Segundo a  Pesquisa Nacional de Vitimização de 2013, apenas 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia. Ou seja, por motivos diversos, 92,5% das vítimas deixam de reportar o ocorrido aos órgãos policiais responsáveis por investigar o crime.

Segundo o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, produzido pelo IPEA em 2014 com base nos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) gerido pelo Ministério da Saúde, estimou-se que a cada ano no Brasil 0,26% da população sofre violência sexual. Isto indica que haja, anualmente, 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país (quase 1 caso por minuto), dos quais apenas 10% são reportados à polícia.

A regra é que crimes de natureza sexual sequer cheguem às delegacias. Mas por que as vítimas não denunciam? Perguntamos a elas e as respostas foram diversas, como poderão ver pelos relatos que reunimos abaixo.

Os nomes verdadeiros foram preservados a pedidos das vítimas.

 

Já sofri abuso de um ex-namorado. Quando eu tinha 16 anos, acordei com a calcinha cheia de sangue sem saber o porquê. Só fui saber um ano depois a história. Eu estava bêbada numa festa. Soube por relatos que me ouviram gritando, pedindo para ele parar. As pessoas foram até onde estávamos e quando chegaram perto ele disse que eu era namorada dele. Nesse momento, saí correndo. Só soube do caso porque ele mesmo me contou um ano depois. A partir daí fui investigar por mais detalhes da história. Ele me ligou pedindo desculpas e logo depois cometeu suicídio

– Laura

 

Eu estava no 5º período de Ciências Sociais na Faculdade Federal do Amazonas. Eu estava feliz, vivendo o melhor da vida naquela época. Minha vida mudou no dia 15 de setembro quando fui com alguns amigos para a casa de um “amigo” do curso, conhecido entre alunos e professores por ser um intelectual de esquerda. Fomos beber e fumar maconha, mas nesse dia o meu “amigo” não bebeu nem fumou nada. Quando eu estava já bem alterada, ele insistiu para que eu dormisse no quarto dele, já que não havia outro cômodo no qual eu pudesse dormir. Então, eu só tenho alguns flashes de memória depois daí. Acordei com ele literalmente em cima de mim, eu pedindo para ele parar. Ele parou em certo momento e fui para casa sem saber o que tinha acontecido e me sentindo muito culpada. Depois disso, eu já não tinha mais vontade de ir para faculdade porque todo dia encontrava com ele. Decidi largar a faculdade. Com isso, uma ‘colega’ expôs toda história e se iniciou uma perseguição de alunos e professores contra mim. Ninguém acreditava que ele podia ter feito isso. Eu sumi, entrei em depressão profunda, tinha medo de sair de casa e não consegui mais voltar para a faculdade. Ele se formou e hoje sei que mora em outra cidade. Eu não o denunciei porque ele era amigo de todas as pessoas do curso e eu tinha medo de ninguém me apoiar. O que, de fato, foi o que aconteceu.

– Bruna

 

Bom, eu fui estuprada por volta dos 16 para 17 anos e depois, aos 18. As duas vezes por ex-namorados. No primeiro caso, eu era muito jovem e não tinha uma noção exata do que tinha acontecido e, por isso, não denunciei. Só após me consultar com meu psiquiatra descobri que o que passei se caracterizava como abuso sexual. Depois, tive um namorado extremamente manipulador, eu me sentia extremamente culpada por não querer ter relações e ele fazia muito drama em cima disso, o que me deixava ainda mais culpada. Diversas vezes ele me machucou durante as relações, fez comigo pedindo pra parar ou chorando e pedindo pra acabar logo. Uma vez, inclusive, eu cheguei a ter um leve apagão. Outra vez, ele fez sem camisinha, embora eu quisesse e ejaculou dentro sem mina permissão. Ele ficava me pressionando e se fazendo de vítima, perguntando se era estupro. Eu dizia que não porque tinha medo dele fazer algo contra si mesmo. Nunca denunciei por causa dessa chantagem e também porque eu não tinha provas de nada. Tinha muita gente do lado dele, inclusive que eu conheço, e que ainda acham que eu estou mentindo. Um tempo depois outra garota que veio me procurar e me disse q ele havia estuprado ela bêbada. Tudo isso me causou muitos traumas, crises de pânico e ainda muito tempo de terapia. Sou acadêmica de enfermagem e ainda no consigo tocar muito em homens, principalmente em genitais (seja para limpar/banho ou pra fazer algum procedimento, como sonda), eu simplesmente entro em pânico e isso me prejudica muito.

