“É preciso ter um caos dentro de si para gerar uma estrela dançante”. Nietzsche.

 

Temos nos distanciado de nós mesmos e nos aproximado do nada, de mundos que não o nosso… Assim, a vida perde as cores e a força psíquica que sustentam a existência.

O suicídio, a depressão e outros transtornos psíquicos aparecem como sinal da necessidade de redefinição, como um pedido de ajuda de alguém que deseja matar a dor, o vazio que sente, e não a si mesmo. Trata-se de uma tentativa errônea de acabar com o sofrimento que não cabe na lógica da vida, e muito menos, na lógica de quem está de fora, estabelecendo julgamento distanciado. Não busco justificar os atos, mas valorizo a vida. O objetivo está em falar do que tem sido negligenciado em sua origem, em meio a questão racial, que tem sido deixada pra lá… quem sabe para nunca mais.

Hoje, proximidade não mais necessariamente tem a ver com espaço geográfico. Namoramos, compramos, estudamos, jogamos, conversamos à distância. A tecnologia afeta as formas como nos relacionarmos, nossa forma de existir, de ser no mundo. Alguns cliques podem mudar muita coisa, e quem sabe, tudo.

Em meio à globalização e um sistema capitalista, é difícil dar atenção às demandas da alma. A liquidez do tempo não nos permite prestar atenção em algo que não seja produzir ou consumir. É inegável que este estilo de vida nos adoece. Temos ouvido falar do aumento de casos de suicídio, dos transtornos mentais. Quem não tem um amigo, vizinho, familiar num quadro depressivo, ou com ataques de pânico, fobia? Você conhece alguém que tentou suicídio, ou conheceu alguém que efetivou o ato?

Quando li a primeira vez que “o corpo adoece para não morrer”, fiquei imaginando como seria possível essa contradição. Porém, a enfermidade, as crises existenciais, devem ser vistas como um sinal de que limites estão sendo ultrapassados, de que precisamos reorganizar nossa vida. Diante destes casos sempre nos perguntamos: por que fulaninha, fulaninho do nada tirou a própria vida? Mas ela/ele parecia estar bem, publicava fotos no Facebook, no Instagram…

Dizem por aí que nem tudo que parece é. Sobre este fato Rollo May afirma que “o problema fundamental do homem no século XX, é o vazio. Com isso quero dizer não só que muita gente ignora o que quer, mas também, frequentemente, não tem uma ideia nítida do que sente”.

Nos tempos chamados modernos, pouco espaço tem sido dado às expressões da alma. Nosso sistema de produção tornou-se prejudicial a estilos de vida autênticos, nos levando a ser indivíduos em série, passivos, que vivem as tendências ditadas pelo sistema. O ser-no-mundo acaba por perder-se de si mesmo, a viver o outro – terreno fértil para que a crise existencial se instale.

A crise, segundo a Abordagem Centrada na Pessoa, é vista como um sinal de que algo não vai bem na psique e que brama por redefinição, para dar respostas ao vazio, angústia. Isto é trazido pela incongruência (que significa comportar-se de forma incompatível a sua identidade) e inautenticidade (ir contra aquilo que sente) que o constitui na sua relação com o outro. Tem sido vista, ainda, como um mal que sobrevém ao indivíduo, algo que deve ser evitado. As formas inautênticas de viver têm sido ambiente frutífero para depressões, ansiedade e atitudes drásticas como a tentativa de suicídio. São, portanto, fatos que nos sinalizam a ausência de educação e sensibilidade psíquica. É vivida pelos “acometidos” para compreenderem o pedido de redefinição feito pelos transtornos experienciados na saúde mental.

Em se tratando de inautenticidade, temos sido convidadas a introjetar estilos de vida pertencentes a determinadas culturas marcadas pelo eurocentrismo no contexto de um país escrito sobre as cores do extrativismo, exploração desordenada, que manteve trezentos anos de escravidão, onde beleza e bondade nada tinham a ver com o negro e sua cultura. Mesmo que a lei Áurea tenha sido instituída, e a abolição da escravidão promulgada, na vida do povo negro pouco se mudou na obtenção de alguma qualidade de vida.

Continuamos, desse modo, existindo em uma sociedade eurocêntrica, lugar em que as mulheres – principalmente as negras, devido a sua cor de pele – têm sofrido o machismo, este é somado ao preconceito racial, entre outros problemas. Sair de casa depois das 22h, sozinha, é quase uma tentativa de suicídio. Vestir short mais curto, e colocar batom vermelho pode ser confundido com perder o direito a ditar as regras sobre o próprio corpo, sujeitar-se à violação do mesmo. Sociedade em que, enquanto a hora passa, 503 mulheres são vítimas de algum tipo de violência (Santos,2017).

