“Os homens que praticam assédio são os nossos homens, os homens da nossa sociedade. (…) A gente tem uma imagem de que esses agressores são monstros que não têm rosto, que andam de capuz numa rua deserta, que pegam mulher desconhecida, a violenta de alguma forma e foge, some e a gente nunca mais encontra. São os homens que nós conhecemos que estão perpetuando essa cultura.” (CHEGA DE FIU FIU – O FILME, 2018)

 

“Chega de Fiu Fiu – O Filme” é um documentário brasileiro lançado no ano de 2018 e dirigido por Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão. A produção surge a partir de uma campanha contra o assédio sexual em espaços públicos, realizada pelo Think Olga, e retrata a violência de gênero nos espaços públicos urbanos. A partir de imagens coletadas por câmeras escondidas, acompanhamos o dia a dia de três mulheres: Rosa, uma mulher trans de 20 anos, artista e que vive na cidade de Gama/DF; Raquel, mulher negra de 29 anos, manicure e estudante de enfermagem, que mora na periferia de Salvador/BA; e Tereza, mulher branca de classe média, 33 anos, professora de História, que mora em São Paulo/SP.

Apesar de possuírem vidas bastante diferentes, Rosa, Raquel e Tereza têm a violência de gênero como um fator comum. Ao longo do documentário, câmeras escondidas mostram o dia-a-dia dessas mulheres – a ida ao trabalho, à faculdade, ao mercado – e flagram os olhares masculinos e as palavras ofensivas e ultrajantes proferidas por homens que cruzaram seus caminhos.

Além dos relatos das três protagonistas, o filme traz análises e diagnósticos de uma série de especialistas, das mais diversas áreas, acerca das origens e das causas da violência contra as mulheres nas cidades. Apresenta também alguns dados bastante significativos e sintomáticos: 86% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de assédio em espaços públicos (Pesquisa Action Aid, 2015); a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil (FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública); o Brasil é o 5º país no ranking de assassinatos de mulheres no mundo (Mapa da Violência, 2015).

O Mapa da Violência do ano de 2015 mostrou que, no Brasil, 35,1% das agressões sofridas pelas mulheres partiram de seus parceiros ou ex-parceiros. Por outro lado, o documentário “Chega de Fiu Fiu – O Filme” dá conta de que a grande maioria dos casos de assédio e violência contra as mulheres nos espaços públicos é praticada por homens desconhecidos das vítimas. Esses dados permitem sugerir que a violência de gênero possui múltiplas faces, podendo ocorrer tanto no espaço privado/doméstico quanto no espaço público. Seu fator comum são os sujeitos envolvidos na ação: o ato de violência – que pode ocorrer tanto na rua quanto em casa – quase sempre parte dos homens – conhecidos e desconhecidos – e se direciona às mulheres.

Muitos fatores têm sido apontados pelas feministas como possíveis explicações para as violências que atingem especificamente a parcela feminina da população: o desenvolvimento de uma sociedade fundada sob as normas patriarcais; a separação entre público e privado, que sugere que o “lugar da mulher” é no espaço doméstico; a própria configuração dos centros urbanos, que se constituem como espaços hostis à presença das mulheres; entre outros fatores. O documentário aborda todas essas questões, mas também traz à tona o tópico referente ao papel dos homens enquanto agentes causadores e reprodutores dessa violência, ao mesmo tempo em que os coloca como sujeitos capazes de refletir sobre suas próprias práticas e atitudes – e, portanto, de transformá-las – e sobre o meio social em que estão inseridos.

 

A MASCULINIDADE COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

 

“Chega de Fiu Fiu – O Filme” traz a possibilidade de refletirmos acerca da construção social da masculinidade e sua relação com a violência contra as mulheres. Simone de Beauvoir (2016 [1949], p. 11), em O segundo sexo: a experiência vivida, escreveu que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.”. A despeito dos muitos significados atribuídos a essa famosa – e polêmica – frase, Beauvoir deixa claro que o “ser mulher” não é algo naturalmente dado ou biologicamente definido e, por isso mesmo, inalterável pelo resto da vida. A autora pretende demonstrar que o significado hegemônico atribuído ao “ser mulher” é algo social e culturalmente definido e, portanto, passível de ser transformado. O mesmo pode ser afirmado a respeito dos homens: a masculinidade e os significados a ela associados são construções históricas, sociais e culturais. Assim, parafraseando Beauvoir, pode-se afirmar que ninguém nasce homem, mas torna-se homem em função daquilo que o tempo histórico, a sociedade e a cultura definem como paradigmas da masculinidade.

Em certo momento do filme, uma roda de conversa entre homens aborda a temática do assédio a partir da perspectiva masculina. Os homens ali presentes são incentivados pelo coordenador da conversa a pensar a questão de modo a compreenderem o porquê de praticarem esse tipo de ação direcionada às mulheres, e de modo a perceberem essa ação como uma forma de violência de gênero. Muitos deles, ao responderem à questão colocada pelo coordenador, apontam as mulheres como responsáveis pelo assédio, seja por meio das roupas que usam, seja por meio da conduta que adotam. Após muitas provocações e “cutucadas”, um dos homens sugere um terceiro caminho como forma de perceber o problema: a forma como os homens são criados influencia na maneira como eles se relacionam com as mulheres. Um dos participantes, inclusive, profere a seguinte frase: “Os homens foram educados para se relacionar com as mulheres de modo a entender que têm o controle sobre os corpos delas”.

