Imagem por: @brunastica
Há tempos que não escrevo por aqui com os punhos doloridos . A explicação talvez esteja no fluxo do cotidiano. Aos poucos a gente vai naturalizando a dor, normatizando as perdas e infantilizando o luto.
Por dias vivi acreditando que estava anestesiada da realidade e que as estatísticas não chegavam até aqui. Paguei para crer até sentir os sintomas virais e automaticamente pensar que fosse o dito cujo tão nominável nas manchetes de jornais.
Felizmente não era COVID-19. Os sintomas se foram, mas o estado de morte ficou. Passei alguns dias com essa sensação mórbida de vida. É bem difícil narrar tal sensação, pois o medo e a sua iminência se agravavam na mesma medida em que você pensava sobre ela: a morte.
O que é a morte diante da vida? O que é a vida diante da morte? Questões tão filosóficas que são incapazes de gerar qualquer sensação de tranquilidade frente a esses questionamentos.
Resolvi, então, encará-las. Trazer a morte para uma conversa. E foi num fim de semana chuvoso que resolvemos nos encarar. Imaginar que sente a morte pode parecer loucura, mas foi o caminho para atravessar a dor. Por quê não? Não seria esse o destino inevitável?
A síntese desse momento não é tão redigida, mas foi sentida e ressignificada. Você sai como quem escapa da morte e deseja, cada vez mais, a vida.
Saí faminta por querer viver. Passei a ponderar um pouco mais das coisas que eu priorizei tanto e notei que o simples, apresentado no dia-a-dia, se tornou notável. O olhar mudou. A forma de sentir vem se modificando cada vez mais. Novos modos de conceber as relações e a própria vida estão se tornando minhas prioridades.
Devo dizer que essas mudanças estão acompanhando o ritmo musical e estético do trabalho artístico da Bruna Brandão (@brandao.bru). Me vejo em seus versos e na sua estética. Nesse mergulho de auto resgate.
Dediquei alguns versos para ela como quem escreve para si. Li para ela como se eu lesse para mim. E agora divido com vocês:
Resgatar-se
resgato-me das profundezas do meu próprio lamaçal. Imersa em mim e nas crostas que restaram dos impactos da maré, não sendo a mesma e nem inteira do que acreditava ser.
fiz do bisturi a lâmina pontiaguda para cortar o nó e tirar dele fitas aveludadas para enfeitar não mais a morte, mas, sim, a vida.
fitar como quem fita uma engenharia orgânica de decomposições de um passado que se tornou memória audível para quem nunca me escutou.
não preciso mais gritar. meu som é a própria revelação dos mistérios desvendados por mim.
atravessei a morte, atravesso a vida.
retorno ao chão argiloso para fazer desse barro meu ninho de sonhos, composições e bem-me-quer.
nada mais me impede de ser a leveza das cores soltas em outro mundo submerso de possibilidades recriadas pela própria força de quem o criou.
resgatar a vida como quem conhece a morte.
resgatar a morte como quem deseja a vida.
e nessa passagem, encontrar o amor, viver o amor
sentir o amor.
(se)enfeitar de amor.
resgatar o amor.
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não sendo mais o que foi ontem, ou o que virá amanhã
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resgato o meu amor, que trago hoje, fitado de lilás.