No dia a dia, fica óbvio que poucos espaços sociais são abertos a todas as pessoas. Há profissões de homens versus profissões de mulheres, bem como salários, roupas, comportamentos, palavras permitidas para eles negadas à elas. Uma liberdade que depende de gênero, etnia, classe social. O que é comum em todos os casos, é a desvalorização e violação do direito ser humano chamado mulher. Em meio a este cenário, ser mulher negra é estar em um lugar social que exige resiliência, empoderamento e atividade para dar conta das diversas expressões de violência. São agressões de discurso, da indústria, das organizações, que sutil e abertamente buscam nos capturar e embranquecer com ideologias e modelos de beleza, de cultura, religião. Impõem padrões eurocêntricos, como sendo bons, divinos, únicos em detrimento de todos os outros em suas diversas possibilidades.

É necessário um esforço cotidiano para não ser vitimizada e não se vitimizar. A mulher negra precisa conhecer sua história e a história da sociedade em que está inserida. É preciso tomar consciência dos tipos de violência que pode vir a sofrer, bem como combater o discurso fascista que nos obriga a falar tudo no masculino; a utilizar palavras como “denegrir” (tornar negro) como se isso fosse uma condição depreciativa; a repetir ditados preconceituosos como: “preto quando não caga na chegada, caga na saída” ou “todo preto se parece”. Nem sempre observamos as questões estruturais neles envolvidas: as absorvemos, e depois, desassociá-las é um exercício exaustivo. É imprescindível desenvolver o olhar distanciado das situações de conflito e notar que a agressora(o) não tem razão, mas brutal ignorância e ausência de humanidade. Notar que ela (ou ele), ainda não conquistou a excelência da existência que é saber reconhecer outro humano, que o outro não precisa ser do mesmo gênero e ter a mesma cor de pele, e simplesmente respeitá-lo.

Estas resistências são fundamentais para que possamos nos sentir confortáveis em nossa própria pele, desfrutando da positividade e possibilidades que, segundo Carl Rogers, estão dentro de cada sujeito, sendo necessário um ambiente facilitador que nos permita crescer e florescer na existência. Assim, o suicídio não será visto como uma possibilidade de sair do sofrimento, ou como pedido deturpado de ajuda.

Nós mulheres negras, como todas as outras, crescemos com grandes expectativas quanto a nossa vida: introjetamos desejos dos grandes Outros (pais, professores, amigos) e alimentamos os nossos próprios. Pensamos no sucesso profissional, em constituir uma família (muitas vezes, nem mesmo queremos isso), em sermos amplamente aceitas, até mesmo grandemente reconhecidas socialmente. Somos ensinadas a sermos fortes frente às dificuldades. Forte, neste contexto, quer dizer: não chorar, não entrar em contato com a tristeza, negá-la. Essa fortaleza que nos é exigida nos levou a ouvir por diversas vezes na infância frases como: “deixa de bobagem; não chore; engula o choro”.

Somos sutilmente solicitadas a estarmos “bem vestidas”, mas estar bem vestida é pouco, é necessário estar na moda, seguir a tendência, ter o celular do momento, que daqui a 3 semanas, pode já estar ultrapassado. Você “deve” ir à casa de shows do momento, saber do novo filme que é sucesso mundial, ler o  livro  best seller, ainda que ele não preencha seu estilo literário. “Você tem que”,” você deve”… São tantas solicitações externas, que sobra pouco tempo para se ouvir, se cuidar, dar atenção aos conteúdos psíquicos, o que acaba por atrofiar a existência.

Ao acordamos, já temos em mente, ou em uma agenda, as diversas tarefas a serem realizadas, que muitas vezes, em 24 horas não cabem. Ficam pendências para amanhã, e assim, se faz um rotina onde não existe tempo para o self. Não há tempo para ouvir os desejos e necessidades do Eu, os quais o outro não poderá ouvir e atender por mim.

Quanto a este estilo insustentável de vida, ao falar sobre autenticidade e congruência, Carl Rogers afirma que sábio como é o Organismo, o mesmo procura naturalmente uma forma de proteger-se através da enfermidade – aqui vista como sintoma de um adoecimento organísmico maior – saindo assim, da tendência atual de ver a doença como o problema a ser eliminado sem se buscar compreender o processo de adoecimento.

Sobre o processo de adoecimento, Canon (2003) nos orienta que:

“Depressão, insatisfação, angústia, sentimento de culpa, sentimento de inferioridade tornam-se não apenas, ou pelo menos não sempre, sintomas de doença, mas também se tornam sinais de uma luta interna por uma qualidade de vida mais elevada.” (p.49)

Você já viu a mídia enfatizar, valorizar, o sujeito que foge dos apelos da onda capitalista? Aquele que se contenta com o necessário a sua sobrevivência, que vive segundo os valores tradicionais de épocas passadas, que acredita no conhecimento obtido através da experiência e que vive grande parte de sua vida orientando suas ações através deste?

