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Os momentos mais deliciosos – e muitas vezes mais duros – de nossa vida são aqueles epifânicos. Quando tudo muda. São marcos que dividem o antes e depois na forma de enxergar o mundo. Dentre as epifanias que vivenciei durante o processo de transição que é a adolescência, ressalto aquelas relacionadas ao feminismo – verdadeiras fronteiras que definem o meu ‘eu’ como o ser que é hoje.

Sempre fui instigada a não me acomodar, a não desistir de minhas perguntas. E sempre me revoltava com as injustiças, tanto nas histórias de ficção que li quanto na vida real. Mas não conseguia enxergar o que estava debaixo de meu nariz: eu vivia injustiças na pele. Não era sobre o outro, era sobre mim mesma. Era sobre ser mulher.

Até meus quatorze anos, feminismo não passava de um substantivo, não significava nada mais do que a definição seca e pragmática que a Wikipédia fornece. Dentro do ambiente escolar e doméstico, eu nunca havia sofrido nenhuma discriminação escancarada que abrisse meus olhos. Eram sempre micromachismos, aqui e ali, totalmente naturalizados e que, portanto, eu nunca havia parado para refletir sobre.

Com quatorze anos, as coisas começaram a mudar. Como trabalho para a escola, tive que fazer uma apresentação sobre feminismo e machismo. Por mais que (sem saber) vivenciasse isso todo dia, tratava-se de meu primeiro contato formal com o tema. No entanto, tudo parecia muito distante para mim, posto que o foco do trabalho foram as ondas feministas do século XX na Europa que tinham como protagonistas mulheres mais velhas e com pautas com as quais não me identificava – como o direito ao voto, que para mim já era uma realidade concretizada. Não me convenceu.

Todavia, naquele mesmo ano, iniciamos um projeto sobre publicidades e me foi apresentada a campanha #LikeAGirl, da Always. Esse episódio marcou o início de um caminho sem volta. A campanha, diferentemente da apresentação, trouxe a discussão para perto de mim, para minha realidade. E então eu comecei a entender algo que implicitamente já sabia: como é, realmente, o mundo. Agora as máscaras começavam a cair, os preconceitos a se escancarar, e a partir disso passei a entender o que era, de fato, o feminismo. Portas tinham sido abertas para mim; portas de um mundo que, inconscientemente, eu estava procurando – um mundo doído, mas ao qual eu me sentia pertencente.

Inevitavelmente, engajei-me na luta. Manifestações, poesias, debates. E a cada campanha, a cada vídeo, a cada post, a cada frase sobre o tema, eu me arrepiava. E vivenciava sequências de pequenas epifanias do dia a dia. Tudo estava diferente. Eu estava diferente.

Junto comigo, o mundo parecia começar a mudar também. A dor (e ao mesmo tempo prazer) de uma vivência não-alienada parecia estar sendo compensada: marcas famosas começavam a estampar #GirlPower nos vestuários, capas de revistas com corpos fora do padrão, inúmeras páginas na Internet dedicadas exclusivamente ao assunto, denúncias de abusos, propagandas empoderadoras. Definidamente, as coisas pareciam mudar. Ao mesmo tempo que estava agoniada, esse feminismo, que passava a ser promovido socialmente por meio das empresas e marcas, era um alívio, uma luz no final do túnel.

Com o meu ingresso no Ensino Médio, porém, minhas concepções sobre o movimento se transformou. Percebi que não era possível pensar sobre feminismo sem considerar o sistema econômico em que vivemos: o capitalismo. Essa organização do cenário material delimita o comportamento, isto é, as questões objetivas que nos são impostas geram nossa subjetividade. Em outras palavras, pode-se dizer que a organização econômica sobre a qual a vida se constrói condiciona o indivíduo – suas ações, valores, organização do cotidiano.

O cenário material da vida é ponto de partida para a produção e reprodução de preconceitos, dentre eles o machismo. A sociedade capitalista em que vivemos depende da desigualdade – incluindo a subordinação e opressão da mulher. É algo estrutural. Portanto, é no mínimo questionável a coerência deste feminismo promovido por empresas capitalistas – as mesmas que, inseridas na lógica capitalista de produção, lucram com o sistema patriarcal.

Por que as propagandas, repentinamente, deixam de ser ofensivas e passam a ser empoderadoras? Novos padrões estariam sendo construídos, o sistema patriarcal estaria se adequando às mudanças sociais da época? Ou a luta feminista estaria mudando o comportamento das pessoas e, portanto, mudando a organização do sistema econômico?

A construção destes questionamentos foi, por si só, um momento epifânico. A possibilidade de desmoronamento de uma série de concepções e opiniões que havia construído até o momento me abalou – mas mais do que isso, me instigou a refletir.

Cada nova pergunta coloca em jogo a anterior; o exercício de refletir sobre este tópico nos proporciona muitas epifanias – e muitas dúvidas. E é preciso ter em mente que não encontrei uma resposta categórica e pragmática. Por hora, me resta ponderar. Muito. E não desistir de minhas dúvidas.

 

Antonia Vilas Boas Cardoso de Oliveira. Curso o terceiro do Ensino Médio e quero fazer Ciências Sociais. Gosto de me engajar com debates políticos das mais variadas formas, seja através da escrita, manifestações, arte, etc.

 

Referências:

AZEVEDO, Jade; Feminismo de Revista. UFPB, 2017
Não me Kahlo; Que Feminismo Contra que Capitalismo. 14/03/2015. Acessado em 10/09/2018
Não me Kahlo; O Ciberfeminismo da Origem por Donna Haraway – críticas atuais. 01/08/02016. Acessado em 10/09/2018
ASSUNÇÃO, Diana; Feminismo como nicho de mercado e a cooptação capitalista. 8/10/2016, esquerdadiario.com.br. Acessado em 01/11/2018

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