Cédito foto: @eriveltoncamelo

“A poesia é quem vence, sempre”, esse é o lema do Slam do 13, uma das cinco primeiras batalhas de poesia faladas do país, criada por um grupo de poetas periféricos em busca de uma literatura independente e inclusiva. Nesse mês de julho, o grupo comemora 8 anos de espaço de escuta, troca, potência e, claro, poesia. Na celebração, poetas ocupam as redes sociais do @slamdo13 por 24h com conteúdos autorais, e uma das convidadas foi a escritora Michele Santos. Professora e poeta, Michele é do extremo da Zona Sul de São Paulo, e busca amplificar vozes femininas periféricas. Ela é uma das organizadoras da FLIGRAJA (Feira Literária do Grajaú), do Sarau Sobrenome Liberdade e slammer das antigas. Conversei um pouco com ela para entender mais sobre o seu processo nesse movimento literário cuja força cresce cada vez mais no Brasil.

Ana: Você pode me contar sobre o seu envolvimento com o slam?

Michele: Estou na cena há quase 10 anos, vi o Slam do 13 nascer. O Slam chegou aos poucos e começou a trazer poesia de arena. No sarau não tem exigência de nota ou algo que se paute em performance, o slam vem trazendo isso. Quando se tem a ideia da performance envolvida, o processo é outro. Tem toda a questão de colocação da fala, o modo como vai falar cada palavra, e com isso o Slam te faz ensaiar os próprios poemas. E tem muito resgate da literatura oral. Falam que poemas de slam não funciona muito em livro, e é justamente porque eles são oralidade pura, é imediato, comandado pela reação do público: “bateu levou”. E tem a questão do coletivo bem presente, da catarse coletiva. Quando você une performance com um bom poema escrito, você vê como ele leva o público, acho isso muito bonito.  Nada se compara ao Slam ao vivo, a energia que paira.

Eu já frequentava saraus, eu era a pessoa do papelzinho com mão tremendo, mas quando comecei a me envolver com o Slam, já tinha uma autoconfiança de recitar em público. Quando você percebe o poder que tá emanado através das suas palavras e como está tocando as pessoas, percebe que: pera aí, isso aqui é sério. Foi no recitar que comecei a abraçar a minha palavra. E no processo de ensaio, comecei a achar os tons, a potência de cada  palavra dita e me tornou mais próxima dos meus textos que ensaiava. O poema fica mais meu, mas internalizado. No Slam sempre temos o chamamos de poema “hit”, que fica na memória afetiva das pessoas que frequentam; o meu poema “(E)fême(r)a” é um que percebo que quando eu começo a recitar, mexe com as pessoas, em especial as mulheres. Ao longo do tempo esse movimento mudou muito, no começo era mais experimentação, agora o Slam se configura como um grito.  É poesia combativa e de coletividade.

Hoje me considero slammer aposentada. Não ensaio mais poemas, foquei mais nos saraus. Ainda vou assistir às performances, vez ou outra disputo. Mas não estou no rol dos competidores que vivem disso, que cumprem a saga de rodar vários slams pra tentar a final do nacional, que garante que o poeta vá disputar na França o mundial de poesia.

Ana: Para você, quais passos o Slam ainda tem a dar?

Michele: Eu comecei a perceber com o passar dos anos que algumas pessoas levavam a batalha muito na carne. O lema do Slam do 13 é “a poesia sempre vence”. Eu levo isso muito a sério. Toda vez que perco – e tudo bem! – não é um demérito para a minha poesia. Mas muita gente começou a levar para um lado muito pessoal.  É muito difícil garantir que o lema seja seguido por todos.  E algumas pessoas ficavam muito bravas quando perdiam ou quando o juiz dava certa nota. Para mim isso foi um pouco o fim da utopia. E se eu fosse falar algo pros mais jovens no movimento, seria: n uma fórmula. Essa preocupação de fazer um poema só para ganhar, acaba encaixotando a mensagem a um formato único e tira o que é próprio da poesia: a quebra das convenções, o buscar o divergente, o diferente . A inovação e renovação da linguagem. E, por fim, deixo um pedido para que os juízes deem notas maiores para poemas diferentes também (risos), por exemplo, os de amor.  Gostamos de poemas politizados, mas gostamos de vários outros temas também. Poxa, juízes, nunca lhes pedi nada (mais risos).

Ana: O que você mais gosta no Slam?

Michele: Da aura catártica, do resgate da literatura oral, do silêncio comungado durante a performance: chega parece uma igreja. “A palavra tem poder, irmão”.  E há algumas coisas que ficaram como uma assinatura dos slams, como o “pow pow pow” coletivo no final, as punchlines criativas, que são versos mais provocativos, que despertam reação imediata do público.  Gosto muito de como dialoga com o hip hop, acaba sendo um território muito fluido e conhecido para quem j . Acredito que o Slam é também espaço mediador de literatura: a pessoa que está ali vendo o Slam em um espaço público, é pego pela literatura mesmo sem perceber. E tem uma característica que é a de ser denúncia. Apontar o que há de injustiça em recortes geográficos, (periferia), raciais, de gênero. É um fazer artístico que atinge a quem está de fora desse núcleo geográfico/social.

