[ALERTA: SPOILER À FRENTE. Continue por sua própria conta e risco]

Entre 2008 e 2011, Mark O’Leary estuprou diversas mulheres em diferentes cidades da região de Washington e Colorado, nos Estados Unidos. Ele escolhia suas vítimas em localidades distintas porque sabia da dificuldade da troca de informações sobre crimes entre distritos diferentes. Ao contrário da maioria dos estupradores, ele escolhia vítimas de diferentes idades e raças. O fato de terem perfis distintos despistava a polícia que pressupunham estar a procura de mais de um sujeito e não do mesmo autor dos crimes. Além disso (e impressionantemente), ele não deixava qualquer vestígio de DNA ou impressão digital.

No entanto, o modus operandi do crime era o mesmo. Ou seja, os casos seguiam praticamente um roteiro. O’Leary seguia suas vítimas e anotava sua rotina e, com essas informações, invadia suas casas enquanto não estavam lá para se familiarizar com o ambiente. Ele procurava mulheres que morassem sozinhas e em locais que o permitia traçar uma rota de fuga e não levantar suspeitas. Após todo preparativo, ele as surpreendia enquanto dormiam e as estuprava por horas. Ele as ameaçava, tirava fotos, entre outras crueldades. Depois, as faziam tomar banho e ia embora levando as roupas de cama e outros itens, como “troféu”.

O’Leary é um estuprador em série. Ele definia o impulso que tinha por dominar e estuprar mulheres como um “monstro” que vivia dentro dele. Um monstro que ele tentou domar, mas foi vencido. Essa parece mais uma história ao estilo das séries e filmes sobre serial killers, mas “Falsa Acusação – uma história real”, que agora vai para as telas da Netflix com a série “Inacreditável”, é muito mais que isso.

A série não explora com tanta profundidade a persona de O’Leary, como por exemplo, seu passado e sua história pessoal, e prefere focar em outras questões. “Inacreditável” mostra as diversas violências sofridas pelas vítimas: o estupro, a revitimização que passam ao recontar os acontecimentos diversas vezes desnecessariamente, os prolongados exames aos quais se submetem (muitas vezes de forma insensível e fria), o impacto de tudo isso na saúde mental de cada uma, entre outras.

Notadamente, a série gira em torno da investigação, do suspense e do thriller  envolvido na caça policial ao autor dos crimes. É a dinâmica investigativa que capta a atenção do espectador, principalmente pelas incríveis personagens Grace Rasmussen e Karen Duvall (Toni Collette e Merritt Wever), as detetives que se unem para solucionar o caso, e o incrível time de mulheres que formam a equipe.

Mas além do apelo dinâmico, isso demarca a escolha de não fazer que a série gire em torno do estuprador. Essa foi uma escolha acertada.

Inacreditável

Imagem: divulgação/Netflix

 

O livro, por sua vez, traça o perfil de O’Leary, incluindo seu passado e quando decidiu começar a estuprar mulheres. O próprio formato textual permite esmiuçar muitas outras questões envolvendo os casos, e os autores se aproveitam disso para se debruçar sobre vários temas de forma bastante eficaz e honesta.

Os jornalistas T. Christian Miller e Ken Armstrong se uniram para contar a história de fracasso e sucesso da polícia americana: duvidar do relato de uma das vítimas, Marie Adler (na série interpretada por Kaitlyn Denver) e até mesmo condená-la por “falsa acusação” e, por outro lado, conduzir uma investigação minuciosa e bem sucedida por levar à condenação um estuprador em série. Essas histórias foram publicadas nos veículos Pro Publica e Marshall Project e receberam o maior prêmio do jornalismo, o Pulitzer. “Falsa Acusação – Uma história verdadeira” é o desdobramento dessas reportagens.

As causas de subnotificações do crime, a história por traz do “rape kit”, um procedimento adotado para colheita de provas, a mentira por trás das estatísticas de que as mulheres mentem em suas denúncias, entre muitas outras questões são abordadas na obra. Os autores se aprofundam na própria história jurídica americana para demonstrar as raízes de um machismo estrutural.  A contextualização que fazem é uma narrativa de casos, histórias e dados do funcionamento da cultura do estupro.

Apesar do caso específico de O’Leary ser raro, uma vez que a maioria dos estupros não são cometidos por estupradores em série, mas por pessoas próximas das vítimas, os autores souberam retratar com muita propriedade que diversos acontecimentos ali narrados não são um ponto fora da curva. Mulheres são constantemente desacreditadas em seus relatos. Há uma preocupação muito maior em preservar a reputação de quem elas apontam serem os autores e também há um julgamento desonesto do comportamento das vítimas.

 

Como deve reagir uma vítima de estupro?

 

Imagem: divulgação/ Netlix. Marie Adler, interpretada por Kaitlyn Denver.

