Panelinhas para meninas, carrinhos para meninos. De onde vem essa divisão e por que é prejudicial para a igualdade de gêneros? Foi este o tema da pesquisa que desenvolvi na minha pós-graduação em Sociologia Política e Cultura pela PUC-Rio. O trabalho acabou virando livro digital, “De menina e de menino: gênero e infância”, disponível na Amazon.

Trata-se de uma discussão sobre como os brinquedos que lotam as prateleiras das lojas contribuem para a reprodução de estereótipos e a manutenção de desigualdades entre os gêneros. Para compreender o que motiva pais de crianças a seguir essa lógica, entrevistei mães e pais de meninas e meninos de diversas faixas etárias, entre outubro e novembro de 2014. As respostas obtidas foram reveladoras quanto à existência de padrões e códigos culturais rígidos absolutamente sedimentados em nossa sociedade, que orientam as escolhas dos pais entrevistados quanto ao tipo de brinquedo que podem oferecer a seus filhos.

Se os meninos recebem dos adultos brinquedos que estimulam o espírito aventureiro, a força e a liberdade, e as meninas são presenteadas com itens que remetem ao universo doméstico, à docilidade e à preocupação com a aparência física, estabelece-se então uma nítida discrepância entre as possibilidades (de imaginar, de sonhar, de ser) que se apresentam a cada gênero. Os papéis de dona de casa, de mãe e de objeto de apreciação (pela aparência física) são muito claramente representados nos brinquedos associados às meninas, enquanto os garotos são incentivados a serem espertos, fortes, ágeis, engenhosos. Mas como é possível romper com a desigualdade de gêneros na sociedade se estimulamos as crianças a reproduzir os velhos papéis sociais de sempre? Se queremos homens dividindo honesta e igualmente a criação dos filhos e os trabalhos domésticos com as mulheres, por que seria um absurdo que os meninos também brincassem com panelinhas e bonecas? Se as mulheres são tão capazes de dirigir e pilotar aviões quanto os homens, por que não damos carrinhos e aviões às meninas?

Além das entrevistas com pais, o desenvolvimento do livro envolveu um longo trabalho de pesquisa acadêmica, baseado nos estudos de autores como Simone de Beauvoir, Elisabeth Badinter, Mirian Goldenberg e Roque Laraia. Essa fase do processo foi tão esclarecedora quanto a etapa de entrevistas. Fiquei especialmente impressionada com a pesquisa de Elisabeth Badinter sobre maternidade. Descobri que na sociedade europeia do século XVII era muito comum que as mães entregassem seus filhos, imediatamente após o nascimento, aos cuidados de uma ama, que levaria a criança para longe do convívio da família biológica. Mãe e filho só se encontrariam anos depois, quando a criança já estava crescida e muitas vezes debilitada (várias dessas crianças morriam) por ter sido malcuidada pela ama, geralmente uma mulher pobre que amamentava e tomava conta de várias crianças ao mesmo tempo para incrementar sua renda. Essa prática não gerava nenhum sentimento de culpa à mulher, que não era julgada por isso, já que o costume fazia parte da cultura da época. Então cadê o instinto materno que toda mulher tem desde que nasce? Aquele desejo “natural” de cuidar, acalentar e proteger a cria, como se fosse bicho?

Para o senso comum, é como se os elementos que funcionam como distinções de gênero fossem naturais, inatos, e não fruto da educação que cada pessoa recebe e dos exemplos, opções e possibilidades que se apresentam ao longo de suas vidas. Essa lógica é totalmente desconstruída pela antropologia. Autor de Cultura: um conceito antropológico, Roque de Barros Laraia explica que “o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada”.

A tese de Laraia dialoga perfeitamente com a da feminista francesa Simone de Beauvoir, que, em sua filosofia existencialista, propõe que o indivíduo não nasce com um propósito estabelecido e determinado, mas se constrói conforme caminha em sua existência. As possibilidades existenciais que se concretizam em cada indivíduo, para a filósofa, estão depositadas no mundo em que ele se insere. Entretanto, existiram desde a Antiguidade e persistem até hoje tentativas de explicar diferenças de comportamento entre os homens e as mulheres a partir de suas condições físicas e biológicas: é o chamado determinismo biológico, que a antropologia rejeita absolutamente. É consenso entre os antropólogos que as diferenças genéticas não determinam diferenças culturais e comportamentais.

A filósofa estadunidense Judith Butler engrossa esse coro e vai além ao discutir, no livro Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, as identidades de gênero feminina e masculina. Butler propõe romper a associação que se faz entre as diferenças biológicas e os comportamentos que são esperados de mulheres e homens. Para a filósofa, tais comportamentos (assim como gostos, preferências etc.) não são um efeito da natureza, mas de normas sociais que distinguem o que é feminino do que é masculino. Ao rejeitar a tradicional dicotomia sexo/gênero e indicar que ambos são construções socioculturais, Butler aponta que a construção do gênero não é limitada pelo sexo, ou seja, que as características biológicas não são suficientes para fundamentar as identidades.

Considerando que os sujeitos se submetem a regras sociais que constrangem mulheres a se comportar de maneira feminina e homens a se portar de modo masculino, a filósofa afirma que o gênero é performativo, isto é, um ato intencional, formado por gestos e maneiras de agir associados à masculinidade e à feminilidade.  Referência nos estudos sobre homossexuais, transexuais e travestis, Butler mostra que é justamente a performatividade de uma travesti, por exemplo, que deixa claro que a mulher também é performativa em sua feminilidade. Sendo assim, travestis e drag queens são a prova de que é possível existir dissonância entre sexo, gênero e sexualidade.

Para Butler, o gênero tem um papel estético e age como operador de diferenças, a partir dos referenciais de feminilidade e masculinidade estabelecidos pela cultura. É por isso, por exemplo, que Miriam Goldenberg observou, após anos estudando as relações de gênero, que “um dos preços da masculinidade é a eterna vigilância das emoções, dos gestos e do próprio corpo”. A antropóloga denuncia “a estigmatização que sofrem todos os homens que se afastam dos modelos hegemônicos de masculinidade, mesmo que seja em uma simples brincadeira entre amigos”. O que se espera de um corpo masculino é que siga um repertório específico, um conjunto de atos performativos ― gestos, falas, enfim, uma série de atos corporais constantemente repetidos ― associados à identidade masculina, o que inclui um desejo sexual voltado ao feminino. É o que Butler chama de “matriz heterossexual”. Por isso, o homem cujo modo de agir se afasta do modelo hegemônico de masculinidade gera um grande estranhamento e provoca desconforto nos demais: porque põe em xeque a crença no caráter natural e biologicamente determinado do gênero.

Foi este, portanto, o maior aprendizado que a pesquisa acadêmica e as entrevistas realizadas para a escrita deste livro me proporcionaram: perceber com clareza que muitos comportamentos que eu passei a vida toda achando que eram “da natureza” são, na verdade, fruto de construção social. E construção social serve para a gente desconstruir. À luta!

 

 

 Marília Lamas – jornalista, especialista em Sociologia Política e Cultura. 

 

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