Caso Doca Street revela, já no nome com que entrou para a história, uma injustiça: esquece a vítima, Ângela Diniz, e eterniza o assassino, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca, que a matou com quatro tiros.

Ângela recebe agora, com o podcast Praia dos Ossos, um original da Rádio Novelo, a abordagem sensível da apresentadora Branca Vianna e da pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux. Elas foram a Minas Gerais e refizeram o percurso da jovem de boa família que escapou da vida de rica dona de casa para o jet set carioca – e para o trágico fim, numa casa na Praia dos Ossos, em Búzios.

Mas o que levou Branca a se debruçar por mais de um ano e meio sobre a história não foi o assassinato em si, apesar do sucesso desse gênero de podcasts nos Estados Unidos (Serial é o exemplo mais significativo, com centenas de milhões de downloads) e no Brasil (o Caso Evandro tem uma legião de fãs). Afinal, não há nenhum mistério neste true crime: sabemos quem matou, quando e onde.

“Fiquei surpresa ao descobrir que esse crime não era conhecido das gerações mais novas, apesar de ter sido tão noticiado na época e da importância que ele teve para o movimento feminista. Achei que seria um bom momento para as jovens feministas conhecerem o trabalho das veteranas. E a história é ótima, muito boa para contar em forma de podcast”, conta a apresentadora.

Mesmo que não tivesse sido vítima de um feminicídio e nem o estopim do movimento “Quem Ama Não Mata”, Ângela Diniz viveu 32 anos que dão uma excelente história. Dessas com direito a sexo, algo de drogas, passagens pela polícia e farras inesquecíveis. Tudo acompanhado de perto e desde cedo pela imprensa.

“Tivemos que lidar com um mar de cobertura jornalística da vida da Ângela, desde notinhas em colunas sociais nos jornais mineiros até as centenas de reportagens sobre a morte dela e os julgamentos do assassino. Acabei consultando mais de quarenta publicações diferentes, desde “Curvelo Notícias” até “A Voz do Chauffeur”, lembra Flora.

Além do mergulho inédito em acervos de jornais, rádios e redes de televisão e da leitura atenta de autos de diferentes processos, a equipe da Rádio Novelo entrevistou mais de 60 pessoas. “Um dos maiores desafios foi convencer alguns entrevistados que relutavam em falar com a gente a aparecerem no podcast. Pedimos a ajuda de muitas pessoas, usamos toda a nossa cara de pau e tivemos uma produtora muito persistente e convincente, a Claudia Nogarotto. E mesmo assim teve gente que, depois de ter topado a entrevista, voltou atrás e retirou a autorização Essa história ainda mexe com muita gente”, diz Branca.

As gravações foram realizadas em estúdios e também na casa dos entrevistados, no Rio de Janeiro, em Búzios, São Paulo e Belo Horizonte. Durante as visitas, a equipe esteve sempre acompanhada de técnicos de som com experiência em cinema documental, atentos à captação de detalhes do som ambiente que ajudam a construir a textura sonora do podcast e a levar o ouvinte para dentro da narrativa.

Com a apuração em mãos (cheia de detalhes que corrigem erros factuais que a imprensa repete há décadas), veio um novo desafio: contar a história da melhor forma possível. “Demoramos para perceber que precisaríamos da ajuda de roteiristas profissionais. Até cair a ficha, fizemos mais de doze montagens só do primeiro episódio. E mesmo depois de contratarmos os roteiristas, a produção levou muito tempo e deu muito trabalho até chegarmos ao formato final”, diz Branca, sobre o trabalho ao lado de Flora Thomson-DeVeaux, da diretora criativa Paula Scarpin, da montadora Laís Lifschitz, e dos roteiristas Aurélio de Aragão e Rafael Spínola.

Praia dos Ossos joga luz sobre as transformações por que o Brasil passou nos anos que se seguiram ao assassinato de Ângela Diniz. Doca Street foi julgado uma primeira vez em 1979, e sua defesa estava alicerçada no machismo que prevalecia na sociedade e na imprensa naquele momento. Evandro Lins e Silva, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, defendeu o réu atacando a vítima – segundo ele, uma “Vênus lasciva” que não foi assassinada, mas “queria morrer”.

No segundo julgamento, dois anos depois, o Brasil era outro: a abertura política, o fortalecimento do movimento feminista e a progressiva emancipação das mulheres reverteram a injustiça da primeira condenação, tão leve que Doca foi posto em liberdade assim que a sentença foi pronunciada.

Em seus oito episódios, Praia dos Ossos é uma contribuição sem precedentes à historiografia do feminismo no Brasil. E, sem deixar de ser entretenimento da melhor qualidade, é também uma reflexão cortante sobre o mal que o machismo da sociedade, da imprensa e da justiça podem fazer a uma mulher e a sua memória.

“Adoro podcasts e gosto do desafio criativo de usar somente áudio para contar uma história. Como ouvinte, gostaria que alguém tivesse contado tudo que aconteceu no caso da Ângela em forma de podcast. Como ninguém fez isso, tomamos a dianteira. Foi muito divertido e já estou com saudades das gravações”, diz Branca Vianna, que desde 2018 apresenta o Maria Vai Com as Outras, podcast da revista piauí sobre mulher e mercado de trabalho.

Antes mesmo de sua estreia, Praia dos Ossos foi licenciado pela Conspiração Filmes, que será responsável pela adaptação da história para uma série de ficção.

O primeiro episódio estreia em todas as principais plataformas de podcast no dia 12 de setembro, e a cada sábado irá ao ar um novo episódio. Acompanhe o lançamento e mais informações sobre o projeto nas redes sociais da Rádio Novelo (@radionovelo) e no site do programa.

 

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