Eu respondo que poucas vezes, e de forma momentânea, isso pode acontecer. O que tem prevalecido, entretanto, é esta linguagem globalizada, esta forma serializada de existir. Forma que não permite muitas variações, na qual há pouco espaço para subjetividade, em que a inovação parte das indústrias que ditam tendências a serem seguidas pelas massas sem questionamentos, carregadas de adequação e conformismo. Se não seguirmos assim ficaremos à margem, “por fora”, e muitas vezes as pessoas não estão preparadas para lidar com a solidão.

As formas inautênticas de viver têm encontrado alimentação nos perfis “criados “ nas redes sociais. Lá é possível ser o que quiser. Ser feliz e amado, ainda que a realidade não se dê dessa forma. No mundo virtual as pessoas têm encontrado refúgio para a dura realidade vivida. Ali, podem lançar suas mazelas, seus desejos ocultos, sair da seriedade que envolve a vida, alienar-se, e, ainda assim, podem mostrar-se envolvidas, populares, comunicativas, podem ser psicólogas dos outros e sem saber cuidar de si ou o que lhes faz bem.

Valoriza-se auto retratos no melhor ângulo que mostram apenas uma parte de si idealizada. Por outro lado, fotos de aspectos ou situações não tão agradáveis são vistas como ameaça para a “autoimagem social”. Cheguei aqui a um termo que me surpreende. É possível se ter uma autoimagem social? Bem, penso nesta como sendo a imagem de si, que se cria para que seja propagada no mundo idealizado, formado pelo Eu e pelos Outros. Trata-se de uma imagem de minha autoria que, reforço, está pautada no desejo de como quero ser vista pelos outros.

Muitas vezes, parece que tudo está no trabalho, no namoro, na faculdade, na família. Mas prevalece um sentimento de insatisfação e incômodo, que o leva a buscar estratégias deturpadas para evitar o sofrimento, a dor do vazio, da existência. Buscamos no álcool, nas festas, nos games a fuga, a possibilidade de controlar alguma coisa na vida que nos distraia e nos faça esquecer, por algumas horas, o caos da realidade psíquica – a desorganização que nos convida a entrar em processo, a em viver a crise de forma a construir uma nova ordem.

É comum esperamos da vida uma linearidade nos acontecimentos. Acreditamos que irrefutavelmente as pessoas, nascem, crescem, realizam sonhos, constituem família, vivem bastante e depois morrem. Cremos que as coisas devem ser sempre planejadas. Porém, se tudo fosse certo, se tudo fosse sabido, não existiria vida, surpresas não se fariam. O que nos impulsiona a continuar a existir é a capacidade de inovação inerente a existência, é saber que o sentido da vida se constrói diariamente de forma metamorfoseada, como ainda diz em nosso Corações o Raul Seixas.

Precisamos prestar atenção na relação que temos estabelecido com nosso eu, como cuidamos de nossa saúde física e mental, e, ainda, que tipo de relação temos estabelecido com as pessoas que nos cercam. É necessário aprender a auto-observação, a falar de si, a escutar-se. Empatia é colocar-se no lugar do outro com os valores dele, e não com os nossos, mas sem deixar de ser como somos… Tarefa difícil, que se torna possível quando realizada como exercício diário. Mas como serei empático se não tento ao menos estabelecer relação comigo mesma? Sugiro que comecemos de dentro para fora: arrumando aos poucos a bagunça que tem sido viver, atribuindo novos significados ao passado, de modo a significar real e positivamente o aqui e o agora.

No caso de se notar que não se consegue com os recursos que tem, procure ajuda de uma psicóloga(o), profissional vista como facilitadora de qualidade de vida que será sua companheira no desenrolar da existência.

 

Recomendações

 

Este texto destina-se todos que desejam viver confortavelmente em sua própria pele. Caso você se identifique com as questões aqui citadas, procure ajuda de uma profissional além de amigos e familiares, pois há sempre alguém disposto a ajudar!

O atendimento psicológico on-line é uma realidade, e existem serviços psicológicos gratuitos em varias cidades e também disponibilizados pelas faculdades com curso de psicologia.

Em todo caso, deve-se considerar a subjetividade e o sentido que cada um constrói frente a sua existência e os sofrimentos que nela cabem.

 

Ailena Júlie Silva Conceição. Psicóloga CRP 03/15296. Especialista em gestão Pública-UESC. Especialista em psicologia do Transito-UNYLEYA. Graduanda em Ciências Sociais –UESC. Coordenadora do CRAS de Maraú. Membro da COREPAS- Comissão Regional de Psicologia na Assistência Social do CRP-03. Instagram: @psicologaailenajulie

 

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Créditos: Photo by Melanie Wasser on Unsplash

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