“Pesquisa revela que mulheres se sentem insultadas quando são chamadas de ‘gostosas’ por desconhecidos”. Ao lermos o título da matéria publicada na última terça-feira (19/05) pelo Jornal Extra, podemos pensar que ela não faz nada além de constatar o óbvio. Porém, em um segundo momento, nos animamos com o fato de que um tema como o assédio de rua, tão caro a nós mulheres, esteja ganhando espaço em um jornal de grande circulação. Afinal, a visibilidade é sempre benéfica, não é?

Nem sempre.  A visibilidade do dado em si – que 89% das mulheres se sentem incomodadas com esse comportamento masculino – é de certo benéfica. Entretanto, a forma como uma notícia é construída em cima desse dado – seja pela seleção vocabular, pela maneira como se escolhe encadear os fatos ou pelo enfoque dado a uns detalhes em detrimento de outros –  pode acabar comunicando significados mais favoráveis para um grupo do que para outro. No caso da notícia do Extra, as 89% saíram perdendo.

Para começar, em momento algum o texto faz uso da palavra “assédio”, automaticamente relacionada por nós a incômodo e a violência – e que não haja dúvidas: fazer uma afirmação de cunho sexual a uma mulher de forma que a insulta é assédio. Em vez disso, se faz uso da palavra “cantada” – associada por muitos a elogios e à paquera –, apagando-se completamente a violência de gênero presente no ato. Pior ainda, a matéria chama os homens que tomam parte no assédio de rua de “galanteadores”. Entre eles está Mr. Catra, funkeiro cujo repertório de frases misóginas inclui “Machista é botar sua mulher para trabalhar, querer que sua mulher seja independente”. Catra disse ao Extra que prefere “falar baixinho só para ela saber o quanto está gostosa”.

Bom, o assédio não deixa de ser assédio só porque um tom de voz mais baixo foi usado. A questão é simples: as mulheres não estão na rua para serem avaliadas. A esmagadora maioria delas deseja simplesmente se deslocar de um ponto a outro tranquilamente, sem ter seu espaço pessoal invadido por desconhecidos que insistem em tratá-la como um pedaço de carne em exposição. Como disse Verónica Lemi, ativista do coletivo argentino Acción Respeto:

Se analisarmos o ato da fala, o homem, ao emitir esta opinião quando passa, sem esperar resposta e, sobretudo, não a reconhecendo [a mulher] como interlocutora, coloca-a no lugar de tema da mensagem, quer dizer, como objeto sobre o qual se fala e não como pessoa com quem se está falando. Assim como é incômodo que as pessoas falem de nós como se não estivéssemos presentes, isto é incômodo para muitas mulheres porque elas têm essa sensação de desumanização. Muitas mulheres não pensam tanto sobre isso e até curtem, e isso é perfeitamente válido, mas não podemos deixar de ouvir as mulheres que estão expressando este incômodo, já que a situação comunicacional está claramente colocando-as neste papel de objeto. [1]

Não são apenas as palavras escolhidas que incomodam. São os olhares lascivos, os gestos, a postura, a entonação da voz, a insistência. Tudo isso constrange, invade e, sim, oprime.

Quantas vezes você, mulher, já não:

  1. atravessou a rua para se afastar de um grupo de homens que assobiavam para você?
  2. trocou de roupa pensando nos comentários que ouviria ao sair sozinha à noite?
  3. mudou de vagão no metrô porque um sujeito a encarava de forma lasciva, fazendo caras e bocas a viagem inteira?

Quantas vezes o comportamento desses homens a fez sentir medo? A matéria não toca nesses pontos ao tentar explicar por que as mulheres rejeitam tanto o “grito de gostosa”. Em vez disso, se faz uso de uma explicação vinda da psicologia:

Segundo Priscila Gasparini, especializada em Psicanálise, a mulher é mais instrumental. Ou seja, ela prefere uma abordagem mais sensorial do que o homem, que, segundo ela, escolhe sua companheira mais pelo lado visual:– O corpo bonito é que chama a atenção do homem, enquanto a mulher não gosta de ser abordada pelo cunho sexual. Elas gostam de papo. [2]

Antes de mais nada: até que ponto será que essas preferências apresentadas como características inatas de cada gênero não são na verdade meras construções sociais? A socialização da mulher sempre foi feita em torno da negação da sua sexualidade. Passamos nossas vidas inteiras ouvindo que “Mulher tem que se dar o respeito”, que sexo casual não é coisa de “mulher direita” e que devemos resistir às investidas dos homens – mulher não toma iniciativa! –, porque eles vão perder o interesse assim que “cedermos”. Não será essa repressão sistemática da nossa sexualidade a responsável por fazer muitas mulheres se dizerem menos interessadas em “corpos bonitos”? Como podemos afirmar então que a mulher é – verbo ser: possuir característica inerente – mais ou menos instrumental do que um homem se ela na verdade foi ensinada a agir dessa forma?