– Janice

 

Sofri um abuso sexual do meu vizinho quando tinha de 6 pra 7 anos de idade. Eu almoçava no serviço da minha mãe (ela era doméstica) que era praticamente do lado da minha casa. Ele me vigiava, sabia os horários que ia almoçar e me esperava sair de casa pra me molestar. Ele passava a mão nos meus órgãos genitais e apertava meus seios. Fazia eu colocar a mão no pênis dele também. Recentemente descobri que uma menina que também morava ali perto de casa sofria nas mãos dele igual a mim. Ele sempre foi manso com todos e tem cargo na igreja católica até hoje. Hoje tenho 25 anos e por causa disso desenvolvi vaginismo e uma fobia por carinhos muito grande. Até abraços me incomodam. Eu nunca disse nada porque eu era muito pequena e muito tímida. Não tive coragem. Infelizmente, minha mãe faleceu ano passado e ela nunca soube. Depois da morte dela que tive coragem de contar pra minha irmã e minhas melhores amigas.

– Penélope

 

Fiquei bêbada numa festa da faculdade e um garoto da minha sala, que sempre se disse meu amigo, falou que ia me levar pra casa. Quando eu acordei, ele estava em cima de mim. Comecei a chorar e ele saiu. Pediu um taxi pra mim, e duas semanas depois me mandou um texto de desculpas. Nunca contei pra ninguém, mas sei o que aconteceu naquele dia. Eu não denunciei porque, na época, eu não quis acreditar que aquilo tinha acontecido. Fiquei inventando desculpas, pensava que eu estava muito bêbada e podia estar enganada, que podia ter dado consentimento em algum momento e não me lembrava. Eu também tentei amenizar o que tinha ocorrido pelo fato dele ter pedido desculpas depois. Eu também não denunciei porque eu conheço essa realidade das denúncias de estupro, estagiei algum tempo com isso. Eu tinha quase certeza que se eu denunciasse não daria em nada, iam me desacreditar pelo estado que eu estava e eu não queria me tornar pra sempre a pessoa que acusou alguém de estupro e foi desacreditada. Sabia que era isso que eu ia me tornar.

– Luana

 

Fui estuprada várias vezes pelo meu ex marido. Chegava em casa eu estava dormindo acordava com ele me virando e tirando minha roupa. Uma vez ele me obrigou a fazer sexo oral. Fiz chorando e ele viu. Ficava sem falar comigo se eu me recusasse a transar, me obrigava assistir pornô. Demorei muito tempo para conseguir falar isso para alguém sem chorar. Não conseguia falar porque ficava engasgada, não saía e porque eu tinha vergonha de falar que fiz oral em alguém com as lágrimas caindo. Hoje eu consigo falar. Mas demorou uns 10 anos para eu tomar coragem. Eu não denunciei porque era meu marido. Eu não achava que era estupro na época. Chorava, tinha vergonha de não querer transar com ele. Frequentava a igreja na época e achava que era minha obrigação transar. Mesmo sofrendo com tudo, achava que eu estava errando.”

– Ana

 

Sofri de abusos sexuais duas vezes, por dois primos. Na primeira vez eu era bem pequena, devia ter uns 4 anos, e meu primo 10. Quando minha mãe contou isso pra minha tia (mãe dele), ela achou graça. Na segunda, eu tinha 17, e meu primo 15. Eu estava dormindo. Acordei com as mãos dele em mim. Ficou por isso mesmo, ninguém fez nada. E todos os meus parentes sentiram uma piedade sem fundamento e ficaram do lado dele. Hoje em dia eu não falo com nenhum deles, só com uma avó e uma tia, mas parece que elas gostam de falar dele pra mim na intenção de me magoar.