 

 

Ana: Qual a importância da poesia nas ruas?

Michele: A poesia enquanto gênero literário só sobrevive se ela se reinventa. A  própria condição da poesia é ser essa intromissão na linguagem constituída. Ela é uma possibilidade infinita de quebra, quebrar o que já está posto. E quando ela está na rua, não é só do literato. Acho importante isso. A poesia não está só na alta literatura. Aliás, o que é “alta literatura?” Por isso que se mantém viva. Acho bacana artes urbanas que se pautam em poesia, é uma maneira desse gênero literário cumprir seu papel: você está ali no seu cotidiano, a caminho do trabalho, sei lá, e quando a poesia te pega, você sai da linha reta, do seu papel de formiguinha , de cidadão condicionado, e vai para um lugar dentro de você que leva seu pensamento pra passear. O texto ir para rua é uma pulverização poética na vida, que está cada vez menos poética.

Ana: Como você tem se relacionado com o Slam virtual?

Michele: Acho que  se perde muito virtualmente do que compõe os encontros, aquela onda que perpassa quem está ali junto acompanhando a performance. Falta a energia que corta o ar. Mas, claro, esses eventos online são por causa da pandemia, então coloquei para mim que está muito longe do ideal, mas é o que está sendo possível. É importante nos tempos pandêmicos ter expressões artísticas ao invés de só notícias ruins. É onde a arte dá aquela salvada. Interessante pensar também na facilidade de conexão de pessoas que estão geograficamente longe, mas que agora podem se unir, justamente pelo evento acontecer online.

Ana: Como começou sua paixão pela poesia?

Michele: Sempre gostei de ler. Sou filha de políticas públicas bem sucedidas, como a criação dos ônibus bibliotecas.  Ali que comecei a criar um comportamento leitor. Outra história curiosa, meu pai achava bonito ter livro em casa, então tínhamos umas coleções de livros antigos com capas de madeira que na época eram vendidas de porta em porta, e dentre elas tinha uma coleção de poetas românticos, como Castro Alves e Álvares de Azevedo. Esses foram os primeiros poetas que li. Depois ao longo dos anos fui conhecendo mais livros e construindo uma bibliografia pessoal. No começo o cânone era mais acessível, depois fui tendo contato com a produção mais contemporânea. Quando mais nova não me achava escritora. Via como uma criação muito tímida e muito para mim.Foi essa cena literária que me faz acreditar que é possível. Que somos possíveis. Hoje em dia acho que a arte periférica tem toda uma cara específica que se delineou nas últimas gerações. Antes parecia que ser artista não era para quem fosse da periferia e agora esse estigma está cada vez menor, graças às poesias de rua e a políticas governamentais de inserção e valorização das escolas públicas.

Ana: Quais são suas atuais referências na poesia?

Michele: Difícil responder essa. Cada vez mais eu busco a minha própria voz, meu jeito de escrever. Tenho ficado cada vez mais uma pessoa do papel. Na minha escrita tem recursos linguísticos que funcionam muito no papel. Espaços, silêncios, o branco da página que também faz parte do poema, alguns neologismos, colocações que parecem gramaticalmente desviantes mas têm funcionalidade. Nossa voz nunca é totalmente original porque é construída por referências. Mas tenho trabalhado em toda uma construção de tentar achar minha a minha própria. Sou um mix de todas as referências que li e apreciei e agradeço essa ancestralidade na literatura: minha voz literária são todas as vozes que um dia li e me tocaram. Gosto de curtir o que cada linguagem tem de seu, enquanto buscamos o nosso .

Ana: Como foi publicar seu primeiro livro “Toda via,” Você tem trabalhado em mais algum livro para publicação?

Michele: Sou muito grata a esse livro, primeira publicação. Foi independente, então, aprendi a fazer lançamento em saraus, em slams,  vender de mão em mão. “Toda via,” foi o livro que me apresentou como escritora. Me fez acreditar nisso, levar a sério. Estou nesse momento trabalhando meu segundo livro, ainda um pouco perdida na montagem, mas em 2022 sairá. Esse novo livro traz mais encontros com a temática da memória, ainda trato de temas outros que estão no primeiro livro, as mulheres, a política, a metalinguagem, a grande busca que é essa voz própria, que acredito que está mais madura. Evolução do que eu já vinha trazendo como construção de linguagem no “Toda Via,”. Quando eu olho meu primeiro livro, costumo pensar em mim menina, quando me falava por dentro, como se um sonho: cara, um dia você vai ser escritora. Bem, olha ele aí.

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