 

“Na manhã após meu estupro, fiz café da manhã para meu estuprador”, diz uma tirinha feita pela artista The Nib. Ela fez ovos, torradas, bacon, do jeito que gostava. Ela fez café da manhã porque gostaria de reinventar o que aconteceu na noite anterior. Ela queria criar outra narrativa. Então, fez café da manhã como faria em qualquer outro dia. “As mulheres não fazem café da manhã para seus estupradores, e eu fiz café da manhã”, conta.

Mas qual é a atitude esperada de uma vítima de estupro?

Marie estava sozinha em casa falando ao telefone durante toda a madrugada com seu amigo quando, cansada, foi dormir. Ela acordou sendo estuprada por um homem encapuzado, vestido todo de preto e a ameaçando com uma faca. Ela foi amarrada com os cadarços do próprio tênis, vendada e estuprada repetidamente, mas não lembra por quanto tempo ao exato. Ela lembra pelo barulho que a máquina fazia que ele havia tirado fotos dela. O agressor foi embora sem deixar vestígios. Ela se desamarrou e ligou para uma vizinha, que chamou a polícia.

Ela contou essa história repetidas vezes: para os policiais que primeiro chegaram ao local, para os detetives que chegaram depois, para a enfermeira no hospital, novamente para os mesmos policiais na delegacia e, depois, ainda por escrito. A cada relato ela se via obrigada a reviver toda a experiência e também a cada vez que recontava a história algumas inconsistências ocorriam: ela teria ligado para a amiga enquanto ainda estava com as mãos atadas ou após? Como assim ela não lembra se apertou os dígitos do telefone com as mãos ou os pés? É uma atitude normal uma pessoa que foi estuprada ligar para conhecidos para contar isso ou ela só está querendo aparecer? Após ser constantemente duvidada, acabou admitindo que mentiu.

Uma vítima de estupro diria que inventou toda a história?

Amber (Danielle Macdonald), por sua vez, lembrava de cada detalhe do ocorrido.  Ela foi estuprada por horas e durante o intervalo entre um e outro abuso, puxava conversa para captar mais informações sobre o sujeito. Por isso, foi a vítima que deu maiores informações para a polícia, inclusive o tipo de máquia fotográfica que usava, a marca de nascimento que o suspeito tinha na panturrilha, que sabia falar quatro idiomas, entre muitos outros detalhes. Ela relatava o ocorrido calmamente.

Uma vítima de estupro falaria tão serenamente sobre esse evento tão traumático?

Outra vítima mencionada na série conseguiu escapar da tentativa de estupro ao pular a janela da própria casa. Quebrou diversos ossos no corpo, mas sobreviveu. Passou o restante do tempo indo atrás constantemente da polícia. Não havia vestígio de que alguém estivera em sua casa, e sua reação explosiva e insistente, incluindo o fato de ter um perfil um pouco religioso e místico, a fez ser taxada de louca.

Uma vítima de estupro seria tão descompensada?

Todas as vítimas foram estupradas pelo mesmo sujeito, em situações praticamente idênticas. No entanto, suas reações foram muito distintas. É essa a principal questão que permeia tanto o livro quanto a série: não podemos identificar um comportamento padrão para vítimas de estupro, no entanto mulheres são acreditadas ou desacreditadas em seus relatos a partir de suas reações aos crimes.

E isso é cruel.

A série aborda de forma muito mais sutil o que Marie realmente teve que passar. Ela saiu em jornais como mentirosa, teve repórteres esmurrando a porta do seu apartamento perguntando porquê ela mentiu, foi totalmente rechaçada pelos seus amigos. Uma das suas amigas, por exemplo, se recusou a devolver o laptop que Marie havia emprestado, sob a justificativa de que “se você pode mentir, eu posso roubar”. Ela perdeu o melhor amigo (o que estava conversando por horas pela madrugada no dia do seu estupro) e teve relacionamento com suas mães adotivas profundamente afetado. Elas também não acreditaram em Marie.

O seu caso virou exemplo de como mulheres mentem em suas denúncias, alimentando todo tipo de misógino que levanta teorias mirabolantes para defender a tese de que mulheres tem o poder de arruinar vidas de homens inocentes. Marie denunciou um estupro, e foi condenada por mentir. Ela sofreu um estupro e pagou uma multa ao município.

Marie passou dois anos como “a mulher que inventou ter sido estuprada”. E teria continuado assim, não fosse o fato do próprio estuprador ter tirado foto dela.

Ali, a prova incontestável do que ela dizia, finalmente veio à tona.

Não bastava que ela tivesse as marcas nos punhos por ter sido presa, não bastava o exame pericial ter apontado que ela havia sofrido lesões na região genital. A única coisa que fez com que o sistema de justiça acreditasse nela – a polícia, promotoria e judiciário – foi, ainda, o homem.

 

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