Hoje escrevo essa carta para a mulher que fui. Uma despedida. Autoperdão.

Sempre temi a morte. Sempre tive apego a vida e as coisas. No entanto, esse tempo único que atravessamos me fez notar que o fim é o início.

Reiniciar a vida requer coragem. Desmontar e se montar de novo leva tempo, esforço e dedicação. Como é difícil se dedicar a si mesma. Ser a sua própria zeladora. Se enamorar, se respeitar, se priorizar.

Conjugações nada fáceis para uma mulher negra. Afinal, o fato de existir já é por si só um incômodo, imagina se autoamando.

Despertar o orì (consciência) para a sua existência é feito reza diária. É o alimento do café da manhã. A poesia do fim de tarde. O frio na noite quente.

Sou uma folha acordada depois que toda a minha plumagem caiu. Me deixei cair. Sentir o chão, o seu cheiro e o seu árido solo.

Esperar a chuva nem sempre se dá de modo paciente. Me inquietei inúmeras vezes pela lentidão do tempo. Questionei-o, então, pela demora. A resposta veio de dentro para fora quando observei que não estava madura, que sou ainda um broto em nascimento.

Olhar o meu avesso foi assustador. Enxergar os meus defeitos e reconhecê-los foi como despertar os meus monstros indomáveis.

Alguns se foram de modo mais rápido. Outros foram feras feridas e que deixaram marcas de queloide avolumado.

Entre cortes na carne e no peito sobrevivi. O sofrimento do rompimento é o sinal da libertação.

Escrevi a dor para que ela não fosse em vão. Para não deixar que o tempo a esquecesse sem antes entender o seu recado.

De todas as minhas dores pude alcançar a minha força. Me levantei diante das mortes e tenho me tornado vida. Vida em si mesma. Vida lugar. Vida dia-a-dia. Vida que se vai e não se esquiva. Uma vida em e de palavras.

Vida feita de folha que voa e não se prende a nada. Uma vida como cobra que descama antes e depois de serpentear a vida.

Para a mulher que fui digo que me sou!

23 de dezembro de 2020 – o tempo das flores.