– Paula

 

Quando eu tinha de 6/7 anos eu fui estuprada por um primo meu que tinha 16 anos na época. Eu era melhor amiga da irmã dele e ele sempre tentava fazer algo comigo e até que um dia ele conseguiu me ameaçando. Nunca tive coragem de denunciar e nem falar sobre isso por ele ser da minha família.

– Júlia

 

Em fevereiro desse ano eu estava tendo o segundo encontro com um cara do Tinder. Eu moro sozinha, ele mandou uma mensagem perguntando se podia vir em casa me ver e eu disse que sim. Eu não estava afim de transar e combinamos de só ver um filme. Enquanto estávamos escolhendo o filme ele ficava por trás me beijando, me acariciando e eu o empurrava ou pedia pra ele parar… Depois de um tempo, durante o filme, ele tira o pênis pra fora e começa a se masturbar. Eu fiquei em choque, nem sabia como reagir. Ele falava umas coisas absurdas, porém eu falava o tempo todo q não queria. Até que um momento sem mais nem menos ele pegou, colocou a camisinha e meteu em mim. Sei que parece absurdo, eu pedi pra ele parar várias vezes, eu chorei, até que um momento consegui empurrar ele. Quando consegui me levantar, fui no banheiro. Ao voltar, tive que ouvir: “Você mestruou tem sangue na camisinha”. Eu só quis deitar e dormir, nunca mais falei com ele e não consegui denunciar por que essa história parece bizarra ninguém vai acreditar.

– Aline

 

Eu tinha 15 anos (hoje tenho 20) e fui em uma festa organizada por conhecidos, todos no ensino médio. Na festa eu bebi muito e perto do fim, já estava muito fora de mim. Foi quando me deram um lança e minha pressão baixou muito. Um menino que eu tava realmente afim me levou pro banheiro. Eu fui, ele trancou a porta, encostei na parede e beijei ele. Ele tentava colocar a mão dentro do meu shorts e eu tentava tirar. Ele ficou tentando me dedar e esfregar o que ele achava que era meu clitóris e tava doendo muito, eu tava totalmente seca. Eu pedi pra ele parar, mas tava muito mal. Até que parei de beijar ele, só queria sair dali. Encostei a cabeça na parede e fechei o olho pois tava tudo rodando e tava muito confusa. Ele abriu o shorts e tirou o pau. Pegou a minha mão e começou a se masturbar com ela. Eu não sei quanto tempo isso durou, eu fiquei de olho fechado p tempo todo tentando não vomitar. Até que ele soltou minha mão e percebi que estava toda suja dele. Ele abriu a porta e saiu. Eu lavei minha mão sem reação nenhuma. Eu fui para casa e chorei. Eu demorei quase 1 ano pra contar essa história. Eu nunca pensei em denunciar, eu só queria deixar no passado. Não queria ser definida por isso. Hoje, eu nem lembro o nome dele direito mas me pergunto quantas meninas sofreram a mesma coisa desde então.

– Carla

 

Eu fiquei com um cara de uma república conhecida na faculdade e fomos para a casa dele após a festa. No início foi tudo consentido, mas ele começou a ser agressivo e me machucar, eu comecei a chorar e pedir para ele parar logo, mas ele me ignorava e me dominava com muita força. Por muito tempo achei que a culpa era minha e inclusive fiquei com ele de novo em outra ocasião. Então, não culpem nenhuma mulher por não denunciar no momento.”

– Isabela

 

Quando eu era criança fui com a minha mãe na casa de uma amiga dela. O marido dela estava lá e enquanto minha mãe e sua amiga estavam na cozinha conversando, ele fechou a porta e ficou tentando enfiar a mão na minha calça. Eu tinha uns 5 anos, mas lembro muito bem. Ele ficava sorrindo e me mostrando os brinquedos do filho dele enquanto tentando passar a mão em uma criança de cinco anos. Esse homem já morreu, e eu nunca falei disso com ninguém.

