Que as coisas conversam coisas surpreendentes
Fatalmente erram, acham solução
E que o mesmo signo que eu tento ler e ser
É apenas um possível e o impossível
Em mim, em mil, em mil, em mil, em mil
E a pergunta vinha:
Eu sou neguinha? ” –  Caetano Veloso

 

Era um dia claro e azul, as flores pairam entre os ventos e o som ressoa entre o assoalho do barraco. Mas ela apenas via o sol brilhando e queimando. Não sabia se mais iluminava ou incinerava a vida dentro do morro. E ao lembrar da vida, do queimado e do morro, a música que conheceu ainda pequena cantarolava em sua cabeça. “Eu sou neguinha?” ela ressoou entre seus lábios, quase como um suspirou e pensou: “Sou lá eu uma neguinha?”.

Já estava cansada de tudo e enojada de todos. Não aguentava mais andar para lá e pra cá dentro do cômodo pequeno, tombando em seu irmão, acordando sua avó e enfrentando sua mãe. O pai sempre vinha de noite, cansado e derrubado do trabalho que explorava até a última gota de vida – ou até mesmo de esperança de morte.

Saiu da janela e resolveu acender um cigarro, mais um. Tinha que começar a economizar no fumo, o dinheiro está acabando e o vício não terá tempo de permanecer diante da fome. Tragou uma vez e, logo em seguida, já puxou uma segunda fumaça com força que preencheu seu pulmão e esquentou mais a pergunta em sua mente. Eu sou neguinha?

Era sabido a todos que Conceição não tinha a cor preta de sua avó ou o tom escuro da amiga do barraco do lado, mas lembrava da professora que tinha dito que o encardido dos escravos estava em sua pele. Talvez por meio de uma força divina a presente negritude não estava tão presente em sua pele, mas deixava todo o cabelo encrespado. Era como a mãe dizia: é só alisar e ninguém vai perceber de onde você vem. Ela alisou e continuava queimando cada fio do seu crespo para cair, escorrer e esconder o cabelo ruim.

Mas os dias estavam difíceis, não tinha mais dinheiro pro cigarro e muito menos pra alisar o cabelo. Já tinha falado para Kelly que quando esse vírus fosse embora, ela juntaria o dinheiro para pagar o alisamento. Esse vírus, esse maldito vírus. Acabou com tudo, o emprego que tinha na casa da senhora, o emprego do irmão no prédio e a miséria que a mãe recebia vendendo roupas na rua. A senhora para quem trabalhava disse que não queria correr risco. Na mesma hora pensou: que riscos uma mulher daquele porte poderia ter? Era o medo do vírus. O vírus, o demônio da terra.

E enquanto esse vírus tivesse por aí nas ruas, ela sabia que as coisas continuariam cada vez mais difíceis em casa. Já identificava na feição do irmão a preocupação e o olhar de desespero depois da dispensa como segurança no prédio. Outro dia, ele saiu de casa e demorou a voltar; mesmo sabendo que só poderia sair se fosse emergência. O que seria de tamanha emergência para demorar tanto? Quando voltou, carregava uma dessas sacolas de mercado cheia e um pano de prato envolvendo um objeto entre as mãos.

A avó despertou rapidamente e encarou o menino nos olhos, a mãe tentou perguntar onde tinha ido, mas ele já tinha entrado no único banheiro da casa. Ela sabia o que era e a avó também. O menino tinha voltado em meio ao desespero da fome e da angústia ao crime do morro. A emergência era essa, e para o irmão talvez nunca existisse escapatória. Preto, favelado e criminoso, ao certo só teria dois caminhos.

Mas com Conceição era diferente, todos diziam. A menina tinha nascido com sorte e tinha conseguido uma diferença na vida. Era preta, mas nem tanto. Mas ela não concordava com aquilo, sofria como todos que estavam ali, trabalhava duro como todos ali e nunca tinha descobrido a tal sorte que falavam. Afinal, talvez ela fosse neguinha.

“Agora, nada disso importa”, pensou enquanto ainda cantava a música para si, entoando cada vez mais a sentença que poetizava sua cor e que o vírus não ligava se ela era moreninha, mulatinha ou neguinha. O vírus matava os pobres e favelados, disso ela sabia.

Outro dia, tentou barrar a saída da avó, que queria porque queria ir ao mercado esticar as pernas. “Vó, você tem 65 anos. O jornal sempre fala que não é seguro sair”. Mas a avó não tinha medo, porque nunca tivera medo na vida. Mãe de sua mãe e de mais três filhos fora abandonada por seu marido devendo cinco meses de aluguel e teve que ir morar nos barracos. Era mulher preta forte que ninguém encarava, sempre com a cara fechada. Ela dizia que se a vida não a tivesse matado até agora, que esperaria ansiosamente para que o vírus a enterre. “Não há mais nada de bom para mim nessa terra”, dizia.

A infelicidade da avó poderia ser explicada por uma dura trajetória de vida. Dois filhos mortos: um foi quando o barraco foi invadido pela polícia e ele não escapou. Dizem que a senhora, que era moça na época, chorou em cima do filho baleado por uma 12, no meio da cozinha. O outro era da vida, boêmio e viciado pela seringa, e assim, acabou emagrecendo e encolhendo até que descobrissem que o outro vírus o tinha matado.

Foram tantos vírus e ainda são tantos vírus. Ela decide pegar mais um cigarro porque a reflexão estava longe de acabar. Será ela uma neguinha? Será que todas as vivências deixaram ela neguinha? Nada disso importava, lembrou para si. Era como avó dizia: “a vida há de acabar com a gente primeiro”.

Decidiu ouvir a música em seu celular que mal pegava a internet – e sabia que iria acabar com todos os créditos que tinha colocado no aparelho. Nada importava. Se acabassem os cigarros ou os créditos, ela queria saber se era neguinha.

Desceu o morro com o celular, cantando baixo a música e com outro cigarro na mão. Às vezes a melodia voltava e repetia, lembrando da vida e do trabalho, que voltavam e repetiam a tragédia. Olhou para o sol, que queimava os telhados dos barracos, e já de perto, a luz ficou vermelha e o som da sirene soou repetido, fazendo a melodia voltar. “Em mim, em mil, em mil, em mil”.

Conceição estava no meio de tudo, dos tiros, das fardas, do sangue. Só queria saber se era neguinha, mas morreu perfurada por duas balas. Morreu como uma neguinha estirada nas ruas do morro.

 

Ana Paula Moreira Oliveira. Jovem negra, 20 anos, militante e estudante de jornalismo. Apaixonada por política e ciências sociais. Vim para o mundo para escrever e contar histórias. Criadora do @esseamoreracilada. Ativista do coletivo negro @afroriaespm
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