Apresentar essas preferências como parte da natureza dos homens ou das mulheres é passar por cima de todo um processo de socialização que reprime a sexualidade delas e exalta a deles. E apresentar unicamente essas preferências como justificativa para a rejeição das mulheres ao assédio é negar mais uma vez que o que está sendo chamado de “cantada” é uma violência de gênero. Não se trata de preferência de abordagem na hora da paquera, porque para 89% das mulheres isso simplesmente não é paquera. É assédio.

O tempo todo a matéria parece enfocar a ineficácia da “cantada” em vez de problematizar seu caráter agressivo e misógino. Pouco importa como a mulher se sente diante do assédio. O que importa é se, com ele, o homem vai conseguir o que quer. A matéria parece dizer aos homens: “Amigos, não passem mais cantadas, porque não vão conseguir nada com isso”, em vez de “Homens, parem de assediar as mulheres que veem na rua, porque seu comportamento as faz sentir insultadas e acuadas”. Novamente, a mulher é colocada em um local de passividade, de objeto de desejo que pode ser ou não conquistado dessa ou daquela maneira.

Ao dizer que a jovem Débora Adorno, de 22 anos, que inventou uma careta chamada de Dentinho para fugir do assédio, “percebeu que ser bonita era um problema”, a matéria reproduz ainda outro comportamento típico da nossa sociedade misógina: a transferência do foco do comportamento do agressor para o comportamento – ou, nesse caso, a aparência – da vítima. Em nenhum momento a cantada, tida no máximo como grosseria, foi caracterizada como um problema. Não, o problema está em “ser bonita”. Tanto que, assim que Débora arranjou uma forma de parecer menos atraente para os homens, o assédio cessou. Ou seja, o que se diz aqui, ainda que de maneira sutil, é que o problema não está no homem, mas sim na mulher.

Se ainda resta dúvida de que a matéria publicada no Extra foi um total desserviço a 89% das brasileiras, as fotos escolhidas para ilustrar a notícia podem saná-la rapidamente. Aparentemente feitas em um ensaio especialmente para essa matéria, as imagens mostram Alessandra Mattos, rainha da bateria da Inocentes de Belford Roxo, fazendo poses sensuais para um grupo de pedreiros que a observam com expressões de luxúria. Alessandra é uma das mulheres que disse ao jornal que sente sua autoestima se elevar ao ser chamada de gostosa na rua. Bom, se ela se sente bem, sem problemas. Mas por que escolher – ou melhor, produzir – imagens que representam a realidade de uma parcela tão mínima de mulheres em vez de se preocupar com as 89%? Simples: porque o corpo de Alessandra está sendo usado de chamariz em uma matéria que, como vimos, é feita sob uma ótica masculina e voltada puramente aos interesses dos homens.

Todos sabemos que a mídia em geral não costuma dar muitas bolas dentro quando o assunto é direitos da mulher. Entretanto, o que o Jornal Extra conseguiu fazer com um dado tão claro é simplesmente revoltante. Enquanto países como a Argentina trabalham para aprovar leis que classificam o assédio de rua como violência de gênero e preveem campanhas de conscientização sobre o problema, a esfera pública brasileira continua a negar sistematicamente que sequer existe um problema. Ou melhor: a dizer que o problema somos nós.

Bruna de Lara

 

[1]  CARBAJAL, Mariana. Argentina quer punir com multa e prisão assédio de rua contra  mulheres. Disponível em: <http://bit.ly/1DhLlBO> Acesso em: 20 de maio de 2014.

[2] ALFANO, Bruno. Pesquisa revela que mulheres se sentem insultadas quando são chamadas de ‘gostosas’ por desconhecidos. Extra. Disponível em: <http://naofo.de/4j2j> Acesso em: 19 de maio de 2014.

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