–  Clarissa

Já sofri um estupro, cheguei a denunciar, fui na delegacia, mas chegando lá os polícias brigaram com a minha mãe porque eu era menor de idade, não deveria estar em uma festa e estava com uma roupa curta. Cheguei a ir em uma audiência mas pedi pra arquivar o caso, não aguentei o julgamento de tantas pessoas e sempre me senti culpada pelo que aconteceu. Não devia ter saído, não devia ter usado aquela roupa, não devia ter bebido. Por mais que eu saiba que no fundo eu não sou culpada, eu sempre me culparei por tudo. Hoje minha maior culpa é não ter levado o caso pra frente, saber que ele pode ter feito isso com mais meninas e que eu “permiti”. Eu faço terapia, mas isso tudo nunca vai sair da minha cabeça.

–  Mariana

 

Eu fui abusada pelo padrasto da minha mãe, dos 6 aos 11 anos. Aos 14 eu comecei a querer namorar e sair, então eu percebia que eu tremia só de um menino chegar muito perto com segundas intenções. Mesmo assim foi quando eu tive minha primeira vez real, parecia que tava acontecendo tudo de novo. Então, eu decidi contar para os meus pais sobre o abuso. O problema que eu preciso lidar até hoje é que houve muito choro, muita comoção, mas nada foi feito. Não chamaram a polícia, não me levaram a psicólogos, nada. Só paramos de falar com minha família materna. Até hoje não consigo superar porque foi uma sensação de injustiça muito grande.”

–  Ellen

 

Uma vez transei com um cara e falei que não tomava anticoncepcional e que exigia que ele usasse camisinha, mas o cara tirou a camisinha sem me avisar. Eu fiquei muito mal e, assim que percebi, peguei minhas coisas e fui embora imediatamente. Muita gente (homens, principalmente) acham que é frescura, mas quem tem que arcar com os custos de um teste de gravidez, testes de DSTs e toda a carga psicológica que vem com o medo do que pode acontecer depois, com o fato de ser taxada de “louca” ou “exagerada” por se importar com uma coisa tão “banal” é a mulher, e sozinha…”

– Vanessa

 

Sofri abuso com 14 anos. Um cara me assediava no meu trajeto de ida e volta da escola, me forçava a ver pornôs no celular dele e ficava me forçando a ir pra casa dele. Falava que amava tirar virgindade de meninas, sempre conseguia escapar. Até um dia muito chuvoso que eu tive que parar no caminho e ele me forçou na rua mesmo. Meus pais descobriram pela minha agenda, fizeram b.o, mas a namorada e família dele me difamaram tanto pelo bairro e ficaram no pé dos meus pais que eles retiraram a queixa. Não sei o que foi pior, o estupro, o exame no IML, ser xingada e humilhada no bairro ou meus pais terem deixado ele sair ileso. Descobri anos depois que ele fez com outras meninas e hoje ele frequenta a mesma igreja que a minha mãe, usa terno e gravata e todos por lá o respeitam.

– Iara

 

Sou homem trans e quando mais novo, antes de me assumir, eu sofri abuso de um cara que morava no meu condomínio. Eu na época era uma adolescente apaixonada por ele, ele sabia e usava isso pra me levar para lugares afastados, sem ninguém, me convidando para fazer “brincadeiras” com ele e sem ninguém saber. Nunca denunciei por ser uma pessoa conhecida e até um cara querido entre os amigos. Ele estava sempre nas festas e nas reuniões dos meus amigos, nas minhas festas de aniversário ele era convidado inclusive. Tive medo, vergonha. Achei que ele o conseguir virar o jogo e eu ia sair como pedante, como querendo “ficar” com ele sendo que ele “não precisava disso” pois era rico, bonito é casado.

