“A educação se faz com atitude e não com complacência”, afirmou a Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) em nota, após uma sindicância interna constatar a postura incompatível de um de seus estudantes com o ambiente universitário e determinar sua expulsão. O estudante mencionado era, na verdade, uma estudante: Geisy Arruda. A atitude incompatível com os valores da Uniban? Os vestidos curtos que a aluna vestia durante as aulas.

Nos mais de seis anos que se passaram desde a expulsão de Geisy, inúmeros relatos de violência sexual nas universidades brasileiras vieram à tona. Somente este mês, tem-se notícia de diversos casos de estupro ou tentativas de estupro que ocorreram em diferentes universidades no Brasil: uma estudante foi estuprada no campus da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD); na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), outro caso; e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foram pelos três tentativas de estupro apenas na última semana. Para esses casos, porém, parece haver espaço para muita complacência, tendo em vista que a única atitude tomada é, em geral, a omissão.

Em 2014, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Alesp que pretendia investigar casos de estupro na Universidade de São Paulo (USP). Dos dez casos denunciados à CPI, apenas três resultaram em sindicâncias , e apenas um dos estupradores foi punido. O homem em questão, aluno de medicina, era acusado de estuprar três estudantes. Sua penalidade? Uma suspensão de 180 dias por “infração disciplinar”, que depois foi prorrogada. O que é um estupro em comparação a um vestido curto, não é mesmo?

Na última semana, a discussão da violência sexual nas universidades tomou novo fôlego com a realização de diversos protestos na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), localizada em Seropédica. Centenas de alunas, a maior parte delas trajando preto, em luto pela situação da UFRRJ, ocuparam os prédios do campus em protesto pela falta de segurança e os recorrentes relatos de violência contra a mulher na instituição. Nas redes sociais, a hashtag #MeAvisaQuandoChegar vem sendo usada para denunciar casos de violência contra a mulher nas universidades.

Apenas este ano – ou seja, em dois meses de aulas – ocorreram ao menos três casos de estupro no campus. Quem conhece a Rural sabe que a violência sexual sempre causou muita preocupação para suas estudantes. São, afinal, 3.200 hectares, com enormes áreas abertas e mal iluminadas, protegidos por nada mais do que 40 vigilantes. Segundo a instituição, o Ministério da Educação não contrata novos agentes há mais de 20 anos. O problema com a segurança, porém, é bem mais antigo. A página Abusos Cotidianos – UFRRJ, criada em 2013, reúne hoje mais de 600 relatos de abuso sexual, ocorridos desde os anos 70 até os dias de hoje. A maior parte deles nunca foi registrada.

Foto retirada da página Abusos Cotidianos – UFRRJ 

O caso que serviu de estopim para as recentes manifestações ocorreu no início de março. Em entrevista ao Catraca Livre, Pamela Machado, aluna de Comunicação e uma das moderadoras da campanha #MeAvisaQuandoChegar, relatou o caso: “em uma festa de integração, uma menina foi estuprada e ainda teve a calcinha, que estava ensanguentada, levada por seu estuprador. Ele desfilou com a peça na cabeça até o alojamento masculino”.

A situação, infelizmente, está longe de se restringir à UFRRJ. Em novembro passado, o Instituto Avon e o Data Popular divulgaram a pesquisa “Violência contra a mulher no ambiente universitário”, um estudo realizado com mais de 1.800 universitários brasileiros – em sua maioria, de instituições particulares. Os resultados revelaram o que tantas de nós, por experiência própria, já sabíamos: a universidade está longe de ser um local seguro para as mulheres.

Os dados mostram que 67% das universitárias afirmam ter sofrido pelo menos um tipo de violência dentre as citadas pelos pesquisadores; 42% já sentiram medo de sofrer alguma violência na universidade; 36% já deixaram de fazer alguma atividade na universidade por medo de sofrer violência. Enquanto isso, aproximadamente um terço dos homens não sabe reconhecer a violência: abusar de uma garota bêbada, repassar fotos ou vídeos de colegas sem sua autorização e coagir mulheres a participarem de atividades degradantes não são atos considerados violentos por 27%, 32% e 35% dos homens, respectivamente.

Apesar da gravidade da situação, as universidades brasileiras parecem, para dizer o mínimo, pouco preocupadas com o problema. Sempre que um novo caso chama a atenção da imprensa, os representantes das instituições se apressam em emitir notas que expressem sua “enorme lamentação” e seu “mais profundo repúdio” à violência contra a mulher. Se a pressão aumenta, dão um raro e insignificante passo à frente, admitindo seu “inadequado acompanhamento” e pedindo desculpas. Qualquer forma de ação minimamente eficaz, porém, parece fora de cogitação.

Aos agentes de segurança falta, muitas vezes, o mínimo de preparo para lidar com casos de violência contra a mulher. Às alunas, falta informação. Se você ou uma amiga fosse abusada por um colega ou mesmo por um estranho no ambiente universitário, você saberia a quem recorrer? Quais as instâncias da sua universidade responsáveis por acompanhar casos de estupro ou de outras formas de violência contra a mulher? Quais os trâmites que se seguem a uma denúncia? Que medidas a universidade tomará para garantir sua segurança ao decorrer desse processo? Vocês sabem responder a essas perguntas? Eu não.

