MC Melody é uma menina de 8 anos que está fazendo  sucesso cantando funk ao mesmo tempo causando bastante polêmica. Isso porque Melody aparece em vídeos e fotos em poses sensuais, com maquiagem, bojo no sutiã, ou seja… com o intuito de aparentar não ser uma criança.

Vemos isso também com outras meninas da idade de Melody. É o que chamamos de adultização e sexualização de crianças. A adultização é a “a inserção precoce da criança no mundo do adulto [que] encurta sua infância” (1). Isso ocorre especialmente por causa da publicidade. A Dra. Cristhiane Ferreguett, autora da tese de doutorado “Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas” explica:

A sua tese tem o objetivo de discutir a questão da adultização das crianças, correto?

 Cristhiane Ferreguett – Sim. O título da minha tese é Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas; um trabalho de doutorado em letras defendido, em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Trata-se de um estudo sobre o discurso midiático dirigido às crianças, em especial às meninas, na faixa etária dos 6 aos 11 anos de idade. Tomei conhecimento de pesquisas que constataram que a criança desenvolveu certo grau de ceticismo em relação à publicidade. A criança sabe que o intuito da propaganda é vender e que para isso ela apresenta um discurso persuasivo que, na maioria das vezes, não corresponde à realidade. Para vencer esta resistência, o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis. Inserido em reportagens, o discurso publicitário passa a ser mais aceito pela criança. Portanto, na minha tese, analisei como o discurso publicitário se engendra na tessitura discursiva de reportagens de uma revista infantil da Editora Abril, a Revista Recreio Girls, e que efeitos de sentidos produz no que se refere à adultização precoce da menina.

E o que você observou?

Cristhiane Ferreguett – Após analisar detalhadamente três reportagens de diferentes exemplares, constatei que as reportagens apresentam diversas características do discurso publicitário, como apresentação de marcas e preços de produtos. A adultização precoce da menina é construída discursivamente e pode ser observada pelos modelos adultos apresentados como referência de como a menina deve se vestir, maquiar, pentear e do modo como ela deve agir e ser, a fim de promover e incentivar o consumo de produtos normalmente desnecessários para uma criança.

E a adultização da infância se constitui num problema, certo?

Cristhiane Ferreguett – Sim. A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta sua infância. Existem estudos que comprovam um encurtamento da infância no plano fisiológico, as meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o número de gravidez na adolescência.

O fato é que essa adultização, muitas vezes, é compreendida como ‘algo normal’.

Cristhiane Ferreguett – Adultizar uma criança significa inseri-la precocemente no mundo adulto. Isso pode acontecer de diversas formas. Por exemplo, no inicio do processo de industrialização do nosso país a criança era inserida no trabalho das fábricas e era exigido delas a produtividade e a responsabilidade de um adulto. Hoje o trabalho infantil não é mais aceito. A adultização está acontecendo de outras formas, através do incentivo de comportamento e aquisição de produtos desnecessários a criança.  Já é possível encontrar e comprar  sutiãs com bojo para meninas a partir de 2 anos de idade. Meninas pequenas usam maquiagem e sandálias de salto alto, comprometendo a saúde da sua pele e da sua coluna. Para a indústria e o comércio isso é muito bom, no sentido em que uma criança que vive sua infância com comportamento de criança consome muito menos do que uma criança adultizada. E, sim, existe uma banalização deste comportamento no sentido que a sociedade passa a aceitar isso como normal e adequado.

Uma forma frequente de vender produtos se dá com apelos sexuais. Não é à toa que sempre criticamos propagandas que objetificam e (hiper)sexualizam mulheres. Agora, as meninas estão sendo também atingidas por essa publicidade machista. Outra pesquisa, entitulada “Crianças como Pequenos Adultos? Um Estudo Sobre a Percepção da Adultização na Comunicação de Marketing de Empresas de Vestuário Infantil” afirma que:

A sexualidade na propaganda é frequente em vários lugares do mundo, no Brasil inclusive. D’Emilio e Freedman (1989) apontam que o consumo contemporâneo é fortemente promovido por meio da promoção de fantasias eróticas e sexualização de vários aspectos da vida.Tais processos são persuasivos e atingem todo o escopo social. Não à toa, a entrada, cada vez mais precoce, de crianças no mercado de consumo vem se tornando mais visível. Tal mercado é considerado um dos mais atrativos por indústrias de vários setores (movimentando só no Brasil R$50 bilhões/ano, segundo o Sebrae) e apresenta taxas de crescimento consideradas bastante interessantes. O problema que se apresenta para as empresas é que crianças não têm renda própria e, embora possam desempenhar o papel de influenciadoras ou iniciadoras do processo de consumo, não são consideradas ‘independentes’.Tal problema parece ser minimizado por alguns fornecedores de produtos infantis pormeio de um processo de adultização, que atribui às crianças características de independência, capacidade de discernimento própria de adultos e aspectos de erotização e/ou sexualização. Trabalhos anteriores indicam que existe um processo de adultização, como forma de socialização para o mercado de consumo (SILVEIRA NETTO, BREI e FLORES-PEREIRA, 2010). Brei, Garcia e Strehlau (2008) apontam que as crianças são mais permeáveis aos estímulos de marketing que seriam capazes não apenas de influenciar processos inerentes ao consumo, mas também o desenvolvimento individual. Tal opinião é corroborada por autores de outras áreas, como o Direito, por exemplo. Lima (2011) afirma que comunicaçõesmercadológicas dirigidas às crianças se valem de vulnerabilidades características do público e podem resultar em comportamentos excessivos de consumo, bem como obesidade, erotização precoce e estresse.

