Desde as eleições de 2014, pode-se dizer que a mentalidade fascista e preconceituosa em geral, bem como o conservadorismo político têm adquirido forças. A conjuntura nacional do país mostra a mudança nesse clima político.

Os pensadores da teoria crítica consideram que ideologia e personalidade são fundamentais para se analisar o preconceito em suas diversas manifestações. Ele tem de ser pensado considerando, por um lado, o discurso dos agitadores e, por outro, a recepção dos ouvintes e os traços de seu caráter que proporcionam uma maior adesão.

As características psíquicas das pessoas são produtos de fenômenos como a desintegração da propriedade média, as mudanças na estrutura da família e a crescente impossibilidade de uma existência econômica autossuficiente [1]. Esses traços preconceituosos são, por exemplo, o pensamento estereotipado, o sadismo encoberto e manifesto, a adoração da força, o reconhecimento cego de tudo que é eficaz, a enfatização de valores convencionais, o êxito e a diligência [2].

Essas tendências autoritárias são mantidas através de: convencionalismo, a submissibilidade autoritária (um tipo de submissão totalmente acrítica à lideranças), a agressão autoritária (uma tendência de punir tudo aquilo que não for igual ao sujeito), a anti-intracepção (reação aversa ao que é subjetivo), o pensamento de poder (forte “identificação” com formas de poder), a destrutividade e o cinismo (um tipo de hostilidade generalizada), a projetividade (projeta-se no outro aquilo que se odeia em si próprio) e a sexualidade (um tipo de exagero no trato com os processos sexuais) [3].

Na questão do convencionalismo, por exemplo, percebe-se que o governo Temer – ilegítimo em sua gênese -, tem pressa em atingir seus objetivos reacionários e antipopulares, como aponta uma matéria na Carta Capital (2016), em que ele procura entregar o Pré-Sal a grandes multinacionais do petróleo, reorientar a política externa ao se alinhar a interesses dos EUA, tornar irrelevante a CLT e, ainda, reformar a Previdência para dificultar o acesso à aposentadoria. É um governo que foca no máximo de liberdade econômica através do máximo de conservadorismo político. Em outro momento, sobre a anti-intracepção, o lema do governo nem sequer tenta se esconder atrás de uma ideologia; pelo contrário, é explícito: “não pense em crise, trabalhe!”.

Em geral, são instrumentos de propaganda rígidos e repetitivos [4], no qual se utiliza um número limitado de truques retóricos padronizados [5], por exemplo, o  do orador se apresentar como o grande homem comum (idêntico aos outros, mas ao mesmo tempo um gênio), totalmente isolado e perseguido pela calúnia, separando o mundo em uma subdivisão de “ovelhas brancas” e “ovelhas negras”. Um bom exemplo disso é uma propaganda eleitoral do candidato à presidência Aécio Neves, em que há uma moça no centro da tela e várias pessoas vêm e falam em seu ouvido várias “calúnias” sobre ele. Logo após, o candidato aparece e fala “a verdade” sobre essas declarações.

Isso se torna interessante porque é a famosa técnica do homem que está sendo perseguido, contudo que segue firme em prol da população. É curioso também apontar que a pessoa da propaganda, além de ser mulher, é negra. Uma clara tentativa de dizer que eles apoiarão todas as classes e raças, o que é muito contraditório, considerando que suas políticas liberais são totalmente pautadas na exclusão dessas classes e no enriquecimento de uma minoria.

Esses agitadores políticos utilizam de técnicas como a do lobo solitário (no qual sozinho ele “luta contra o mal”)[6], do expediente da liberação emocional (satisfazendo essas necessidades dos ouvintes)[7], do inocente perseguido [8], da infatigabilidade (em que o homem, assim como seu inimigo, não pode descansar até que seu objetivo seja alcançado) [9], do mensageiro (que, através de mecanismos inconscientes, transforma-se naquele a quem se supõe que ele anuncia) [10], fingindo interesse pelos ouvintes [11] e pressupondo que há um “bom e velho tempo” (isto é, ressentimento a uma civilização tecnológica em que não se tem total alcance) [12]. Pode-se pensar que, pelo menos no caso do Brasil, esse “bom e velho tempo” para esses políticos conservadores seria a época antes que o PT estivesse no poder (com a entrada de Lula em 2002).

De forma geral, a propaganda autoritária é “baseada em cálculos psicológicos [13], que faz com que a multidão se incline “à ação violenta sem nenhum objetivo político sensato” [14]. Os ouvintes dessa propaganda estão prontos para se submeter à autoridade moral e, ao mesmo tempo, estão sempre alertas para condenar os que se encontram fora do grupo [15].

Em uma notícia da Carta Capital (2014), cerca de mil pessoas pediram por intervenção militar e os jornalistas que lá estiveram para registrar o momento tiveram suas redes sociais vasculhadas. Fotos e informações pessoais foram usadas para atacá-los, a partir da ideia de que eles seriam petistas.