– Pedro

 

Uma vez fui pra uma festa com alguns amigos, na volta um deles não tinha aonde dormir e não achei problema em convida-lo pra dormir em minha casa e eu também estava afim dele, uns anos atrás havíamos dado uns beijos. Quando chegamos, ele que estava muito bêbado, foi um animal. Me senti muito mal com a situação e disse que ia dormir. Ele não aceitou o “não” como resposta, e em minha própria casa, eu tive as duas horas mais infernais da minha vida. Foram tapas, chutes, até que ele realmente parou quando eu ameacei gritar e chamar meus pais, porque ele a todo custo tentava penetrar. Mandei ele embora da minha casa, nunca mais nos vimos, nunca mais nos falamos. Nossos outros amigos em comum me zoaram porque eu mandei ele embora da minha casa de madrugada, sem nunca saberem a verdade. Não tive coragem de contar, na verdade essa é a primeira vez que eu conto isso depois de ter falado pro meu melhor amigo e ele não ter acreditado, dizendo que eu estava exagerando.

– Bianca

 

“Fui estuprado há alguns anos por um cantor relativamente famoso no meio LGBT. Nós tínhamos amigos em comum. Conheci ele em SP e saímos pra tomar um café, nada demais. Meses depois, ele veio fazer show numa boate na minha cidade e eu levei ele pra conhecer os principais pontos turísticos. Ele pediu pra passarmos no hotel dele pra ele tomar banho e se arrumar pro show e eu ia levá-lo pra boate depois. Fiquei esperando ele terminar de tomar banho mexendo no celular e tal. Quando ele saiu do banho só de toalha, parou na minha frente, tirou a toalha e já puxou a minha cabeça na direção do penis dele. Fiquei sem reação. Ele me virou na cama e fez sexo anal comigo. Eu não consegui reagir, estava muito em choque com tudo aquilo e com a forma que ele estava fazendo aquilo. Nunca contei isso pra ninguém porque ele, apesar de não ser famoso FAMOSO, é conhecido no meio LGBT e ninguém nunca acreditaria na palavra da bicha gorda que foi estuprada pelo cantor padrãozinho.”

– Paulo

 

Fui estuprada pelo meu ex namorado há um ano. Ele tinha 19 anos, e eu, 15. Fiquei bêbada e passei muito mal. Irei contar as únicas lembranças que tenho, porque me esqueci de grande parte. Passando muito mal, comecei a chorar e pedi pra ele cuidar de mim, estava totalmente incapacitada e ele começou a rir de mim enquanto tirava minhas roupas. Não me preocupei, achei que ele fosse me levar pra tomar uma ducha, até que ele começou o ato. Me desesperei e a única coisa que eu conseguia fazer era chorar, implorava pra ele parar, dizendo “por favor, para, eu não estou bem, não consigo fazer nada”, e ele ignorava e me lembro de algumas de suas palavras “para de besteira, você saber que quer”. Desisti de insistir, enquanto eu chorava, ele continuou até o final. Não me lembro de mais nada, nem do momento em que dormi ou o que fiz depois. Assim que acordei no dia seguinte, me lembrei das cenas como flashbacks e logo perguntei pra ele o porquê de ele ter feito isso comigo. Ele se fez de desentendido, me colocou de maluca, disse que eu havia sonhado ou delirado com a bebida e brigou comigo por eu ter o acusado. No momento, ele estava falando com tanta convicção que eu deixei quieto e preferi confiar nele, afinal, ele era meu namorado, por que ele faria isso comigo se ele me amava tanto? Nunca mais toquei no assunto, mas mesmo assim, pensava nisso todos os dias. Em maio, terminamos e ele trouxe isso à tona e disse com as exatas palavras “aquela vez, eu realmente comi bêbada, e dormi muito bem por conta disso, não me arrependo de nada, achei lindo o que fiz porque você é uma vagabunda e naquela hora não passou de um objeto”. Nunca denunciei porque não tenho apoio de ninguém, nem da minha mãe.”