 

MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS E PERIFÉRICAS

 

Raewyn Connell (2013), em seu trabalho de repensar a ideia de masculinidade hegemônica, afirma que essa noção predominante de masculinidade foi inicialmente entendida como um padrão de práticas que permitiu a continuidade da dominação dos homens sobre as mulheres. A autora aponta que:

“A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas. A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.” (CONNELL, 2013, p. 245)

Os debates atuais têm sugerido, porém, algumas mudanças no conceito ao afirmarem que as concepções de masculinidade, sejam elas hegemônicas ou periféricas, estão sujeitas a transformações. Isso porque a sociedade contemporânea impõe, a todo o momento, uma série de desafios e de ameaças à hegemonia masculina, e esta, por consequência, está em contínua transformação, a fim de adaptar-se e ajustar-se às normas sociais e culturais vigentes. É possível afirmar, então, que a masculinidade não é uma entidade fixa que essencializa e dicotomiza as relações de gênero. Pelo contrário, falar em masculinidades, no plural, significa entendê-las como ações sociais relacionais, que se diferenciam de acordo com o contexto social e com o tipo de vínculo que está sendo estabelecido entre os sujeitos.

No próprio documentário é possível encontrar indícios do que foi acima exposto. Em diversos momentos, as falas dos homens e também das próprias mulheres assediadas vão em direção à ideia de que os homens assediam/violentam para afirmarem sua masculinidade para os outros homens ali presentes. A fala de Raquel é bastante significativa: “Eu acho que muitas vezes eles querem se amostrar. Assumir a masculinidade e mostrar pros amigos”. Na roda de conversa entre homens, um deles afirma que: “A cantada na rua o homem faz mais para aparecer. É pra mostrar pros amigos que é superior”. Esses relatos reforçam a ideia de masculinidades como categorias relacionais, que se constroem com e a partir da presença do outro.

Além disso, a própria roda de conversa e as problematizações e autocríticas que dali emergem são indícios de que a concepção de masculinidade hegemônica não é uma categoria estável, pelo contrário, ela pode ser desconstruída e recriada pelos próprios homens. Connell, mais uma vez, sugere que:

“Os homens podem se esquivar dentre múltiplos significados de acordo com suas necessidades interacionais. Os homens podem adotar a masculinidade hegemônica quando é desejável, mas os mesmos homens podem se distanciar estrategicamente da masculinidade hegemônica em outros momentos. Consequentemente, a “masculinidade” representa não um tipo determinado de homem, mas, em vez disso, uma forma como os homens se posicionam através de práticas discursivas.” (CONNELL, 2013, p. 259)

Judith Butler (2003) afirma que gênero é performance:

“Gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de uma estrutura rígida e reguladora que se consolida, com o passar do tempo, produzindo o que aparenta ser substância, uma espécie ‘natural’ de ser.” (BUTLER, 2003, p. 33).

Assim, a masculinidade não é uma característica que os homens possuem, ela é, sim, um efeito das coisas específicas que os homens fazem e, principalmente, falam.

Deborah Cameron (2010) destaca, a partir do conceito de fala generificada, que a fala também pode ser entendida como uma estilização repetida do corpo. A autora defende que é a linguagem, entre outras coisas, que constrói os sujeitos, ou seja, a masculinidade é produzida pelo modo de falar, e não o oposto. Assim, ela aponta para a importância de nos perguntarmos de que maneira os recursos linguísticos são utilizados para se produzir a diferença de gênero. Através do documentário “Chega de Fiu Fiu – O Filme” é possível perceber a centralidade da fala, sobretudo diante da necessidade de se afirmar a masculinidade para o outro. O assédio e a cantada podem ser considerados mecanismos discursivos que são utilizados pelos homens de modo a reiterarem sua masculinidade para outros homens.

Ainda segundo Cameron, a ideia da masculinidade como uma performance e como um mecanismo discursivo dispõe do aspecto positivo da não-fixidez, da mutabilidade, da volubilidade. Neste sentido, ela está o tempo todo sendo confrontada e transformada:

“Ao mesmo tempo em que insiste que a noção de gênero é regulada e policiada por normas sociais extremamente rígidas, Judith Butler não reduz homens e mulheres a autômatos programados, pela socialização na infância, a repetir pelo resto de suas vidas o comportamento adequado de gênero. As pessoas são, segundo ela, agentes conscientes que podem – apesar de, com frequência, com certo custo social – optar pelo engajamento em atos transgressores, subversivos ou que denotem resistência. Enquanto produtores e agentes ativos, ao invés de reprodutores passivos de comportamentos generificados, homens e mulheres podem fazer uso da consciência que têm sobre os significados generificados embutidos em momentos específicos da fala e do agir a fim de produzir uma gama de efeitos.” (CAMERON, 2010, p. 133)

A roda de conversa presente no documentário pode ser um exemplo da volatilidade da noção de masculinidade hegemônica. A todo o momento, os homens ali presentes são confrontados e convidados a refletir acerca de suas práticas, atitudes e maneiras de se compreender o mundo e as relações que estabelecem com as mulheres e entre si. Esse movimento de reflexão sobre si mesmo cria a possibilidade de desnaturalização da violência de gênero e de que os homens compreendam esses atos como violências de fato, e não simplesmente como “cantadas”, “flertes” ou “elogios”.

LAURA GOMES BARBOSA é formada em Ciências Sociais. Atualmente cursa mestrado em Ciências Sociais e Especialização em Relações de Gênero e Sexualidades: Perspectivas Interdisciplinares

 

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016 [1949].

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CAMERON, D. Desempenhando identidade de gênero: Conversa entre rapazes e construção da masculinidade heterossexual. In: OSTERMANN, A. C. e FONTANA, B. Linguagem. Gênero. Sexualidade. Clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010

CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 21, nº 1, p. 241-282, 2013.

Compartilhe...