A falta de esforço das universidades para prevenir a violência e acolher suas vítimas ainda se soma a tentativas constantes por parte das instituições de ensino de acobertar casos de estupro, a fim de preservar sua imagem. Essa questão foi amplamente abordada pelo documentário norte-americano The Hunting Ground (2015) – disponível no Netflix! – , que expôs a forma sistemática com que vítimas de estupro são silenciadas e culpabilizadas nas universidades dos EUA, onde o estupro chegou a “níveis epidêmicos”.  De acordo com um estudo publicado no periódico Journal of Adolescent Health, 15% das estudantes entrevistadas relataram terem sido vítimas de estupro ou de tentativas de estupro. É importante ressaltar ainda que, segundo o Departamento de Justiça norte-americano, cerca de 80% dos casos de estupro não são relatados.

As tentativas de dissuadir as vítimas de registrarem os casos – “Você não sabe pelo que ele [o abusador] está passando no momento” –, de culpá-las pelo abuso sofrido –  “O que você poderia ter feito de diferente nessa situação?” – ou mesmo de subverter as provas apresentadas por elas – “Isso prova que ele te ama!” – são constantes. Se o caso é registrado e chega aos noticiários, a resposta é automática: “Nós levamos isso muito a sério”. Porém, se uma sindicância é aberta, o estuprador raramente é tido como culpado.

Se juntarmos todos os estupros relatados em um determinado recorte de tempo às universidades citadas no documentário e todas as punições aplicadas, temos 968 estupros, 10 suspensões e 7 expulsões. Na Universidade de Virgínia, em que os 205 casos de estupro relatados resultaram em zero expulsões, 183 estudantes foram expulsos por cola e outras violações ao código de honra da instituição.

Claramente, há algo errado. Diversos estudos situam a porcentagem de falsos relatos de estupro entre 2 e 8%*. Invertendo o raciocínio, isso significa dizer que de 92 a 98% dos relatos de estupro são verdadeiros. Como, então, apenas 1,75% dos casos relatados nas universidades americanas podem ter resultado em punições? Ainda que considerássemos que os casos possam ter sido cometidos pelos mesmos estupradores, os números continuariam baixíssimos. Imaginando que cada agressor tenha cometido seis estupros, teríamos 17 punições para 161 estupradores. Ou seja, um índice de 10,55% de punição.

Dada a dimensão do problema, em 2014 o Departamento de Educação americano começou a investigar 86 instituições de ensino superior por ignorar casos de violência sexual cometidos em suas dependências. Parece que as Universidades brasileiras adotam a mesma estratégia: colocar panos quentes no assunto para não comprometer a imagem da instituição.

A quase garantia de impunidade dentro do ambiente universitário é ainda mais perturbadora se pensarmos na frequência com que as vítimas são obrigadas a frequentá-lo. Todos os dias, mulheres sobreviventes de estupro são obrigadas a compartilhar os prédios de sua universidade – quando não suas salas de aula – com seus estupradores, que podem vir a atacar outra mulher a qualquer momento. Estudos norte-americanos* mostram que cerca de 8% dos alunos são responsáveis por mais de 90% dos estupros cometidos nas universidades estadunidenses, e que agressores reincidentes cometem, em média, seis ou mais estupros.

É evidente que o estupro só pode se tornar um problema dessa dimensão em um ambiente permeado pela cultura de violência contra a mulher. O machismo nas universidades pode ser sentido desde a entrada das mulheres na graduação, quando são muitas vezes recebidas com trotes opressivos e coagidas a tomar parte de atividades degradantes. Nos eventos de integração, a misoginia continua presente. Neste semestre, a festa de recepção dos calouros de medicina da Faculdade Metropolitana de Amazônia (Famaz), por exemplo, recebeu o nome de “dopasmina”. Em 2013, uma calourada de medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) recebeu o mesmo nome. Recentemente, um de nossos seguidores nos enviou a letra de um dos “gritos de guerra” entoados em eventos esportivos da Universidade de Brasília (UnB), em que se lia: “a de amor, b de buceta, c de cu, d de dedada, e de enfiar, f de fuder, g de gozar, h de hímen rompido, i de ‘istrupar’ (sic)…”. Nas salas de aula, o problema permanece. Quase metade (49%) das universitárias já passaram por algum tipo de desqualificação intelectual e mais da metade (56%) já sofreram assédio – violência cometida, muitas vezes, não só por colegas, mas também por professores e outros funcionários das instituições.

Apesar de todos os dados e relatos alarmantes, nós, mulheres, continuamos a ser a última das preocupações das reitorias e de muitos de nossos colegas. Onde faltam medidas de segurança e acolhimento, sobram atitudes de relativização da violência e culpabilização das vítimas. Em novembro de 2015, uma mulher foi estuprada por um estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dentro do alojamento da universidade. Em protesto ao ocorrido, as mulheres da residência estudantil atearam fogo ao colchão do estuprador. Pouco depois, não faltou quem as chamasse de “fascistas” e “delinquentes juvenis”, ou mesmo quem  as classificasse como uma “facção criminosa”. Mais recentemente, as mulheres da UFRRJ vêm sendo hostilizadas por picharem suas denúncias nas paredes da universidade. Enquanto isso, o estuprador que desfilou com a calcinha ensanguentada de sua vítima pelo campus parece contar com a compreensão de diversos de seus colegas, que, sabendo obviamente de sua identidade, não vieram a público para denunciá-lo.

É inaceitável que a situação siga como está – ou como, na verdade, sempre foi. Já há alguns anos que somos maioria nas universidades brasileiras. Porém, a verdadeira aceitação das mulheres só irá se concretizar quando pudermos ter nossa integridade física e emocional asseguradas. Quando formos, enfim, levadas a sério.

*Dados retirados do documentário “The Hunting Ground”.

 

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