A antecipação de padrões de comportamento pertencentes ao mundo adulto pode trazer consequências perigosas. No entanto, vários fornecedores de produtos infantis ampliam suas linhas especificamente em tal área. A loja de roupas Lilica Ripilica, analisada em Silveira Netto, Brei e Flores-Pereira (2010), sofreu algumas ações penais que a condenaram especialmente por uma campanha publicitária, cujo outdoor é apresentado na Figura1, na qual uma menina de aproximadamente quatro anos aparecia em pose sensual e com um pedaço de doce na mão, ao seu lado a frase: “Use e se lambuze”. A campanha, criada 2008, foi considerada inapropriada por sua conotação erótica e retirada das ruas. (2)

A sexualização de crianças é uma questão intimamente ligada à da adultização. A publicidade não retrata meninas somente como adultas, as retrata como adultas erotizadas.

Crianças estão em idade de desenvolvimento, portanto, são mais facilmente influenciáveis. Por isso, estão sempre imitando seus ídolos favoritos e são alvos constantes da publicidade. E é exatamente isso que Melody faz. Inclusive, não esconde sua admiração pela também funkeira Anitta. Como mães e pais, temos a responsabilidade de impor limites e de regular e filtrar o acesso que nossos filhos e filhas têm à mídia em geral. Daí o grande problema no caso da menina Melody: um pai que não só incentiva tais comportamentos como lucra com eles.

Melody é uma criança, mas as pessoas que entram em sua página do Facebook para tecer os comentários mais odiosos, não. São adultos que se dirigem a uma criança com ofensas terríveis. A revolta é compreensível, mas não pode chegar a esse ponto nem ser dirigida a uma criança.

As críticas à carreira ascendente de Melody geraram, inclusive, uma petição online que pede ao Conselho Tutelar que investigue e intervenha no caso. A petição em 4 dias angariou mais de 24 mil assinaturas. A repercussão negativa nas redes sociais das fotos e vídeos da menina chamaram a atenção do Ministério Público de São Paulo que, no dia 23 deste mês, por meio da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude, “abriu um inquérito para investigação sobre ‘forte conteúdo erótico e de apelos sexuais’ em músicas e coreografias de crianças e adolescentes músicos” (4). A investigação não se concentra somente em Melody, mas também em outros “funkeiros-mirins como MCs Princesa e Plebeia, MC 2K, Mc Bin Laden, Mc Brinquedo e Mc Pikachu” (5).

O que devemos entender é que o problema não é a Melody. O problema não é uma menina cantar funk. Não é culpa de Melody que existem pedófilos, como alguns afirmam. Muitos colocam toda a responsabilidade no pai de Melody – e certamente ele carrega grande parte da culpa -, mas não podemos de deixar de notar o contexto maior por trás de tudo isso: uma sociedade capitalista de consumo que está se voltando para adultização e sexualização de crianças.

(1) Entrevista da Dra. Cristhiane Ferreguett. Fonte:  http://www.revistapontocom.org.br/entrevistas/adultizacao-da-infancia

(2) BARROS, Renata Armelin Ferreira;  BARROS, Denise Franca;  GOUVEIA, Tânia Maria de Oliveira. Crianças como Pequenos Adultos? Um Estudo Sobre a Percepção da Adultização na Comunicação de Marketing de Empresas de Vestuário Infantil. Disponível aqui.

(3) EXTRA. MC Melody, de 8 anos, causa polêmica e pai defende: “É só porque ela canta funk”. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/brasil/mc-melody-de-8-anos-causa-polemica-pai-defende-so-porque-ela-canta-funk-15737518.html#ixzz3YCN0nLx7

(4) SENRA, Ricardo. BBC BRASIL. Ministério Público abre inquérito sobre ‘sexualização’ de MC Melody. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/04/150424_salasocial_inquerito_mcmelody_rs?ocid=socialflow_facebook.

(5) Idem.