Na Baixa Idade Média e o começo da Idade Moderna, centenas de milhares de mulheres foram vitimadas por formas de genocídio institucionalizadas. Elas eram acusadas de práticas de bruxaria, o que englobava desde adoração ao demônio, infanticídio, maldições, aborto, transgressões sexuais – acusações que muitas assumiam depois de serem submetidas a métodos de tortura como estupro, serem forçadas a assentos de ferros montados acima do fogo e mutilação.

A caça às bruxas aconteceu paralelamente a um movimento de desvalorização do trabalho feminino, do controle das mulheres sobre a própria reprodução (o que foi tolerado durante parte da era medieval) e disciplinação do corpo como um interesse estatal. A perseguição também coincide com crises demográficas de uma Europa fustigada pela fome e pelas pestes, novas políticas de terra como os cercamentos de áreas antes de uso comuns pelo campesinato e com a transição do sistema feudal para o capitalismo mercantil. Havia uma incompatibilidade com a “magia”, mesmo nas modalidades inofensivas com a crença em dias de sorte e a disciplina do trabalho.

A teoria formulada no livro “Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva”, escrito pela intelectual e professora universitária italiana Silvia Federeci, é de que há uma ligação entre a caça às bruxas e a diferente divisão de trabalho que surgiu com o início do capitalismo, que exigiu confinar as mulheres à reprodução de trabalhadores. Na época, elas foram forçadas à disciplinação para que pudessem para produzir filhos e filhas para o Estado, ao mesmo tempo em que eram afastadas dos meios de receber salários suficientes para a subsistência.

 

DESVALORIZAÇÃO PROFISSIONAL 

Durante a valorização da família nuclear, as mulheres foram excluídas de ofícios que antes ocupavam, como a produção de cerveja, trabalhos como tecelãs, fiandeiras e comércio ambulante, para serem relegadas ao trabalho mal remunerado doméstico. Até mesmo a atividade de parteira, antes predominantemente feminina, foi progressivamente vedada a elas e transformada em uma profissão masculina, concentrada então nas mãos de médicos.

No livro, traduzido no Brasil pelo Coletivo Sycorax, a autora tece uma linha do tempo que retrata o combate estatal e da Igreja aos movimento dos hereges e os impactos de acontecimentos, como a Peste Negra, na crise do trabalho entre os predecessores dessa perseguição. Ela também relaciona a privatização das terras na Europa, a desvalorização do trabalho feminino e o empobrecimento da classe trabalhadora com a transformação das mulheres como um bem comum.

O livro destaca que não é à toa que a imagem clássica da bruxa é de uma velha, maltrapilha, semelhante às figuras das idosas solteiras e viúvas que mendigavam pelo continente, depois de perder os meios de sustento como reflexo aos elementos da transição para o novo sistema econômico.

 

CALIBÃ E OS NATIVOS

Federeci também aponta que a caça às bruxas e o controle reprodutivo não estiveram limitados ao território europeu. O próprio título do livro “Calibã e a Bruxa” é uma referência a essa associação. Filho da bruxa Sycorax, Calibã é um personagem da tragicomédia “A Tempestade”, escrita por William Shakespeare. Retratado como meio-humano e meio-monstro pelo dramaturgo, ele acaba forçado à servidão na peça e, posteriormente, viria a representar o anticolonial caribenho.

As populações ameríndias e africanas escravizadas durante o processo de colonização também eram alvo de acusações de adoração ao diabo, práticas sexuais inaceitáveis e canibalismo, o que justificava seu massacre. Esses julgamentos eram ferramentas utilizadas por missionários e colonizadores para a subjugação dos povos locais.

Ela demonstra também como o controle reprodutivo e a desvalorização feminina impostos pelos colonizadores a essas populações também estiveram presentes nessas ações. Assim, tanto sistema de plantations e a própria escravidão se mostram cruciais para a história do capitalismo, formando uma divisão de trabalho, produção de bens e consumo que integrou o trabalho escravo à reprodução da força de trabalho europeia.

“Calibã e a Bruxa” descreve como tanto a caça às bruxas quanto a privatização das terras e a escravidão colaboraram para a formação do proletário moderno em diferentes continentes.

 

INVESTIGAÇÃO

Com uma linguagem acessível e o uso de ilustrações que ajudam a visualizar toda a campanha que justificou o genocídio das “bruxas”, o livro se debruça sobre um fenômeno pouco estudado e pouco apontado na história do proletariado, embora tenha custado a vida de centenas de milhares de mulheres. Além disso, a autora tece essa análise sob uma perspectiva ainda não investigada sobre as circunstâncias históricas e razões que levaram essa perseguição a acontecer junto com o surgimento do capitalismo.

Combinados, a escassez de material sobre o assunto, o aparecimento de casos de caça a bruxas literais ou não e o surgimento de movimentos para demonizar o controle feminino sobre a própria reprodução ainda na atualidade, tornam a leitura de livros como “Calibã e a Bruxa” e o estudo desses fenômenos mais que necessários.

Rafaela Tavares Kawasaki. Jornalista de 31 anos, com uma dependência quase física de livros. Feminista até a última célula.