Ainda hoje quando se fala em “cultura do estupro” o termo é visto com estranheza. Significa dizer que a sociedade incentiva e tolera a prática do estupro e culpabiliza a vítima pela violência sofrida. Daí a imediata indignação: se o estupro é crime, repudiado socialmente, como se pode dizer que existe uma cultura do estupro? No entanto, existem formas de se perceber como a cultura do estupro se materializa, como e por que isso ocorre.

Lynn Hunt explica de forma bastante didática o surgimento dos Direitos Humanos. No que tem relevância nesta ocasião, explica como “o nacionalismo alimentou uma ênfase crescente nas explicações biológicas para a diferença”[1]. A biologia, diz, entra em cena para justificar a dominação masculina, uma vez que, após a Revolução Francesa, tornaram-se insustentáveis os argumentos baseados na tradição, cultura e história que embasavam essa forma de discriminação: As mulheres não eram simplesmente menos racionais que os homens por serem menos educadas: a sua biologia as destinava à vida privada e doméstica e as tornava inteiramente inadequadas para a política, os negócios ou as profissões. Nessas novas doutrinas biológicas, a educação ou as mudanças no meio ambiente jamais poderiam alterar as estruturas hierárquicas inerentes na natureza humana[2].

Assim, a própria noção de direitos humanos pós-revolução francesa não contemplava as mulheres. Os argumentos biológicos de que a mulher era mais fraca, tinha massa cerebral mais delicada, etc. serviram para provar a incapacidade feminina de seguir carreiras públicas, excluindo mulheres de sua cidadania. A normalidade com a qual se utiliza a palavra “homem” para designar a sociedade em geral confunde a interpretação do que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nesse caso, “homem” está sendo representado no seu sentido literal: pessoas do sexo masculino, excluindo mulheres.

O nascimento dos Direitos Humanos, tal como conhecemos hoje, não contemplava mulheres como sujeitos legítimos daquela proteção. A luta feminina para conquista desses direitos perdura até os dias atuais, e é nessa questão que a luta contra a cultura do estupro foca: em ter esses direitos reconhecidos e garantidos. Digo reconhecidos, porque, apesar de termos avançado em adquirir direitos formais, a efetivação desses direitos é uma longínqua realidade. As mulheres, hoje, têm o direito de não serem estupradas. No entanto, a forma como as instituições políticas e a sociedade se comportam diante da vítima de estupro nos faz perceber que nem todas as mulheres detêm esse direito tão básico.

Um caso emblemático foi analisado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2012. Tratou-se de uma acusação de estupro envolvendo 3 meninas com 12 anos de idade. Em primeiro grau o juiz absolveu o acusado por atipicidade da conduta, tendo em vista que as jovens “tinham vida desregrada e consentiram no ato sexual”[3]. Em sede de apelação, negou-se provimento ao recurso sob a absurda justificativa de que: Para a configuração dos delitos sexuais em apreço, por presunção de violência em razão da idade da vítima, menor de 14 anos, faz-se necessário que o agente aproveite-se de sua inocência, ingenuidade nas coisas afeitas ao sexo, e usando desse ardil consiga a satisfação de sua lascívia. Tal não aconteceu no caso em apreço. Toda prova coligida indica que as menores já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data. O STJ manteve a presunção relativa de violência contra estupro de menores de 14 anos, entendendo que pelo fato de as jovens manterem relações sexuais “desde longa data”, não havia de se falar em crime.

Não é o único caso: mais recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu um homem da acusação de estupro contra uma menina de 13 anos. O acórdão de 16 de junho favorece o fazendeiro G.B., hoje com 79 anos. Ele foi preso em fevereiro de 2011 com duas meninas, uma de 14 anos e outra de 13, dentro de sua caminhonete, em um canavial na zona rural do município. As meninas disseram que tinham saído para fazer um programa – a maior teria recebido R$ 50 e a menor, R$ 30. A conjunção carnal foi comprovada com a menina de 13 anos. Ele ficou preso por 40 dias, mas foi libertado e não voltou mais à prisão.Em primeira instância, o acusado foi absolvido do crime de favorecimento à prostituição e condenado, a 8 anos, por estupro de vulnerável. O Ministério Público recorreu da absolvição, mas na análise da apelação, feita pela 1ª Câmara Criminal Extraordinária do TJ, o fazendeiro foi absolvido dos dois crimes. O acórdão do TJ diz que, por maioria de votos, os desembargadores decidem negar o recurso do MP e rejeitar a condenação do fazendeiro pelo artigo 217-A (estupro de vulnerável) com fundamento no artigo 386 do Código de Processo Penal por não constituir fato de infração penal (III) e não existir prova suficiente para condenação (VII).Na análise do processo, o relator reconhece o caráter absoluto da presunção de violência para o crime de estupro de menores de 14 anos, presente em jurisprudência do Superior Tribunal Federal (STF), mas acolhe a alegação da defesa de que o fazendeiro foi levado a erro quanto à idade da menina devido à experiência anterior que ela tinha de vida sexual e da prática de prostituição[4].

