Como é o caso de quase todas as práticas de oposição política e resistência das minorias, o feminismo sofre de uma falta crônica de conhecimento da sua própria genealogia. Ignora as suas linguagens, esquece suas fontes, apaga suas vozes, perde os seus textos e não tem a chave dos seus próprios arquivos. Nas Teses sobre o Conceito de História, Walter Benjamin nos recorda que a história é escrita do ponto de vista dos vencedores. É por isso que o espírito do feminismo é amnésico. O que Benjamin nos convida a fazer é a escrever a história do ponto de vista dos vencidos. É nesta condição, diz ele, que será possível interromper o tempo da opressão.

Cada palavra da nossa língua contém, como se envolta em si mesma, uma bola de tempo feita de operações históricas. Enquanto o profeta e o político se esforçam por tornar as palavras sagradas, escondendo a sua historicidade, é tarefa profana da filosofia e da poesia restituir as palavras sacralizadas ao uso quotidiano: desatar os nós do tempo, arrancar as palavras aos vencedores para as colocar novamente na praça pública, onde podem ser objeto de uma resignificação coletiva.

É urgente recordar, por exemplo, face à onda “anti-gênero”, que as palavras “feminismo”, “homossexualidade”, “transexualidade” ou “gênero” não foram inventadas por ativistas radicais, mas sim pelo discurso médico dos últimos dois séculos. Esta é uma das características das línguas que têm servido para legitimar práticas de dominação somatopolítica na modernidade: enquanto as línguas de dominação anteriores ao século XVII trabalharam com um aparelho de verificação teológica, as linguagens modernas de dominação foram articuladas em torno de um aparelho de verificação técnico-científico. Tal é a nossa pesada história comum, e é com ela que teremos de voltar a fazer sentido.

Sigamos, por exemplo, o túnel do tempo que nos abre a palavra “feminismo”. A noção de feminismo foi inventada em 1871 pelo jovem médico francês Ferdinand-Valère Fanneau de La Cour na sua tese de doutoramento “Sobre o Feminismo e a Infância na Tuberculose”. Segundo a hipótese científica de Ferdinand-Valère Fanneau de La Cour, “feminismo” era uma patologia que afetava o homem tuberculoso, produzindo, como sintoma secundário, uma “feminização” do corpo masculino. O varão tuberculoso, diz Ferdinand-Valère Fanneau de La Cour, “tem cabelo fino e sobrancelhas, cílios longos e finos como os das mulheres”; a pele é branca, fina e flexível, a panícula adiposa subcutânea é muito desenvolvida, e por isso os contornos fingem uma suavidade considerável, enquanto as articulações e músculos combinam a sua ação para proporcionar aos movimentos esta flexibilidade, este não-sei-o-quê ondulante e gracioso que é típico do gato e da mulher. Se o sujeito atingiu a idade em que a virilidade determina o aumento da barba, verifica-se que esta produção ou é completamente inexistente ou só existe em certos lugares, que são normalmente o lábio superior primeiro, e depois o queixo e a região das costeletas. Além disso, esses poucos pelos são finos, tênues e quase sempre loucos. […] Os órgãos genitais são notáveis pela sua pequenez”. Feminizado, sem “poder de geração e faculdade de concepção”, o homem tuberculoso perde a sua condição de cidadão viril e torna-se um agente poluente que deve ser colocado sob a tutela da medicina pública.

Um ano após a publicação da tese de Ferdinand-Valère Fanneau de La Cour, Alexandre Dumas Jr. retoma, num dos seus panfletos, a noção médica do feminismo para descrever os homens que apoiam a causa das “cidadãs”, um movimento de mulheres que lutam pelo direito ao voto e pela igualdade política. Assim, as primeiras feministas foram homens: homens que foram considerados anormais pelo discurso médico por terem perdido os seus “atributos viris”; mas também homens acusados de se feminizarem por causa da sua proximidade com o movimento político das mulheres cidadãs. Serão necessários alguns anos para que as sufragistas se reapropriem deste nome patológico e o transformem num local de identificação e de ação política.

Mas onde estão hoje as novas feministas? Quem são os novos tuberculosos e as novas sufragistas? Precisamos libertar o feminismo da tirania das políticas identitárias e abri-lo a alianças com os novos sujeitos que resistem à normalização e exclusão, os efeminados da história; os cidadãos de segunda classe, os apátridas e os imigrantes ensanguentados pelas cercas de arame farpado de Melilla.

 

* “Féminisme amnésique”, publicado no Libération a 9 de Maio de 2014.

* Quando Paul Beatriz Preciado fala em “política identitária”, ele não quer dizer no sentido que algumas pessoas se referem à questões de gênero, sexualidade e raça dentro de alguns debates de marxistas. Confira esta e esta entrevista em que são abordadas essas questões dentro da visão do filósofo.

 

Paul Beatriz Preciado. Filósofo e escritor feminista transgênero, cujas obras versam sobre assuntos teóricos como filosofia de gênero, teoria queer, arquitetura, identidade e pornografia.

 

Curtiu este texto? Apoie a produção de conteúdo feminista independente

 

Compartilhe...