Havia assim, uma história. Era a de uma mulher. Seu nome, Estrela.

Estrela casou-se com um rei, David. Nesta época, havia muitos burburinhos contrários a esta união. Os motivos eram os mais diversos: desde o fato de terem se conhecido numa festa profana (carnaval), o que diziam trazer mau agouro, até Estrela ser proveniente de uma família mestiça, fruto da união entre Italianos (que vieram para o Brasil no século XIX em busca de trabalho) e Tupiniquins (sinônimo de brasileiro, mas que fazia referência à ancestralidade indígena da família materna de Estrela). Sua origem não lhe conferia, naquele tempo, o status necessário para casar-se com um rei. Entretanto, juntos decidiram afirmar seu amor. Assim foi feito. Estrela saiu da oca de seus pais e foi morar no castelo do Rei David.

Lá havia muito trabalho a ser desempenhado pelos súditos, e Estrela, negando-se a ser servida, ia para o batente junto aos demais funcionários do rei. Isto trazia mais admiração ao monarca, que contava com Estrela para tudo. Juntos tiveram uma filha, a princesa Renascida.

Apesar de David ser rei, seu reinado era humilde: contava com uma casa, um comércio e um carro. Educaram Renascida com o que puderam. Pouco estudaram na vida e tinham o sonho de oferecê-la o que não puderam ter: estudo. Renascida passou no seu primeiro vestibular, era o curso de Psicologia. Ela queria entender os pensamentos, os sentimentos, aquilo que as pessoas sentiam e guardavam para si – como ela o fazia com os dela.

Renascida, desde pequena, preferia a companhia das meninas. Apesar de não entender exatamente o que aquilo significava, sentia vontade de andar grudada com a melhor amiga, queria estar sempre com ela, fazendo carinho, abraçando, beijando, rindo, brincando e contando as histórias do colégio. Foi preciso tempo para que Renascida pudesse entender que seus sentires mais genuínos não eram aprovados pelos demais. De alguma forma compreendeu que as demonstrações de carinho com suas amigas precisavam ser sigilosas. A sua linguagem, aos poucos, foi se adequando e Renascida começou a nominar o que tudo aquilo significava. Ela era lésbica e sentia que não podia ser. Como seus pais, ela precisaria inventar uma contramão.

Com o falecimento do rei, as vidas de Estrela e Renascida mudaram radicalmente. Após alguns meses de luto, Renascida viajou para um outro reinado, a fim de obter recursos para tocar a vida com sua mãe. Nesta viagem, além dos meios materiais que buscava, encontrou formas de viver que eram diferentes da sua, num lugar onde os sentimentos que, até então, guardara em seu coração poderiam ser demonstrados. Fosse pela idade, pela perda do pai, ou por não conseguir mais fingir ser o que não era, Renascida reorganizou sua vida de forma a seguir seus afetos e convidou sua mãe para também se mudar. Estrela aceitou: não via mais sentido em permanecer no mundo velho quando um novo despertava em seu céu.

Juntas, recomeçaram a vida. Sem reinado, precisaram trabalhar para sobreviver, foram muitos os desafios para conquistar um novo lugar. Sobretudo, sentiram que estavam enriquecendo de experiências e aprendizados. Até que Renascida decidiu voltar para o lugar onde um dia fora o antigo reinado de seu pai, para concluir seu curso de Psicologia. Despediu-se da mãe, que carregava dúvidas em seu coração se deveria ou não permitir que sua filha fosse para tão longe dela.

A vida seguiu e, prestes a se formar Psicóloga, Renascida recebeu uma carta com o selo do lugar onde morava sua mãe. Por não ser a forma como se comunicavam, estranhou e abriu o envelope preocupada… mergulhou nas palavras. Era uma mulher contando que sua mãe e ela estavam apaixonadas, e que por temer a reação da filha, Estrela não estava se alimentando e ficando fraca. Instantaneamente um filme passou pela memória de Renascida… as vezes em que sentiu amor pelas amigas e precisou escondê-lo, o medo de ser descoberta por amar a quem achava que não devia, a angústia, a solidão, a insegurança de compartilhar esse sentimento até mesmo com as amigas mais próximas, a sensação de ter duas vidas: uma que as pessoas viam e outra que carregava em seu peito. Um filme, um transbordamento de emoções que a fez contatar imediatamente a mãe para lhe dizer:

– mãe?

– oi filha

– eu te amo, filha

– também te amo, mãe.

Renascida visitou a mãe quando o próximo verão chegou e em todos os outros seguintes. Estrela constituiu nova família com Lua, que tinha um filho de cinco anos, proveniente do casamento anterior com outra mulher. A ex-companheira de Lua era a mãe biológica e havia engravidado com doador de sêmen anônimo, via reprodução assistida, um projeto conjunto do casal. Renascida e Estrela percebiam que naquele reinado do Norte a homossexualidade era mais visível e parcimoniosamente aceita. Ainda que Renascida quisesse morar no Sul, entendia que o Norte proporcionava à sua mãe a leveza que ela necessitava para se permitir ser feliz. Enquanto isso, no Sul, Renascida se reinventava na profissão, nos estudos e na vida afetiva.

Até que um dia conheceu Panacéia, se apaixonaram, decidiram morar juntas e começaram a pensar na possibilidade de terem uma filha.

Neste momento eu as conheci. De uma forma inesperada, apresentada por uma amiga em comum, saboreei a estória de Panacéia e Renascida. Percebi que suas narrativas traziam – para além de seus sonhos, conquistas e fantasias – uma mistura de preocupação, receio e dúvidas de como seria se conseguissem se tornar mães. Estava claro que a preocupação não dizia respeito apenas à construção de um processo singular de maternagem e maternidade. Falava também dos enfrentamentos com os quais teriam que lidar ao defenderem um lugar divergente da maioria, por conta da orientação sexual e o gerenciamento da exposição de suas vidas.

Elas me perguntam: “como diremos a nossa família que teremos uma filha? Como registraremos a criança com duas mães e nenhum pai? É melhor adotar ou buscarmos as tecnologias de reprodução assistida? Como será nosso dia a dia de luta contra o preconceito? Irão nos respeitar como um casal de mulheres?”. Eram muitas as angústias por trás de dezenas de interrogações.

Colei em suas histórias, as senti em meu próprio corpo, vibrando como parte de minha biografia. Talvez o seja. É nesta mistura de questionamentos, acolhimentos e agenciamentos, que me atraí para esta temática: a da maternidade entre mulheres.

Talvez eu seja ora Estrela, ora Panacéia, ou ainda outras, que continuamente renascem em, e através do, meu nome.

 

Renata Ferreira de Azeredo. Psicóloga pela UFF, mestra em Saúde Coletiva pela UERJ, doutoranda em Psicologia Social pela UERJ.

 

Uso a linguagem alegórica como forma de narrar em terceira pessoa algo que circunscreve minha própria história. Os nomes dos personagens não são aleatórios, mantive a primeira letra real de seus inspiradores. Numa intencionalidade de manter a proximidade entre eles. “D” de David (o rei) como “D” de Decio (meu pai), “E” de Estrela (a destemida) como “E” de Estela (minha mãe), “R” de Renascida que significa meu próprio nome e “P” de Panacéia (que significa a que remedia os males) como “P” de Paula, minha esposa.

Editado por Bruna Rangel e revisado por Júlia Zacour.

 

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