 

 

A rigidez de pensamento desses ouvintes se dá por medo de se pôr em risco a sua falsa segurança, o que mina a mobilidade intelectual e a imaginação [16]. Além disso, há neles um desejo inconsciente de destruição e autodestruição. São propensos ao cinismo e ao desprezo pelos outros. Porém esse caráter não se atreve a confessar esse desejo, então projeta-o no inimigo, escolhido justamente para este fim [17]. Trata-se de pessoas com profundas lesões psíquicas, prisioneiras de seu ego fraco [18]. Também se observa que está generalizada certa indiferença perante questões relativas à política e à economia. Identificam os problemas dessa ordem com algum indivíduo ou “líder” famoso e reduzem questões complexas a um pensamento simplificado e engessado [19]. No caso do Brasil, trata-se do bode expiatório que o partido do PT se tornou.

Em parte, esses discursos e propagandas podem se efetivar graças a uma formação cultural que foca na cultura como algo a ser apropriado, como os bens culturais, fazendo com que a consciência seja de semiformação. A pessoa conhece as coisas pelo conhecer e não para implantar nas coisas humanas (ADORNO, 1996). Essa semiformação não é ingenuidade, mas sim, resultado de um longo processo de exploração consciente desse estágio de ignorância.

As pessoas que aceitam facilmente esses discursos e propagandas possuem a chamada mentalidade de ticket, que é a aceitação rápida e simples de slogans de propaganda preconceituosa, fascista ou conservadora. É um tipo de ticket reacionário em que o pensamento estereotipado toma o lugar do trabalho categorial (o pensamento propriamente dito) [20]. O objeto de representações preconceituosas (a vítima) é interpermutável, porque ele “cumpre uma função psicológica na economia psíquica do sujeito preconceituoso, de modo que as características do objeto do preconceito importam menos do que as características do sujeito preconceituoso” [21].

Essa mentalidade de ticket é notável nessas manifestações que têm ocorrido depois das eleições de 2014. O país inteiro basicamente se reduziu entre os petistas e os que não são petistas. Uma pessoa, quando é de esquerda, é logo chamada de petista, ignorando o fato de que há uma série de outros partidos e políticas. O PT se tornou a fonte de todo mal e de toda miséria e o culpado pela crise. O pensamento rígido generalizou essa mentalidade de uma maneira que, em determinado ponto, as pessoas começaram a agredir outras só porque essas estavam usando alguma peça de vestuário que fosse vermelha, como aponta o Blog da Cidadania (2015).

A importância da crítica dessa ideologia não é mostrar que suas ideias são falsas – até mesmo porque muitas vezes isso é óbvio -, mas sim tentar compreender a que configurações psicológicas essas ideias servem, quais são as disposições que elas querem incutir na humanidade e, ainda, como e por que a sociedade produz pessoas que reagem a esses estímulos e desenvolvem uma dependência deles [22]. A ideologia é um estado de conscientização e não-conscientização das massas, acontecendo dentro de relações de poder que não são intrinsecamente transparentes [23]. Ela proporciona um pensamento reificado que sugere que as coisas não poderiam ser diferentes do que são, aumentando o conformismo [24].

Os traços da personalidade e a ideologia propagada evidenciam o estado de esclarecimento e de formação no Brasil, já que a semiformação pode fortalecer a ideologia e promover uma formação regressiva (ADORNO, 1996), que colocaria em risco a civilização, considerando que essa semiformação ajuda no desenvolvimento da barbárie. A real formação deveria servir a reflexões transparentes em sua finalidade humana e à conscientização dos sujeitos sobre essa tolerância à brutalidade dos outros (ADORNO, 1995a).

A única escapatória aqui seria a possibilidade de se estabelecer relações espontâneas e vitais com os homens e as coisas [25]. Só são homens livres aqueles que “oferecem uma resistência antecipada aos processos e influências que predispõem ao preconceito” [26]. A consciência só sobrevive enquanto crítica de si e da ideologia; ela tem de ser autônoma, substancial e dotada de legitimidade [27]. É uma questão de sempre revisar aquilo que nos é dado como certo, bem como nossa moral e ética estabelecidas.

 

Marília Silva Martins Mendes

 

Notas de rodapé

[1] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 173.

[2] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 176-178.

[3] DUARTE, 2007, p.83.

[4] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 174.

[5] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 175.

[6] ADORNO, 1943, p. 2.

[7] ADORNO, 1943, p. 3.

[8] ADORNO, 1943, p. 5.

[9] ADORNO, 1943, p. 6.

[10] ADORNO, 1943, p. 7-8.

[11] ADORNO, 1943, p. 11.

[12] ADORNO, 1943, p. 12.

[13] ADORNO, 1951/2006, p.164.

[14] ADORNO, 1951/2006, p.165.

[15] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 178.

[16] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 179.

[17] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 179.

[18] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 180.

[19] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 181.

[20] ADORNO & HORKHEIMER, 1947/1985, p.95.

[21] CARONE, 2012, p. 15.

[22] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 192.

[23] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 193.

[24] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 203.

[25] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 180.

[26] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 181.

[27] ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p. 200.

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DUARTE, R. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007.

 

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