As decisões colocam a responsabilidade de uma relação sexual nas mãos de jovens, tirando qualquer responsabilidade dos homens mais velhos que, em tese, deveriam ter no mínimo o bom-senso de recusar as “investidas” sexuais. Essa decisão claramente diz que meninas menores de idade que sejam prostitutas não podem ser estupradas, uma vez que consentiram, levam uma vida “desregrada”. Meninas que não são prostitutas e atendem ao imaginário patriarcal de mocidade, ingênuas donzelas não afeitas ao sexo, no entanto, são resguardadas apesar de seu consentimento. Em que pese ser tipificado o crime e haver uma legislação que resguarda uma proteção especial a menores de idade, o Direito reproduz o pensamento social machista que coloca prostitutas em uma categoria secundária de cidadania. A cidadania, essa entidade geral, universal e abstrata dotada de igualdade e dignidade, é assegurada a todos formalmente. Conforme explica Damatta:

Dentro da dinâmica política específica da Europa Ocidental, o conceito da cidadania foi um instrumento poderoso para estabelecer o universal como um modo de contrabalançar e até mesmo acabar e compensar a teia de privilégios que se cristalizavam em diferenciações e hierarquias locais. Se o mercado fez a grande transformação do nosso tempo, permitindo que a terra e a energia humana passassem a ser vendidas e compradas num espaço social demarcado pelo dinheiro e pelo preço, conforme nos ensinou Karl Polanyi (1967), a ideia de cidadania complementou essa revolução, estabelecendo o indivíduo com um papel social central e absolutamente dentro de nosso sistema. Em ambos os casos, a revolução foi o término de domínios e éticas particulares que operavam simultaneamente dentro de uma mesma sociedade[5].

Assim, podemos perceber que a ideia de cidadania está ligada à própria noção de Direitos Humanos, por exemplo, nos conceitos que temos sobre a dignidade da pessoa humana, liberdade, entre outros direitos fundamentais. Só que Damatta observa uma diferenciação entre o tratamento dado ao indivíduo de forma abstrata e nas relações efetivas da sociedade: Mas como se pode passar da igualdade moral e legal para uma prática desigual e efetivamente hierarquizada? A pergunta foi (e ainda é) um fantasma a assombrar todos os que teorizaram sobre a igualdade e o individualismo nas sociedades de mercado onde a cidadania se demarca pelos direitos universais[6].

Apesar de Damatta fazer um comparativo entre a cidadania no Brasil e  nos EUA, apontando para suas diferenças sob uma perspectiva da relações entre os sujeitos, o que não vem ao caso nesta ocasião, é cediço que a mulher sempre ocupou um papel de cidadania secundária, tanto nesses países quanto na grande maioria das sociedades mundiais. Isso, obviamente, é refletido no sistema jurídico, que, apesar de materializar ideais abstratos como o de “justiça” e “imparcialidade”, também produz exemplos de injustiça, dominação e opressão. E um desses exemplos é o tratamento legal dado a mulheres vítimas de estupro. Ou seja, apesar da cidadania ser geral, universal e abstrata, na prática ela é excludente.

Em uma pesquisa, foram analisados 53 processos judiciais de estupro, no período de 1995 a 2000. A conclusão é a própria demonstração da cultura do estupro: Durante a pesquisa, foi possível constatar que, como observaram Mariza Corrêa (1983) e Ardaillon e Debert (1987), mais do que os fatos em si, serão os perfis sociais dos envolvidos, construídos durante o processo, que fornecerão os elementos necessários para a visualização do provável resultado da sentença. Nesse sentido, será a relevância do perfil social de vítima e de acusado para o desfecho do caso – que pode ser de absolvição, condenação e, muitas vezes, de arquivamento – que nos permite afirmar que a verdade irá sendo construída em vários momentos no decorrer do processo[7]. 

Nesses casos, bem como no julgado do STJ e do TJSP citados anteriormente, o magistrado não se atém somente aos fatos, mas constrói todo um saber sobre os indivíduos, classificando-os como normais, pacíficos, honestos, sinceros ou não. O que é analisado, no caso do estupro, não é a conduta em si, mas a personalidade dos sujeitos: se a mulher for prostituta, estiver bebendo, for usuária de drogas; se o estuprador for um homem rico, de família conhecida, pai, com profissão honrada, etc. Esses fatos servem tanto para desqualificar o depoimento da mulher, quanto para qualificar o depoimento do estuprador (e, assim,  mais uma vez, desqualificar o da mulher).

Isso nos leva a entender o estupro não como um crime em que fatos são analisados, mas um processo em que a relação de poder entre agressor e vítima é determinante para o desfecho do caso. Essa é somente uma das formas nas quais a cultura do estupro se evidencia em nossa sociedade, inserida dentro de um panorama bem mais amplo dos tipos de violência cometidos contra a mulher e, este, dentro de um contexto ainda mais amplo de dominação masculina e violência simbólica contra a mulher. Esse contexto é o que chamamos de cultura do estupro, que merece e deve ser estudado com afinco.

Referências Bibliográficas:

COULOURIS, Daniella Georges. A Construção da Verdade nos Casos de Estupro. Disponível em: < http://www.observatoriodeseguranca.org/files/Casos%20de%20Estupro.pdf>. Acesso em: 13.08.2014.

DAMATTA, Roberto. Cidadania: a questão da cidadania num universo relacional. In: Conferência “Oportunidades e restrições em sociedades industriais periféricas: O caso do Brasil”, 1984.

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SIQUEIRA, Chico. TJ considera adolescente prostituta e absolve fazendeiro. Estadão. São Paulo, 3 de Julho de 2014. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/geral,tj-considera-adolescente-prostituta-e-absolve-fazendeiro,1523095>. Acesso em 13.08.2014.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EREsp 1021634/2011. Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 3ª Seção, DJe 23.03.2012.

[1] HUNT  Pg. 187.

[2] HUNT Pg. 188

[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EREsp 1021634/2011. Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 3ª Seção, DJe 23.03.2012.

[4] SIQUEIRA, Chico. TJ considera adolescente prostituta e absolve fazendeiro. Estadão. São Paulo, 3 de Julho de 2014. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/geral,tj-considera-adolescente-prostituta-e-absolve-fazendeiro,1523095>. Acesso em 13.08.2014.

[5] DAMATTA  Pg. 49-50.

[6] DAMATTA, Pg. 50

[7] COULOURIS, Pg. 2

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