acessado em: 25/06/2020

[7] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: novo proletariado de serviços na era digital. 2a ed. São Paulo: Boitempo, 2020. 

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