– Cláudia

 

Eu tinha 17 anos. Estava viajando com os colegas de banda que eu tocava, participando de um curso numa cidade distante. Em uma das noites, o rapaz que dividia o dormitório comigo invadiu minha cama enquanto eu dormia. Se enfiou embaixo do meu edredom, tirou meu short do pijama empurrou minha calcinha pro lado e me penetrou sem me acordar. Óbvio que acordei com ele entrando em mim. Não entendi direito mas sabia que a culpa era minha por estar sozinha com um cara num quarto longe da minha casa. Fingi que não acordei, deixei ele terminar o serviço. Ele terminou, arrumou meu short, desceu da minha cama e foi pro colchão dele. Segurou s respiração na hora que gozou, não se mexeu muito, sabia q estava fazendo algo errado e se esforçou pra não me acordar. Eu segui o roteiro. No outro dia pela manhã, só levantei depois q ele já tinha acordado e saído do quarto e da casa. Fui a última a levantar e tomar banho, cheguei atrasada nas aulas daquele dia. Fingi que nada tinha acontecido, não conversei com ele sobre muito menos contei para alguém. Faz mais de dez anos e eu revivo isso quando o vejo na rua de minha cidade, mesmo tendo passado a ignorar os lugares onde ele poderia estar. Ele nunca soube que eu vi o que ele fez. Ninguém nunca soube, nem meus pais. Eu descobri e entendi que a culpa não era minha a menos de três anos, quando descobri o movimento Me Too nos Estados Unidos, pela atriz Viola Davis em uma postagem no Instagram. Chorando, contei pro meu marido o que tinha me acontecido quando eu era adolescente. Eu fiquei tanto tempo em negação que tinha se apagado da minha mente. Até hoje pouquíssimas pessoas sabem. Acho que 3 ou 4 na realidade. E ele, nunca vai ser responsabilizado pelo que ocorreu. Capaz que mesmo que eu contasse, não se recordasse do fato. Infelizmente, pra mim, creio que o esquecimento não seja uma opção.

– Heloísa

 

Um namorado q eu tive me estuprava enquanto eu tava apagada de remédio e também quando eu bebia demais. Comecei a desconfiar porque quando eu saia com ele e bebia, eu acordava com dor mas achava q tinha sido consensual e eu havia esquecido. Comecei a acordar com dor também quando tomava o remédio. Um dia, fingi que tomei o remédio antes de dormir e acordei com ele em cima de mim. Na época eu nem sabia q namorado ou marido poderia ser acusado de estupro. Ele me disse que não se segurava comigo dormindo só de calcinha do lado dele. Nunca denunciei porque não tinha noção de que aquilo era estupro e tb porque achava que a culpa era minha por não estar sempre disponível. Hoje não sei o que me dói mais, a culpa, a raiva de mim por não ter feito nada ou a sensação de impotência porque ele vive a vida dele normalmente (até de evento feminista participou) tendo feito um pedaço meu morrer com tudo isso.

– Taís

 

Tenho 28 anos e fui abusado pelo meu padrasto aos 11. Ele pegou nas minhas partes íntimas enquanto eu dormia e eu acordei com ele me molestando. Imediatamente afastei a mão dele e fiquei muito assustado, sem acreditar que aquilo tinha acontecido. Nunca contei pra ninguém e nem pra minha mãe, principalmente porque na época ela não trabalhava e dependia financeiramente do rapaz. Sabia que ela jamais aceitaria isso, então, por medo de tudo, preferi o silêncio. Não sei o quanto essa ferida ainda está aberta, mas sei que ainda não cicatrizou. Hoje minha mãe é separada. Teve dois filhos com ele, que são as duas únicas coisas boas que ele trouxe pras nossas vidas, porque são os irmãos mais lindos e amáveis desse mundo. Até hoje ainda tenho pesadelos com o abusador e depois do crime minha mãe ainda continuou com ele por 14 anos, entretanto, essa foi a única vez que isso aconteceu.”

– João

 

Certa vez fiz amizade com um cara super desconstruidão, fotógrafo, hipster, feministo. Era um ex mt antigo de uma amiga, por isso eu disse pra ele que nada ia acontecer entre a gente. Um dia encontrei ele no carnaval mt bêbada e ele me disse pra gente ir pra casa dele encontrar o pessoal pra fazer alguma coisa. Não tinha pessoal nenhum, quando percebi já tinha uma meia luz e daí só lembro de flashes. Lembro claramente de eu dizer não e que eu tava mt bêbada pra decidir qq coisa. Acordei sem roupa e sem saber oq aconteceu. Tive que perguntar inclusive se ele tinha usado camisinha. Depois disso ele sumiu, eu tentei ainda conversar pra saber oq tinha acontecido e ele me bloqueou. Nunca denunciei pq achei que ninguém acreditaria.”

– Olívia

 

Fui assediada e estuprada pelo meu padrasto quando minha mãe tinha acabado de ter uma filha dele. A opressão psicológica e a dependência econômica fez minha mãe permanecer nesse relacionamento durante alguns anos. Fui eu a sair de casa, por volta dos 15 anos, fui pra casa dos meus avós, tios e em alguns momentos tive que voltar pra casa deles. E isso 20 anos atrás era assim: se ninguém falasse era como se nunca houvesse existido. Quando voltei à casa deles minha mãe tratou de por uma fechadura no quarto, e cabia a mim sempre esquivar de cruzar com ele, esquivar o olhar, evitar qualquer contato. E eu simplesmente tentava fazer de conta que ele não existia. E acho que era isso que todos queriam, que algumas situações não tivessem existido. A pressão na minha cabeça pra apagar tudo isso era tão grande que em alguns momentos eu quase cheguei a acreditar… E assim o tempo foi passando. Finalmente veio a separação da minha mãe e esse assunto continuou enterrado. Minha irmã foi crescendo, e meus sentimentos por ela eram tão difíceis de processar que nem sei dizer. Muitas vezes fui grossa e agressiva com ela, por sentir que ela me remetia à tudo que eu tinha passado. Era difícil olhar pra ela. Mas isso também já ficou pra trás, e sou grata por tb ter ultrapassado isso. Hoje já perdoei minha mãe, embora acho que ainda precisamos de algumas conversas. E minha irmã é hoje uma grande amiga, acho que porque já conseguimos ter nossas conversas. Quanto ao meu agressor, ele continua livre e ainda hoje não fui capaz de denunciá-lo por medo de enfrentar tudo isso novamente. Eu me sentiria culpada de trazer tudo isso a tona novamente, sinto que causaria mais estragos a minha mãe, a minha irmã e a mim mesma. Sei que não é o certo. Mas tudo isso pra dizer que nem sempre é fácil ou simples fazer o certo. E quando uma mulher tem a coragem de denunciar, sejamos nós a apoiar!

– Nayara

 

A nossa intenção ao reunir essas histórias é de mostrar a dimensão dos casos de subnotificação, entender porque algumas vítimas não denunciam e que não podem ser julgadas por tomarem essa decisão. Às vezes, sequer foi uma decisão que coube à elas, uma vez que quando se é abusada durante à infância você depende de outras pessoas. Mesmo chegando à fase adulta, isso significa revirar um passado que você não quer que venha à tona novamente. Muitas só passaram a entender o que de fato havia ocorrido depois de muito tempo.

A maioria dos estupros acontecem dentro de casa, são cometidos por alguém da família. Podemos ver pelos relatos, mas também sabemos por dados que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. Isso significa que além da dificuldade de denunciar um crime, quando se trata do estupro existe uma forte pressão das pessoas próximas à vítima para que isso não ocorra. Muitas vezes essa pressão é velada, inclusive. Isso significa não apenas “acabar com a reputação” de uma pessoa, mas também muitas vezes acabar com laços familiares.

Fora da família, as vítimas de estupro também não encontram acolhimento. Amigos, colegas, também se mostram desconfiados e culpabilizam a vítima. Quando o agressor é alguém popular, conhecido, bem relacionado, as vítimas se sentem impotentes de poder denunciá-los. Alguém pode as culpar por isso? As reações sociais ao crime de estupro dão razão a todas elas.

Vemos que muitos casos possuem similaridades, mas também podemos perceber como cada violência foi diferente, como cada reação foi diferente.

Esses foram casos que permanecem anônimos, mas que reforçam a importância de apoiar também uma vítima de abuso sexual quando vem a público contar seu caso. Isso se trata não só de acreditar na sua história, diante da coragem que teve e que muitas não tem, mas de podermos incentivar que esses casos anônimos, escondidos, subnotificados, possam também que um dia deixem de ser.

 

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